Revista Digital Art& - ISSN 1806-2962 - Ano II - Número 01 - Abril de 2004 - Webmaster - Todos os Direitos Reservados

Entrevista com a professora Dra. Regina Stela B. Machado, professora Titular da Escola de Comunicações e Artes da USP.

Coordenadora do NACE-NuPAE (Núcleo de apoio à cultura e extensão – Núcleo de promoção da arte na educação)

Art&: Professora Regina, pela nossa experiência no contato com os professores de artes através das comunidades virtuais às quais somos ligados, por que é tão usual observamos professores angustiados em busca de atividades, propostas, ou mesmo “receitas”, para utilizarem em suas aulas de artes?

Regina Machado: Bom, faz muito tempo que eu venho me perguntando sobre o que é uma idéia adequada , ou mesmo como pensar a formação adequada para professores de arte. O que é necessário em termos de conhecimento? Quais são os conteúdos dessa formação? São coisas que eu me pergunto a muitos anos. No meu trabalho com os professores, fui observando quais são as demandas que eles trazem e como é que eles chegam em um curso de formação. Durante dezesseis anos no Curso de Especialização em Arte-Educação na USP, fui recebendo esses professores e trabalhando com as perguntas iniciais que traziam. No início do curso, eu sempre peço um quadro de perguntas e o que aparecia, na maioria das vezes, eram perguntas completamente ligadas à prática e sem nenhum respaldo de fundamentos. As idéias de perguntas eram, por exemplo, assim: “O que eu faço na sétima série? Qual a diferença da aula da sétima para a oitava?”.

O que eu formulei em relação a isso é que as pessoas perguntam, em geral, coisas que ninguém pode responder por elas. E elas nunca se perguntam como é que elas podem se preparar para que, elas mesmas, possam responder essas perguntas. Essa é a questão chave. Quando o professor pergunta algo diretamente da prática, está ignorando que, para se chegar à resposta, ele mesmo precisa passar por um processo de aprendizagem. E quando se passa por esse processo de aprendizagem, o professor ou professora tem condições de pensar, de articular e de propor alguma coisa para a classe, para um momento específico, a partir do que se aprendeu. Por exemplo, aquilo que aconteceu, na quinta-feira à tarde, com a quanta série. As ações são organizadas a partir do seu processo. Eu acho que existe uma confusão básica na idéia do que é aprender. Aqui, caímos no problema da formação. Uma formação deficitária e cheia de carências faz com que os professores tenham um equívoco fundamental e que está na raiz do que é aprender. Aprender fica sendo pegar uma técnica e dizer: “Puxa! Achei bem legal! Que idéia criativa! Vou pegar essa idéia e aplicar nos meus alunos”.

É bem essa idéia de aplicar, algo bem mecânico. Por dentro disso, existe a idéia de que ensinar é alguma coisa mecânica: não se aplica nada em ninguém, e sim, se cria uma situação de aprendizado. Dessa forma, a maior questão para mim é como instrumentar esses professores para que eles possam criar situações de aprendizagem - deles próprios - se perceberem capazes de criar essas situações. No geral, os professores nem se dão conta disso e acham que o que deve ser feito é  aprender a aplicar as coisas que os outros já fizeram. Assim, a idéia de ser autor, de ser o protagonista de sua história de ensino, é algo que tem que ser conquistado. E não é algo que está fora, é sim, algo  que o professor já conhece e que está dentro dele mesmo, mas que ele já esqueceu e que tem que ser buscado por um diálogo entre seus recursos internos e aquilo que está disponível como material para se aprender, que está fora dele. Os textos, todas as teorias, todas as abordagens, tudo isso  precisa ser estudado.

Art&: Mas isso você não acha que tem relação com uma formação ligada às metodologias, aos livros didáticos, que vêm de uma vivência histórica do professor que recebe o material pronto com os conteúdos e estratégias pré-estabelecidas, com os quais ele vai para a sala de aula e aplica o que está ali? Os livros didáticos de educação artística da década de 70 tinham essas características.

Regina Machado: É, mas acontece que historicamente a gente tem de tudo. E existe um conjunto de aspectos de condicionamento que são grandes equívocos. E sem dúvida nenhuma, isso que eu estou chamando de uma formação inadequada, envolve tudo isso. Ou seja, todas essas concepções enganosas.

Art&: Por outro lado, houve a livre-expressão, que era o oposto do método de condução através do livro didático, onde o professor também tinha, muitas vezes, condutas e entendimentos equivocados dos seus pressupostos e fundamentos. Como é que você vê isso?

Regina Machado: Quando se tem uma formação voltada para a aquisição de coisas, quando se entende conhecimento como alguma coisa que se “compra”. Tudo isso faz parte dessas concepções equivocadas. Na verdade, é possível se dialogar com qualquer abordagem. Qualquer pessoa pode fazer isso e pode extrair desse diálogo aquilo que melhor se articula com a sua prática. Mas isso é algo que tem que ser conquistado também. O professor precisa ser capaz de fazer esse exercício, ele precisa se sentir livre para fazer esse exercício. Esse é o ponto: as pessoas nem chegam nesse lugar delas mesmas, de perceberem que podem olhar para a livre-expressão e realizar perguntas. Não, elas são obrigadas ou a criticar porque um autor criticou ou a fazer porque alguém disse que é para fazer. Todas as modas pedagógicas passam por isso. E o professor não tem interlocutores para discutir com ele, até porque ele não teve em seu currículo História do Ensino da Arte para aprender de onde veio essa ou aquela abordagem. A maioria não tem noção de onde surgiram todas essas concepções. É fundamental situar para o professor de arte a abordagem que ele está recebendo ou lendo sobre, até mesmo em um manual que diz o que deve ser feito.

Art&: Mas por que os professores não têm isso nos cursos de Licenciatura em Artes?

Regina Machado: Porque essa concepção de ensino ainda é nova. A gente ainda sofre a influência de concepções sobre o que é aprender que vêm lá do iluminismo, passam pelo positivismo e que, na verdade, já viraram a “sopa da sopa” nas mais diferentes áreas. No ensino de arte, também isso aconteceu. É uma diluição da Academia. É uma diluição por que? Porque é uma área que ficou envolta, durante muito tempo, em precários fundamentos. O ensino de arte é uma área que está começando agora a ter - com a proposta triangular, por exemplo - a idéia de que a arte é um tipo de conhecimento e que esta pode ser ensinada e aprendida. Assim, esse tipo de clareza conceitual e de fundamentação é uma coisa muito recente. A arte não era considerada como conhecimento: era uma atividade dentro da escola, envolta em noções, inspirações, imaginação e uma série de conceitos muito voláteis. Não havia uma consistência como área de conhecimento. Juntam-se a isso as heranças todas das academias. Tem gente que ensina arte, até hoje, como se ensinava na Missão Francesa. É só vermos como era a escola antigamente: o modelo era a escola de Belas Artes. Se formos ver, as melhores escolas de arte no Brasil, ainda hoje, carregam os ranços da especialização, do engavetamento em disciplinas, da falta de espaço para personalidade do aluno, da idéia de conhecimento como algo classificado hierarquicamente e do excesso de foco na técnica. Ou seja, é muito difícil, diante desse tipo de formação, para o professor de arte ter confiança e andar pelas suas próprias pernas.

Art&: E você apontaria alguma saída para os cursos de licenciatura pensarem em outras possibilidades para a formação dos professores de arte?

Regina Machado: A gente tentou fazer isso no curso de Especialização, durante dezesseis anos. Eu vejo que tivemos bons resultados, porque nós temos os depoimentos dos professores que saíram desse curso e que nos falam de como eles se tornaram protagonistas de suas práticas. Temos muitos depoimentos - claro que não foi feita uma pesquisa formal - mas os professores, de alguma maneira, conseguiram descobrir como não só organizar a sua prática, mas também organizar a reflexão sobre sua prática. Organizávamos o curso de tal forma que os professores pudessem articular um discurso sobre os fundamentos e intenções de seus trabalhos. Mas, para que isso possa acontecer, é necessário que haja um trabalho sobre a pessoa do professor. Não como essa moda, agora, da pedagogia dos métodos autobiográficos e de trabalhar a pessoa com um toque extremamente pedagógico. Estou falando de um tesouro que temos nas mãos: a própria arte. Quanto mais você deixa que a experiência artística guie a formação do professor, muito mais ele poderá aprender a seguir seus próprios passos, porque a experiência artística afirma o poder criador - mais do que qualquer outra teoria, abordagem ou seja lá o que for. Acredito que a experiência artística deva ser o centro de uma formação, a experiência pessoal artística de um processo de criação. Porque quando há um processo pessoal de criação, você afirma a si mesmo aquilo que você pode fazer. E assim, você se sente uma pessoa que tem vontade de descobrir e perguntar: “O que mais eu posso fazer?”. Essa é a pergunta vem de dentro, e não “o que eu vou copiar?”. A pessoa só copia porque se sente insegura e nunca parou para perceber suas próprias capacidades. Sendo assim, só lhe resta copiar.

Livros da professora Regina Machado:

Originário do folclore da Turquia, o personagem Nasrudin é um mulá (que em árabe significa 'mestre'). É um herói curioso - parece ingênuo de tudo, mas é mais esperto do que todos nós. Alguns de seus contos são dignos de um verdadeiro sábio oriental, com enigmas lógicos e soluções mirabolantes. Outros são casos de simpática malandragem, de confusões que só se resolvem com muita esperteza. Regina Machado combinou os contos do mulá com a história de uma divertida turma de amigos reunidos em torno de Kláun Noguera, uma espécie de contador de histórias que os desafia a adivinhar como Nasrudin se livra de enrascadas e passa a perna nos amigos, no rei e até mesmo na própria mulher. . Os sete contos dessa coletânea vêm da tradição oral de culturas orientais. Eles têm em comum o fato de conservarem saberes e experiências acumulados pelas gerações - todos transmitem um aprendizado, um modo de lidar com determinada situação. Há, por exemplo, o conto 'Zabeidas, trolas, pimoras, gripas', em que quatro homens de quatro regiões diferentes enfrentam um mesmo problema para o qual imaginam uma mesma solução, mas correm o risco de não resolverem nada porque nenhum deles fala a língua do outro. A solução proposta pelo saber tradicional é um elogio ao convívio das diferenças, ao uso da inteligência em favor do bem comum, ao multiculturalismo. . Histórias coletadas na tradição oral de vários países e povos, narradas pela contadora de histórias Regina Machado. Protagonizados por mulheres, os contos apresentam uma série de heroínas corajosas. Com astúcia, perseverança e sabedoria, elas enfrentam desafios e provações, seguindo tortuosos caminhos em busca da felicidade plena. . Neste livro, a biografia cede lugar a uma grande viagem poética, onde o leitor é convidado a criar uma narrativa através das obras de Claudio Tozzi. Regina Machado, a autora que tem vasta experiência, pesquisa e domínio em contar histórias, fez do livro um espaço de criação narrativa e viagem poética a partir da obra de Tozzi. Claudio Tozzi é um artista contemporâneo que possui uma rica trajetória; produziu muitas obras que consolidam a Pop Art no Brasil. As obras do artista da década de 60 manifestam vontades e desejos dos jovens brasileiros daquela época e a remissão a esse período favorece a compreensão do momento atual. Como o artista também produziu/e produz muitos painéis em espaços urbanos, conhecer a sua obra faz-nos refletir sobre a interface entre arquitetura e arte; duas linguagens que podem conviver e dialogar nas cidades. Tozzi é um Artista Plástico que combina as competências de Artista Gráfico e de Arquiteto, o que acaba revelando outra face dos artistas contemporâneos - a hibridez de suas ações e o caráter pouco hermético de suas produções.

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