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As Infâncias no Teatro para Crianças[1]
Autor: Taís Ferreira [2] - taisferreirars@yahoo.com.br

Resumo:

Este artigo apresenta-se como um trabalho de caráter analítico, no qual discuto e reflito acerca das representações de infâncias presentes no contemporâneo teatro para crianças, ou seja, o teatro produzido tendo como público alvo as crianças espectadoras. Divide-se em três seções principais, a primeira, na qual contextualizo os referenciais teóricos sobre as infâncias com os quais dialogo neste momento, sendo eles: Postman, Ariès e Steinberg e Kincheloe. Na segunda seção realizo a análise de dois espetáculos teatrais infantis produzidos e encenados em Porto Alegre, baseada em observações empíricas e nos textos dramáticos, focalizando os personagens-criança que os protagonizam. Na terceira seção, analiso os depoimentos de atores e atrizes que atuaram nesses espetáculos, seus processos de construção dos personagens-criança e as representações de infância neles envolvidas.

Palabras-chave: teatro infantil – infâncias – personagens-criança – kindercultura

1. Introdução – Por onde trilho meus caminhos... 

Neste trabalho, proponho-me a analisar as relações entre os conceitos de infância que circulam em alguns discursos acerca da mesma (notadamente sobre o proclamado fim-da-infância/ desaparecimento da infância trazido por Postman, 1999 e a kindercultura de Steinberg e Kincheloe, 1997) e os modelos de crianças apresentados pelo teatro infantil produzido e  consumido hoje. 

Algumas perguntas nortearam esta análise e foram o mote para sua realização: 1) Qual é/ quais são a(s) criança(s) representada(s) nas peças de teatro que serão consumidas pelo público infantil? 2) Como esses personagens-criança são construídos no texto dramático, na encenação e pelos atores que os interpretam? E a partir destas duas primeiras, a seguinte questão: 3) Quem/ como é o público infantil idealizado ou imaginado pelo endereçamento destes espetáculos? 

Um dos pressupostos que acompanham esta análise é o de que percebendo a forma como os atores, diretores e dramaturgos do teatro infantil representam esta criança em cena, podemos obter um caminho de acesso para entender qual é o público ao qual estes produtos culturais se dirigem, qual/ quais é/ são o(s) seu(s) modo(s) de endereçamento (ELLSWORTH, 2001), enfim, para que criança estes espetáculos falam, que modelos de infância levam em conta e colocam em cena; qual é  a infância da qual fala o teatro infantil e, conseqüentemente, a que infância ele se dirige. 

Os conceitos de fim-da-infância e de kindercultura ao mesmo tempo que se opõem, completam-se. Pode parecer estranho que em uma conjuntura na qual crianças são veementemente adultizadas pelos mecanismos de disciplinamento/ controle e pelos meios de comunicação de massa –  que destróem as barreiras entre o conhecido e o desconhecido, entre o que se pode ou não saber , onde a informação (sons, imagens, mensagens) chega de maneira idêntica e insidiosa a todos os lares, em qualquer horário, atingindo indivíduos de qualquer idade –   haja uma emergência concreta de toda uma gama de produtos culturais e de consumo feitos ‘para (e somente para) crianças’. É incoerente pensar que em uma sociedade onde os interesses e lugares sociais de crianças e adultos cada vez mais estão confundidos, onde as fronteiras entre o ser criança e o ser adulto estão borradas, prolifere vertiginosamente toda uma produção cultural voltada ao público infantil, a seus supostos interesses e em consonância às características próprias do dito ‘desenvolvimento infantil’. 

Se seguirmos o movimento neste sentido, a kindercultura seria uma forte tentativa de definição do que é adequado, próprio para a infância e de qual é o lugar desta criança, dissociando através de seus produtos aquilo que pode ser consumido pelos adultos daquilo que deve ser consumido pelas crianças, padrões adultos de comportamento versus padrões infantis. É importante considerar que alguns destes artefatos, principalmente o vestuário e objetos como telefones e maquiagem, aproximam adultos de crianças, por vezes mais do que adultizando, erotizando as experiências infantis. Já outros produtos (como alguns programas televisivos, peças de teatro, gibis, livros e desenhos animados) marcam fortemente estas diferenças. Porém, mesmo marcando as diferenças, igualam as crianças aos adultos no momento em que todos (velhos, adultos, crianças e, principalmente, adolescentes) são considerados consumidores, antes de serem cidadãos ou indivíduos. Além do apelo comercial característico da maior parte destes artefatos, há uma profunda demarcação de lugares que se realiza no ato de produção e de consumo, modelos sociais e identitários veiculados que constroem nossos significados de infância e de idade adulta e que reforçam algumas representações de infância surgidas já no início da Modernidade. 

Assim como P. Ariès nos traz em sua “História Social da Criança e da Família”, a infância é um construto social e cultural que sequer existia antes do século XVI. Crianças e adultos viviam juntos, não havia distinções entre um ‘mundo adulto’ e um ‘mundo das crianças’. Os jogos, brincadeiras, espaços sociais – e também artefatos culturais como a literatura, os contos orais, os espetáculos teatrais e as danças – eram partilhados por indivíduos de todas as idades. Muitas destas práticas (como as brincadeiras, jogos e contos de fada, com passar dos séculos, se restringirão ao ‘universo infantil’, enquanto outras manifestações como a literatura, o teatro e a música terão acrescidas aos seus corpus as categorias de literatura infantil, teatro infantil e música infantil, ou seja, uma produção específica nestas linguagens destinadas a um público eminentemente composto por crianças. 

Sendo assim, a kindercultura reforça a existência da infância enquanto uma fase da vida com características e necessidades distintas das dos adultos (os discursos verbais, textuais e visuais destes artefatos têm nítidas especificidades formais e conteudísticas se comparadas a seus similares para adultos). Porém, a mesma kindercultura transforma alguns conceitos como o de uma criança dependente, ingênua, incapaz, incompleta, desprotegida – enfim, os significados de infância que tiveram seu ápice no período compreendido entre 1850 e 1950 –, ao considerar a criança enquanto um consumidor apto a escolher e adquirir os produtos de sua preferência. 

Conforme Postman, a necessidade da invenção da infância surge com a prensa tipográfica e a disseminação dos livros e da leitura, dividindo o mundo entre os letrados (adultos) e os não letrados (crianças), aqueles que tinham acesso aos conhecimentos e segredos do mundo e aqueles aos quais estes conhecimentos eram vetados. Com o advento dos meios de comunicação de massa – iniciado com a invenção do telégrafo, rapidamente seguido pelo telefone, rádio, televisão e agora com a presença indiscutível da informática em nossas vidas, – inicia-se um processo de desaparecimento da infância. Não há mais distinções e mistérios que segreguem adultos de crianças e, com isso, não há mais a necessidade da própria infância.  Considero o texto de Postman um importante referencial no pensamento contemporâneo acerca das questões da infância, mas não posso deixar de perceber em seu discurso um tom catastrófico de perda de um valor maior à sociedade – a infância – em detrimento de outras possibilidades de abordagem, como a tentativa de entender estas mudanças enquanto uma metamorfose daquilo que consideramos a infância e as crianças. Metamorfose esta que está em consonância com as rupturas e transformações que vêm demarcando o período que, conforme Kumar, convencionamos chamar de Pós-Modernidade, no qual a conjuntura em que estamos inseridos pode ser situada. Neste mundo de sociedades híbridas, fluidas, sem fronteiras, disciplinares, controladas, hierarquizantes e normalizantes, existem, sim, crianças, porém tão ou mais diferentes dos infantes do século passado do que dos próprios adultos, seus ‘outros’ que justificariam seu sentido de ser através da diferença.  Ser criança não tem mais o mesmo significado; outras práticas e dispositivos norteiam a construção da infância pós-moderna, entre elas as práticas de produção e consumo dos artefatos da kindercultura. 

Literatura, roupas, CDs, espetáculos teatrais, shows de música, dança e humor, espaços recreativos variados, filmes, brinquedos, jogos eletrônicos, periódicos dos mais diversos formatos e conteúdos, lanchonetes, móveis, material escolar, utensílios domésticos, comida congelada, sites na Internet, desenhos animados, programas televisivos e uma infinidade de produtos, alguns com cunho artístico-cultural, outros tantos puramente incentivadores da propagação de bens de consumo, compõem aquela produção realizada  geralmente por adultos e que tem como público alvo as crianças, que podemos chamar de ‘kindercultura’, segundo o vocábulo trazido por Steinberg e Kinchelou,ou simplesmente de ‘cultura infantil’. 

2. Os objetos – nem teatrinho, nem criancinhas 

A partir da breve contextualização de alguns importantes referenciais teóricos sobre a infância, inicio minhas reflexões analíticas acerca das representações de infâncias presentes no teatro infantil contemporâneo. Utilizarei como foco de minha análise dois espetáculos, apresentados em Porto Alegre, que têm como personagens principais crianças. Voltarei meu olhar para os textos dramáticos que deram origem às montagens cênicas, bem como às minhas apreciações e impressões como espectadora das peças e ao relato de alguns atores que interpretaram os personagens-criança, seus processos de criação e a relação com o público infantil. 

A opção pela escolha de dois espetáculos deve-se ao fato de que cada um deles apresenta seus personagens-criança de forma distinta, possibilitando assim o enriquecimento de pontos de vista a serem discutidos neste espaço. 

Um dos espetáculos é “Do Outro Lado da Cerca”, encenação do texto do dramaturgo gaúcho Hermes Mancilha, que teve sua primeira montagem em 1987 e que volta em outra montagem, com a direção de Fernando Ochoa, em 2001. É à encenação de 2001 que farei referência, ganhadora de vários Prêmios Tibicuera na edição 2001, inclusive na categoria de Melhor Espetáculo. O outro espetáculo com o qual trabalharei é “Abracadabra”, que esteve em cartaz no primeiro semestre de 2003, sob direção de Roberto Oliveira, baseado no texto de Anelise Marques, em uma livre adaptação dos atores. 

3. Apresento o meu olhar, entre tantas e infinitas possibilidades de olhar... 

A seguir, farei um pequeno exercício analítico sobre as representações de infância contidas nos espetáculos. Parto de uma atenta leitura dos textos dramáticos, até minhas impressões subjetivas de espectadora, numa tentativa de exercitar meu olhar de pesquisadora. 

Inicio o texto a respeito dos espetáculos com uma breve sinopse, seguida da análise dos personagens  e de algumas relações que pude tecer com os Estudos Culturais em Educação. 

3.1 “DO OUTRO LADO DA CERCA” – a dor e a delícia de  se  ser o que é... 

Um grupo de seis crianças (3 meninos de 3 meninas), todos da mesma idade e colegas de classe, resolve procurar um ‘suposto’ urso  que teria invadido o pátio da casa de uma das meninas durante a madrugada, isso depois de uma divertida aula sobre pronomes possessivos com uma professora que canta, dança e gosta muito das crianças.  Em sua busca pelo urso, acabam atravessando os limites do quintal de Clara e vivendo algumas aventuras, do outro lado da cerca. Ultrapassando as fronteiras físicas do terreno, também conseguem trabalhar suas próprias limitações, envolvendo-se com uma cultura diferente (de uma tribo indígena), com um tamanduá-bandeira e outros seres estranhos. 

No decorrer da trama, ficam bem delineadas as relações que os seis personagens-criança mantêm entre si e também com alguns adultos como os pais, a professora e os índios. Como o foco de minha análise é a constituição dos discursos e conceitos de infância através das ações e relações destes personagens, trarei alguns exemplos para elucidar a discussão. 

Todas as crianças são bem próximas e convivem diariamente. Na encenação, a interpretação dos atores, a composição dos personagens (ver imagens no anexo 2), deixa bem clara uma certa tipificação de cada um deles: Pedro é o corajoso, Clara a mimada, Zé, o comilão que todos reprimem e repreendem, Henrique o ‘chatinho chorão’, Sílvia (irmã gêmea de Zé) a curiosa, investigadora e Pupi, uma menina meiga, porém muito fofoqueira e astuta.  Há um equilíbrio entre as qualidades negativas e positivas dos personagens masculinos e femininos, ainda que no decorrer do texto algumas falas explicitem a diferença entre ser um menino e ser uma menina no cotidiano destas crianças, principalmente no que se refere às expectativas dos adultos. O diálogo que se passa na última cena da peça exemplifica. 

CLARA – A minha mãe vai me matar. 
PUPI – E a minha! O que eu vou ouvir... 

PEDRO – Ainda bem que  a gente é homem. 

ZÉ – Pior ainda. Vamos levar uma sova. (cena 14) 

Lendo as falas das crianças, percebemos que meninas sofrem cobranças dos pais com maior freqüência, mas aos meninos, quando infringem as regras familiares, não restam sequer as chateações verbais, só agressões físicas sem nenhuma possibilidade de diálogo. Algumas meninas negociam posições tipicamente ‘masculinas’ com os meninos, enquanto outras continuam assumindo posições consideradas ‘normais’ na construção de feminilidade, que vigoraram (e talvez vigorem) em alguns espaços de nossa sociedade até não muito tempo. Vejamos o diálogo entre Pupi, Clara e Pedro. 

PEDRO – Eu vou na frente. 
PUPI – Que nada, primeiro as mulheres. 

PEDRO – E se o urso estiver escondido? Vai lutar com ele? 

PUPI - Por que não? 

CLARA – Acho melhor ele ir primeiro. (cena 8) 

Há muita riqueza de detalhes na encenação, que excede e amplia bastante o sentido do texto. O cotidiano destas crianças, contextualizado em espaços como a casa, a escola, o quintal e a floresta, é explorado de forma muito profícua, propondo um certo realismo presente nas ações e gestos, bem como nos figurinos dos personagens. Logicamente, o que vemos como espectadores são personagens teatrais, interpretados por atores que não são mais crianças cronologicamente. Contudo, talvez pudéssemos encontrar muitas destas crianças em situações e espaços ‘reais’. 

Estes personagens gozam de uma liberdade de ir e vir pelos espaços nos quais circulam que não condiz com o cotidiano urbano das ‘crianças de apartamento’ das grandes cidades. Mesmo assim, muito das representações de infância que vemos na cena tem relação direta com o dia-a-dia de nossas crianças, principalmente aquelas que vivem em bairros e cidades onde existam pátios e cercas de madeira, ao invés de muros, grades, cercas eletrificadas, interfones e câmeras de vídeo. 

Entretanto, uma série de características comportamentais dos personagens está em consonância com a infância pós-moderna, ou ao menos com uma visão menos idílica das ‘doces criaturinhas do Senhor’. 

Em “Do outro lado da cerca” há crueldade e preconceito no trato com os colegas, bem como uma visível hierarquização dos ‘lugares sociais’  no grupo. Crianças dizem ‘verdades’ carregadas de preconceitos que fazem parte da construção cultural de suas identidades, e mesmo que Mickey, as Princesas da Disney, Barbie e Harry Potter não digam palavrões nem humilhem ou julguem  seu companheiros, outras relações sociais propiciam às crianças o aprendizado de tais práticas tão comuns em nossa constituição enquanto indivíduos e cidadãos. Os excertos abaixo exemplificam. 

PEDRO – Procurou direito? Acho que ele deveria procurar mais. 
CLARA – Tu queria que ele ficasse a tarde inteira procurando? O meu pai não é ‘vagal’ que nem o teu irmão, não. 

PEDRO – Ele não é ‘vagal’. Ele só está desempregado, tá? E vai cuidar do teu caderno. (cena 7) 

CLARA – Vai ver o pai dela anda bebendo de novo. 

SÍLVIA – O pai dela saiu de casa. 

PEDRO – Agora ele vive bêbado no armazém. 

HENRIQUE – E tu com isso! Pelo menos ela tem pai e tu que nem tem pai. (cena 5) 

Dentre as inúmeras represálias e preconceitos que sofre o personagem Zé, o menino gordo, desajeitado e meio lento, que tem certa dificuldade em acompanhar os colegas em suas brincadeiras, uma põe em questão a sexualidade do garoto, que por não ser tão forte, ágil e corajoso como Pedro, por exemplo, não pode se encaixar no padrão de masculinidade hegemônica que constrói o ser menino em nossa sociedade. Durante a fala de Pedro que segue, todos riem muito e ‘tiram sarro’ com a cara de Zé. 

PROFESSORA – Fila! Fila! Meninos de um lado, as meninas do outro. 
PEDRO – E o Zé, onde fica? 

PROFESSORA – Por que? 

PEDRO – Por nada, por nada. (cena 4) 

Entretanto, também há companheirismo, humor, picardia, namoricos e amizade entre as crianças. E é a variedade de sentimentos e relações humanas entre os personagens que provoca a grande empatia que senti nas duas vezes em que assisti à peça, e que pude perceber também no público mirim que acompanhava o espetáculo. As crianças da platéia vêem-se ao contemplar representações de crianças que têm medos, inseguranças e defeitos, que são cruéis, alegres, debochadas, carinhosas, protetoras e protegidas, espirituosas e aventureiras, amáveis e detestáveis, apaixonadas e apaixonantes, seres repletos de uma humanidade contrastante, típica dos indivíduos múltiplos de nossos tempos, e, por que não?, de uma infância pós-moderna.  Desta forma, percebe-se que há uma consideração com a provável multiplicidade e heterogeneidade das crianças às quais endereça-se o espetáculo. A peça não pressupõe como seu público dóceis ‘criancinhas’ contentes ao ver seu ‘teatrinho’. São crianças repletas de conflitos e dispostas a assistirem um teatro que contemple suas necessidades de indivíduos múltiplos e complexos. Porque, às vezes, é a Chapeuzinho que quer comer o Lobo Mau e mandar a Vovozinha passear na floresta... 

O encontro com os índios levanta alguns conflitos entre uma visão, hoje hegemônica, do que é ser ou agir ‘ecologicamente’ em contraste com o pensamento indígena de uma relação harmônica (e não romântica) entre a natureza e  o homem. O diálogo entre Pedro e os índios nos mostra como a crianças de hoje são culturalmente construídas por discursos ditos ecológicos, que impõem algumas condutas sem que se pense ou se tente contextualizá-las a diferentes realidades. São as ‘verdades’ que inventamos e passamos a crer como naturais dos seres humanos, construtos social e culturalmente formulados, apenas. 

TUCUMÃ – Vou caçar o urso. Tucumã sabe todos os caminhos da mata. 
ÍNDIO GORDO – Filho agora deve trazer comida casa. Tucumã homem grande, caça pra alimenta família. 

PEDRO – Mas tu não podes matar o urso. Não é certo. 

TUCUMÃ – Pode morrer de fome, Tucumã e os seus? (Pedro fica pensando e Tucumã sai.) (cena 9) 

Segundo Maria Lúcia Pupo, em seu estudo sobre a dramaturgia infantil realizada em São Paulo entre os anos de 1970 e 1976, o tratamento dispensado às questões de raça, etnia e nacionalidade no teatro infantil geralmente veicula-se a seguinte visão: “O indivíduo ‘divergente’ é caracterizado, os demais são a norma, não necessitando, portanto, de maiores especificações”. Parece que “Do outro lado da cerca” não é uma exceção, sendo que os personagens da tribo indígena são diferenciados dos outros pelo seu modo de falar e pelo uso de máscaras. Ainda segundo Pupo, “... nas raríssimas vezes em que índios aparecem em cena, são quase sempre identificados através dos estereótipos culturais mundialmente disseminados pelo cinema americano”. No espetáculo que analiso, o figurino dos índios é perceptivelmente muito mais baseado na indumentária apache do que no vestuário dos índios brasileiros. Reforça-se, desta forma, a visão do índio como ‘o outro’ da cultura branca do homem de classe média, assim como a influência exercida pelas mídias na construção de visões hegemônicas de raça e etnia que constituirão nossas identidades e subjetividades. 

Tanto a criação dos personagens-criança como o ritmo, as músicas e deslocamentos propiciam uma intensa identificação com a infância apresentada em cena aos espectadores. As crianças de “Do Outro lado da Cerca” são tridimensionais, com sentimentos ambíguos e desejos conflitantes, muito próximos da imagem de criança pós-moderna que Steinberg e Kincheloe nos trazem em seus artigos e presente em muitos dos textos do livro organizado pelos mesmos autores, “Cultura Infantil – A construção corporativa da infância”. Modos semelhantes de como considero que vivam, sintam e pensem grande parte de nossos filhos, alunos e vizinhos de andar. 

Uma análise mais aprofundada nos traria ainda muitas e muitas possibilidades de perceber como nos é apresentada (e é apresentada às próprias crianças), nesta peça teatral, a infância e seus desdobres. 

Mas passemos agora ao outro espetáculo com o qual escolhi trabalhar, e que, sem dúvida, trará outras possibilidades de olhar a infância e as crianças presentes nos palcos gaúchos. 

3.2 “ABRACADABRA” –  o ritmo  frenético da infância  pós-moderna 

Muita cor, luz, som e movimento, ritmo e linguagem de vídeo-clip, diálogos curtos e rápidos, figurinos estilizando ’roupas de criança’, coloridíssimos também. Gelo seco e atmosferas de mistério e suspense, rapidamente substituídas por coreografias e marcações de cena ágeis e repletas de acrobacias e gestos estilizados. Enfim, o ritmo frenético da infância pós-moderna, as cores e tons fortes da mídia (ver figura do programa do espetáculo no anexo 3), a velocidade das imagens televisivas, o deslocamento constante e instantâneo por páginas e links propiciado por um ‘click’ no mouse, o movimento, a cor e os ruídos da Internet.  Entretanto, convivendo mutuamente com esta linguagem teatral ágil e contemporânea, algumas representações de infância típicas de um relato da primeira metade do século XX.  E parece-me ser este o nosso mundo de hoje, uma grande ‘geléia geral’, misto de contradições e de convenções, o velho e novo, o belo e o feio, todos sob o mesmo céu, ainda que em lugares/ posições diferentes na rígida hierarquia normalizante das sociedades disciplinares e de controle. 

Toda a peça é uma grande brincadeira de faz-de-conta de um grupo de cinco crianças (2 meninas e 3 meninos). As referências trazidas pelos jogos brincados pelos cinco amigos vão de números circenses aos filmes de terror e suspense. A trama  desenvolve-se a partir do conflito entre três das crianças e sua suposta Professora-Bruxa que, descobre-se ser (com o desenlace da ação) uma das meninas do grupo, assim como seu zumbi-ajudante era o menino Dudu. Encarnando em sua brincadeira detetives, magos e pokemons, as crianças tentam vencer a mal intencionada professora, que percebemos como uma nítida representação negativa de uma relação provavelmente pouco saudável entre as crianças e sua professora. 

A primeira fala da professora (indignada e áspera, é bom lembrar), ao esbarrar em uma das meninas, é a seguinte: “– Ora, sua pestinha, não olha por onde anda?”. Desde já se percebe porque a professora transforma-se em bruxa na brincadeira das crianças. No decorrer da peça, fica claro que as crianças precisam recorrer a várias artimanhas para não serem subjugadas pelo ‘poder-saber’ representado pela professora na relação de forças que se estabelece entre ela e seus alunos. Provavelmente este seja um sentimento muito comum entre as crianças na contemporaneidade, tanto maior deve ter sido em tempos em que o espancamento dos alunos era prática comum nas escolas, além de outras humilhações de caráter físico e moral. 

Ao mesmo tempo em que se aproximam dos adultos nas possibilidades de obter informações, as crianças têm sempre estas informações fornecidas por provedores eminentemente adultos, ainda que através de produtos formatados para seu entendimento e linguagem, como geralmente os são os da Kindercultura. As ‘verdades’ às quais têm acesso são as verdades estabelecidas pelo poder-saber de um universo adultocêntrico. Negociar seu espaço de resistência e intervenção neste hegemônico mundo ‘adulto’ deve ser uma tarefa árdua e angustiante para estas crianças. 

Visões de uma dicotomia cartesiana, comumente presentes nos contos de fadas e histórias  para crianças, entre o bem e o mal, o belo e o feio, o esperto e o bobo, são contestadas pelos personagens-criança em “Abracadabra”. Algumas falas dos personagens demonstram este aspecto: “BIBI – Eu quero ser a bruxa que não morre.” (cena 18). Logo na seqüência, sua morte é justificada por Rubinho: “RUBINHO – A bruxa sempre morre no final, né Temis?” (cena 18). 

Mas parece que a importância da morte da bruxa se esvai em outra brincadeira e o assunto definha por ali mesmo, dando lugar ao próximo jogo. O importante é resistir à bruxa, não a eliminar para todo o sempre. 

Há certa ambigüidade no existir destas crianças, como já me referi anteriormente, várias contradições permeiam o universo delas e coexistem em seus cotidianos. São crianças de uma ’geração digital’, ainda que a ludicidade das brincadeiras de rua e de faz-de-conta (em grupo) seja resgatada pela peça. Eles conhecem e usam computadores, mas abusam da imaginação em brincadeiras com seus companheiros. Tanto como na outra peça, a solidão não parece fazer parte do universo infantil mostrado no palco. Não é exatamente assim que costuma acontecer com as crianças nos grandes centros urbanos. A violência, as distâncias e as paredes dos apartamentos dificultam este contato direto e a formação de ‘turmas’, principalmente entre as crianças das classes média e alta. Porém, nos bairros e áreas menos favorecidas, as crianças ainda brincam muito na rua, com ‘turma’ e tudo que é próprio deste tipo de atividade lúdica ao ar livre, não controlada por rígidos espaços e enquadramentos como os playgrounds dos condomínios e pátios escolares. Às ‘crianças de apartamento’ restam a televisão, o videogame, as conversas nos chats da Internet e os amigos da escola, que raramente moram na mesma rua ou prédio. O diálogo que segue mostra o quanto estas crianças representadas na peça fazem parte de uma realidade tecnológica, ainda que, no final, optem novamente pelo recurso imagético (a memória). 

TEMIS – Tá aqui a prova de que ela é uma bruxa de verdade. 
FLO-FLÓ – Vamos mostrar para todo mundo. 

RUBINHO – Vamos imprimir. 

FLO-FLÓ – Não, vamos xerocar! 

TEMIS – Não, cada um decora um feitiço. 

FLO-FLÓ – Tá, pode ser.  (cena 10) 

Parece que as crianças em “Abracadabra”, apesar da linguagem ‘pós-moderna’ da encenação do espetáculo, ainda fazem uso de recursos advindos da oralidade primária da qual nos fala Viñao Frago (1993). Outros momentos nos mostram uma infância que parece estar distante dos pequenos ‘sabe-tudo’ da nova geração. A menina Bibi constantemente invoca sua mãe como forma de se proteger dos amigos, ou para legitimar algumas de suas vontades. A relação de dependência e a incapacidade de resolver sozinha seus problemas é presente em muitos momentos do espetáculo. Antes de sair de cena, após um desentendimento com os meninos, Bibi fala, quase que chorando: “– Eu não vou mais brincar e vou chamar a minha mãe!” (cena 18). 

A pobreza, a fome, o trabalho infantil, a violência parecem não fazer parte do universo infantil representado nos dois espetáculos. Por mais que haja lutas, disputas, atos e palavras cruéis, as crianças da cena vivem em meio a ludicidade e rodeadas de amigos, seus pais são presentes e participativos, os problemas acima citados não aparecem em momento algum, suscitando a percepção de um endereçamento dirigido basicamente às crianças das classes média e alta. Com isso, não quero dizer que uma criança que vive a pobreza e a fome também não possa ter uma experiência profícua ao assistir um destes espetáculos. Talvez eles sirvam como um incentivador das capacidades criativas e de imaginação de qualquer criança, pois a experiência da recepção de um espetáculo nunca é uma, sempre é tantas quantas forem seus espectadores, diferentes entre si, sujeitos a diferentes leituras , mediadas por instâncias as mais variadas. 

As crianças representadas nas cenas dos espetáculos pertencem à classe média, possivelmente a maior parte do público presente nas platéias dos teatros também seja de crianças das classes mais favorecidas, mas projetos de descentralização cultural da Prefeitura Municipal de Porto Alegre e da iniciativa privada têm propiciado a várias crianças de bairros periféricos e de baixo poder aquisitivo, assim como públicos do interior do estado, o contato com estes produtos cênicos, aumentando a gama de possibilidades de leituras com a variedade de receptores. É notável que a produção cultural para crianças tem negligenciado mazelas sociais de grande abrangência como as que já citei. Parece que mostrar uma infância saudável e de classe média é fator comum nos livros, peças, filmes e produtos culturais para crianças, ainda que estas crianças não sejam mais representadas, na maioria das vezes, como frágeis, inocentes, meigas, ignorantes, desprotegidas e dependentes dos adultos. 

Fazendo um paralelo com as observações de Pupo em sua análise do teatro infantil em são Paulo nos anos 70, posso dizer que em vários aspectos, entre eles os que dizem respeito às funções socialmente construídas dos gêneros, há uma perceptível evolução no teatro infantil contemporâneo. Segundo Pupo, “A imagem da masculinidade , portanto, aparece associada à independência e à produtividade, enquanto que a imagem de mulher veiculada pela criação teatral dirigida `a criança é assimilada à dependência e não à produtividade“. A personagem Flo-fló, de “Abracadabra”, mostra-nos justamente o contrário. 

A menina é irmã do medroso e inseguro Rubinho (seu contraponto) e participa ativamente, em pé de igualdade, das aventuras vividas pela turma (que conta ainda com o líder Temis, seu provável ‘namoradinho’, segundo indicações de ações em cena) contra a Bruxa-Professora e seu ajudante Genival. Ela é ativa e  proponente de grande parte das ações do grupo, como se pode verificar nos seguintes diálogos. 

RUBINHO – Temis! Temis! Eu podia fazer o vampiro sedento de sangue e a Florinda a minha vítima. 
FLO-FLÓ – Só aceito se no final eu matar o vampiro. (cena 1) 

FLO-FLÓ – Estou dizendo que a gente tem que  investigar. 

(...) 

FLO-FLÓ – Vamos entrar na casa da Mafalda!(cena 6) 

FLO-FLÓ – Só tem um jeito de saber: investigando. Mais um caso para Detetive Flo-fló. E seus ajudantes; Gordo e Nanico. (cena 4) 

O teatro na contemporaneidade parece trazer para a cena modelos de comportamentos infantis mais conformes com o que se pode observar no cotidiano das crianças, inclusive nas relações de gênero e no tocante à sexualidade. 

Lembrando o texto de Walkerdine, “A erotização das garotinhas”, nestes dois espetáculos as meninas em cena em nenhum momento apresentam características erotizadas, comumente incentivadas por produtos culturais e ‘artistas pop’. O que se faz presente em ambos é  a presença da sexualidade infantil, mostrando que estas crianças não são assexuadas e há desejos envolvidos em  suas relações, ainda que expressos de forma singela e até delicada, através de toques furtivos, beijos rápidos do tipo ‘selinho’ e abraços atrapalhados. Portanto, o teatro infantil não se apresenta, segundo os exemplos colhidos destes dois espetáculos, como um artefato cultural que incentivaria a erotização infantil precoce. Parece-me que nos produtos culturais direcionados às crianças vinculados à literatura, ao teatro, filmes e desenhos animados não é esta uma prática assídua, sendo que o que ocorre freqüentemente é a total indiferença à sexualidade infantil, tomando as crianças como ‘anjos assexuados’. Já na televisão e no mercado fonográfico, cantoras, apresentadoras e grupos musicais (que contam com insinuantes bailarinas e bailarinos) marcam presença constante, sendo que o público infantil foi descoberto como um grande mercado consumidor a investir-se. 

4. O olhar dos atores – como são  construídas as crianças no teatro  infantil 

A análise do espetáculo deveria começar pela descrição do ator, pois este está no centro da encenação e tende a chamar o resto da representação para si.
(Patrice Pavis, 2003)

Em toda a parte deste trabalho que antecede esta na qual encontramo-nos agora, propus-me a exercitar meu olhar sobre certas questões de dois espetáculos teatrais para crianças. Tentei lançar sobre esta produção um olhar atento a como são representadas as crianças nos espetáculos teatrais dirigidos a elas mesmas, levantando também categorias de análise pertinentes aos Estudos Culturais, como o tratamento dado as questões de gênero, das raças e etnias, das diferenças e do multiculturalismo. 

A citação que abre esta parte do trabalho é do teatrólogo francês P. Pavis, e legitima um pensamento que há muito vem sendo formulado e presentificado nas experiências, teóricas e práticas, de minha história teatral:  o ator constitui  a centralidade de qualquer evento teatral. É a ele que é delegada a difícil tarefa da comunicação estética direta com a segunda parte imprescindível à existência do teatro enquanto tal, o espectador. Para haver teatro, basta um ator que represente/ comunique algo a partir de uma intenção estética, diante de um espectador. São esses os elementos fundamentais ao teatro. 

Sendo os personagens que vemos em cena criações (ou construções) dos atores, no caso destes dois espetáculos tendo como estímulo-base ao processo criativo textos dramáticos, fui até eles na tentativa de observar quais os modelos de infância que buscaram durante o processo de feitura destes personagens e, a partir disto, qual a representação de infância veiculada nos palcos, sugerindo um modo de endereçamento (ELLSWORTH, 1991) específico a um provável público alvo. 

Consegui contatar alguns dos atores que atuaram em “Do outro lado da cerca” e “Abracadabra”, verificando a possibilidade deles em responder a um simples e breve questionário (anexo 1) que caracterizaria um depoimento (escrito) deles acerca do processo de criação de seus respectivos personagens, a ser usado em um trabalho de um seminário que cursava no PPGEDU/UFRGS. Obtive o depoimento de quatro atores a partir do questionário, sendo que dois (um ator/”D”e uma atriz/”A”) participantes do elenco de “Abracadabra” e outros dois (também um ator/”S” e uma atriz/”M”) do elenco de “Do outro lado da cerca”. [3]

Comentarei, agora, parte de algumas de suas respostas, traçando uma relação com meus interesses de análise, ou seja, as representações de infância através dos personagens-criança. 

Respondendo a primeira questão que orienta o depoimento, todos os atores caracterizaram seus personagens, primeiramente, a partir de características constitutivas de suas personalidades, adjetivando-os como ‘atrapalhado’, ‘cansado’, ‘mimada’, ‘meiga’, ‘medrosa’, ‘super-criativo’, ‘inteligente’, ‘medroso’, ‘esperta’, ‘corajosa’, etc. 

Os dois atores que representam os ‘gordinhos’ das duas encenações, respectivamente Temis e Zé, citam a característica física corporal que os determina (ou seja, o peso excessivo) e adjetivam seus personagens como ‘comilões’. 

Zé era o gordinho da turma, o atrapalhado, o comilão, sempre cansado. Muito querido pelos amigos, mas ao mesmo tempo o motivo de chacota dos mesmos. (S) 

O Temis é inteligente (apesar de ele se ‘achar’ mais do que é!), comilão, medroso (apesar de ser bem corajoso em certos momentos...), e gosta de ser o chefinho da turma. (D) 

Parece que o fato de ambos os personagens não se enquadrarem no padrão corporal de magreza considerado como normal e desejável pela mídia, é um fator que constrói e determina seus lugares e suas identidades dentro do grupo. Contudo, o que observamos é que, ao mesmo tempo em que Zé é motivo de gozação, Temis ocupa a privilegiada posição de líder do grupo. Será que não temos na imagem do segundo personagem uma forma de resistência aos lugares sociais (inferiores e desfavorecidos) geralmente destinados aqueles que não se enquadram nos padrões de beleza estética da contemporaneidade? 

As meninas são retratadas preferencialmente segundo seus caracteres comportamentais e psicológicos. Porém, aparência física da personagem Clara é a primeira a aparecer no relato da atriz que a interpreta, determinado todas suas outras características, em uma representação óbvia, proveniente dos contos de fada, de que a beleza sempre está associada à meiguice, a bondade e à fragilidade femininas. 

A Clara tem uns sete anos e é a ‘bonitinha’ da turma. (...) Na turma ela é meiga e medrosa. Durante a aventura na floresta ela é sempre a primeira a querer voltar. (M) 

Porém, não me parece que a personagem Clara seja um exemplo de modelo feminino ultrapassado condenado pela crítica feminista. Eu leria a meiguice e o medo relatados pela atriz muito mais como características inerentes a uma representação de infância dependente e dócil do que à questão do gênero. Mas outros personagens exercem um forte contraponto dentro da diversidade de tipos e possibilidades identitárias e de subjetividade propostas pelas duas peças. A menina Flo-fló é exemplo disto, nas palavras da atriz que a interpreta. 

Flo-fló é muito esperta, corajosa, gosta muito de brincar com os meninos (...). Flo-fló é um pouco esquentada, quando algo lhe incomoda ela põe a boca no trombone. (A) 

Todos os atores, em seus relatos sobre como foi seu processo de criação, referiram-se às observações de crianças nas ruas, em situações cotidianas, na saída do colégio, etc como um dos métodos utilizados na composição dos personagens. Esse processo de mímese corpórea auxiliou, segundo os relatos, na construção da gestualidade, dos movimentos e da energia consideradas próprias das crianças. 

Podemos inferir que, mesmo que a infância constitua-se em um construto essencialmente cultural e social, é fato que não é possível desconsiderar que a faixa etária acaba acarretando algumas diferenças relativas ao uso das capacidades motoras do indivíduo. É importante salientar que a energia, a movimentação constante e agilidade das crianças devem-se também a ser socialmente permitido às crianças movimentarem-se e agirem de uma forma mais livre, sem a interferência tão constante de automatismos culturais que marcam nosso corpo no decorrer de nossas vidas. Assim sendo, crianças fariam uso pleno de suas capacidades e vigor corporais, em brincadeiras ou no trabalho que algumas executam desde cedo, segundo as representações de infância presentes nos relatos dos atores. Parece que é a estas características, de cunho físico-corporal, mas eminentemente possibilitadas pelas convenções culturais, que os atores se referem  nos depoimentos: 

...estávamos sempre observando crianças, principalmente nas ruas, para ter um contato maior com os gestuais delas, com sua energia... (D) 
...observei atitudes e deslocamentos de crianças em situação cotidiana e aproveitei algumas coisas na composição da personagem. (A) 

A inspiração veio em primeiro lugar da minha própria vida (sempre fui gordinho) e da observação de crianças na rua, suas motivações e a energia delas. (S) 

Para Clara, comecei a observar as meninas na saída do colégio e na rua. Observando as crianças, sempre encontrava os ‘tipos’, e as Clarinhas. (M) 

As lembranças e rememorações de sua própria história de vida, em busca de uma infância perdida ou esquecida, também aparece como um dos recursos utilizados pelos atores. Mas a preocupação em não compor personagens que fossem meras caricaturas de crianças, não parecer uma criança ‘boba’ ou ‘retardada’ (enfim, características facilmente encontráveis em muitos espetáculos destinados ao público infantil, subestimando a capacidade de percepção dos espectadores mirins) se impõe nos depoimentos. Nos atores que interpretam as crianças destas peças, percebe-se uma preocupação que caminha no sentido inverso, tentando ultrapassar os estereótipos que se encontra com freqüência em grande parte da produção cultural para crianças.  Com isto, podemos crer que o público suposto pelo modo de endereçamento destes espetáculos não é raso, bobo ou impotente. 

Os atores  falam em um pretenso retorno a uma infância já ultrapassada, fase de suas vidas que ficou para trás e que o trabalho de interpretar uma criança em cena incita-os a resgatar. 

As falas seguintes exemplificam as duas questões expostas nos parágrafos anteriores: 

Tentando sempre encontrar a minha própria criança, por isso trago características minhas para a personagem. Minha maior preocupação era de não interpretar uma criança boba, de não parecer um adulto. (A) 

Nos ensaios, apareceram muitas características da minha infância. Algumas eu aproveitei, outras não eram compatíveis com a personagem. Mas, a grande busca, era tentar ser criança, sem subestimar meus 20 anos. O que não foi fácil. Temia ficar uma ’retardada’, não uma criança. (M) 

Conforme vimos, a infância é representada nestes enunciados como sendo ‘o outro’ das identidades adultas destes atores. A marcação da diferença na formação das identidades infantil e adulta opõe estas duas ‘etapas da vida’, culturalmente construídas, sendo que a presença de uma necessariamente exclui a outra. E a maior dificuldade dos intérpretes em seu trabalho de composição era, justamente, resgatar a outridade ‘perdida’, sem fazer dela uma caricatura daquilo que supostamente foi. 

As ‘experiências de si’ de lembrar-se e narrar-se, explicadas por Larrosa (1995) em “Tecnologias do Eu e Educação”, são também elas constituintes de identidades e subjetividades. É no ato da rememoração e da narração que construímos a nós mesmos. E neste pequeno exercício de lembrar e narrar seu processo de criação nos depoimentos, os atores fazem emergir o grande trabalho de constituir a si próprios através da (re)constituição da infância durante a construção dos personagens-criança. 

Interessa-nos, aqui, quais representações de infância emergiram deste híbrido de jogo de memória e blocos encaixáveis de Lego. Através das lentes dos atores sobre seu trabalho, percebemos quem ou o que significa a infância para aqueles que são os agentes do teatro, que comunicam com seus corpos e almas. 

5. Encaminhando-me... mas para onde?!? 

Durante a realização deste trabalho, foi a reconstituição do emaranhado de representações de infância, que estão presentes nos vários níveis de produção e recepção de um espetáculo teatral, que tentei comentar e observar. Ainda que reconheça o quanto é impossível aprofundar-se em assuntos/ tópicos tão debatidos como a infância, e outros tão inexplorados quanto o teatro infantil (e grande parte da produção cultural para criança no Brasil), em um artigo como este, devo mencionar como foi/ está sendo extremamente profícuo e instigante debater estas matérias, construindo relações e desvendando algumas práticas. 

Procurei exercitar meu olhar sobre os artefatos (espetáculos) e alguns componentes de sua estrutura, como o texto dramático, minha assistência às apresentações, características formais e estéticas, além de material periférico como fotos, programas, sites, etc... E meu olhar buscava nestes objetos, como e qual(is) a(s) infância(s) representada(s), o que significava ser (ou estar) criança nas instâncias de um produto que tem como público suposto as crianças. Mas, que crianças são estas que o teatro infantil supõe? Não obtive respostas, nem era este meu intuito. Contudo, vi surgir diante de mim um horizonte de possibilidades imenso, dentro do qual tive de fazer algumas escolhas relativas àquilo que incluiria no trabalho. E estas escolhas foram mediadas por questões que julgo pertinentes aos Estudos Culturais em Educação, além daquelas presentes na bibliografia comentada na primeira parte destes escritos. 

Seguindo os caminhos que se apresentaram a mim, além de lançar meu olhar sobre os personagens-criança (que foram meus objetos específicos neste momento), considerei também como objeto de análise o olhar dos atores que interpretaram-nos. Posso dizer, então, que olho com meus olhos e através das lentes dos Estudos Culturais, primeiramente, aos personagens e, num segundo momento, olho com meus olhos para o olhar dos outros (neste caso os atores) sobre os mesmos objetos, os personagens. E neste trajeto meio confuso e incerto, fui tentando traçar os caminhos da infância, construindo eu mesma minhas trilhas e meus rumos... Percebendo as representações de infância, tentando montar, como em um quebra-cabeça, as peças que compunham a infância (ou as infâncias?) que se faz presente no teatro infantil contemporâneo. 

Encaminho-me, agora, a finalizar este trabalho. Entretanto, está longe de ser esgotada a discussão acerca dos temas e assuntos que perpassam estas páginas. Espero que, a partir desta primeira tentativa, outros caminhos se apresentem, outras trilhas eu percorra, mesmo que não saiba ao certo para onde... Acho que os destinos podem se construir enquanto percorremos os (tantos) caminhos que levam a eles! 

BIBLIOGRAFIA

ARIÈS, P. História Social da Infância e da Família. Rio de Janeiro: LTC, 1981. 
ELLSWORTH, E. Modos de endereçamento: uma coisa de cinema; uma coisa de educação também. In SILVA, T.T.da (org.). Nunca fomos humanos. Belo Horizonte: Autêntica, 2001. p.07-86. 

LARROSA, J. Tecnologias do eu e educação. In SILVA, T.T. da. O Sujeito da Educação – estudos foucaultianos. Petrópolis: Vozes, 1995. p. 35-86. 

PAVIS, P. A análise dos espetáculos. São Paulo: Perspectiva, 2003. 

POSTMAN, N. O desaparecimento da infância.  Rio de Janeiro: Graphia Editora, 1999. 

PUPO, M.L. No reino da desigualdade. São Paulo: Perspectiva, 1991. 

KINCHELOE, J.L. e STEINBERG, S. Cultura infantil – a construção corporativa da infância. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,  2001. 

STEINBERG, S. Kindercultura: a construção da infância pelas grandes corporações. In SILVA, L.H. da. Identidade social e a construção do conhecimento. Porto Alegre: Ed. SMED/ Pref. POA, 1997. p.98-145. 

VIÑAO-FRAGO, A. Alfabetização na sociedade e na história: vozes, palavras e textos. Porto Alegre : Artes Médicas, 1993. 

WALKERDINE, V. A cultura popular e a erotização das garotinhas. In Educação e realidade. Porto Alegre: v.24, n.2, jul./dez. 1999. p.75-88. 

Textos dramáticos: 

MANCILHA, H. Do outro lado da cerca. Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro/ CORAG, 2002. 
MARQUES, A. Abracadabra. (versão final livremente adaptada pelos atores). Arquivo de texto, 2003.

Sites consultados na web: 
www.cbtij.org.br

www.bife.com.br

Notas:

[1] Este trabalho de pesquisa foi realizado junto ao Seminário Avançado Alfabetismos e Infâncias nos Espaços Virtuais e Midiáticos, ministrado pela Profa. Dra. Iole Maria Faviero Trindade, na linha de pesquisa Estudos Culturais em Educação, do Programa de Pós-graduação em Educação da UFRGS, no primeiro semestre de 2003. 

[2]Mestranda do Programa de Pós-graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 
[3]Identificarei as falas  dos atores transcritas ao longo do texto pelas letras maiúsculas correspondentes. Ator de Abracadabra: D, atriz de Abracadabra: A, ator de Do outro lado...: S, atriz de Do outro lado...: M. 

 

Revista Digital Art& - ISSN 1806-2962 - Ano II - Número 01 - Abril de 2004 - Webmaster - Todos os Direitos Reservados

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