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Apontamentos sobre Les Demoiselles d’Avignon e a desintegração do corpo na arte moderna.
Autor: José Afonso Medeiros[1] - saburo@uol.com.br

"O que há de melhor na arte dificilmente pode ser distinguido com a ajuda de leis; tem de ser descoberto por meio de contínua e séria experiência de observação e julgamento, com todos os riscos de erro
(Schapiro, 2001: 16).

Arte é coisa mental!!

Essa famosa afirmação de Leonardo (1452-1519), no contexto da renascença italiana, reivindica para a arte, sobretudo para a pintura, o status de instrumento de investigação filosófica e científica. Assim, o da Vinci entende que a arte não é uma atividade mecânica, mas um exercício do espírito cognoscente as mãos do pintor devem obedecer à mente que perscruta a natureza não só para interpretá-la, mas para inquirir a sua essência. Nessa atividade não há nada de intuitivo ou espontâneo e, portanto, trata-se de um experimento que exige método. Tal citação se tornaria, ao longo dos séculos seguintes e à revelia de Leonardo, o paradigma da arte e da ciência modernas, sobretudo daquela arte que inaugurando o século passado, exprimiu a desintegração do humano na dicotomia milenar entre mente e corpo. Ressalvando-se que a arte das primeiras décadas do século 20 oscilou entre vanguardas intelectualistas e sensorialistas (cf. Philadelpho Menezes, 1994), não há como negar que, em linhas gerais, a cultura da modernidade pressupõe o triunfo do conhecimento intelectual-tecnicista sobre o saber sensível (cf. João-Francisco Duarte Jr, 2001). Leonardo, também neste sentido, adiantou-se quatro séculos.

Se a cultura da modernidade é a sujeição do sensível à autoridade da razão, não foi por acaso que Leonardo 'freqüentou' o divã de Freud (Uma recordação infantil de Leonardo da Vinci, 1910). A grande retrospectiva de Picasso em 1932 (236 telas agrupadas pelo próprio, inaugurada em 15 de junho na galeria Georges Petit em Paris e depois na Kunsthaus de Zurique) foi classificada por Jung como exemplo de esquizofrenia e alienação. Desde então, a interface entre arte e psicologia explora duas vertentes: arte como sintoma (fala de um sujeito) e arte como campo de explicitação da teoria psicanalítica. Em ambas, um único mote: arte como fala, texto, discurso através do qual autor e/ou leitor podem destrinchar seus processos simbólicos.

O artista, como qualquer ser humano, passa a vida nutrindo-se da auto-imagem, daquela imagem esboçada, ao mesmo tempo, pela memória e pelo olhar do outro. Sonhos (1990) – alguns retalhos da memória de Akira Kurosawa alinhavados pelo onírico – é um exemplo cinematográfico dessa afirmação. É fato que uma obra de arte é o discurso de um sujeito, mas como explicar com todas as letras, virgulas, pontos e reticências que um espírito tão atormentado como o de Vincent tenha nos legado uma pintura tão luminosa, tão intensa e tão apaixonada a tal ponto que mesmo o senso comum inebria-se com “a paleta alegre de Van Gogh”? Tudo bem! Já ouvi falar que Eros e Tânatos andam de mãos dadas nos labirintos da psique e que esta encerra processos simbólicos em busca de interpretação.

Creio que seja possível perceber de que modo esses dois tipos de discurso (o da arte e o da psicanálise) se interpenetram ou, para usar o conceito esboçado por Mikhail Bakhtin, que nível de intertextualidade existe neles. Mas como não sou psicanalista, não posso cometer a leviandade de analisar a obra de arte como sintoma (como queria Freud), nem me aproveitar do mote de Lacan (“o inconsciente é estruturado como uma linguagem”) transferindo-o para a esfera da arte.

A obra de arte, como qualquer texto, remete tanto a significações que lhe são anteriores (o processo de criação do autor) quanto posteriores (o processo de percepção do leitor). Muitos são os artistas que afirmam que a obra nunca é a consecução exata da idéia ou do impulso que a motivou, pois o embate do artista com a matéria e os instrumentos, as limitações e a destreza técnicas, o acaso e as influências (conscientes ou inconscientes) são alguns dos elementos que colaboram para a constituição da obra.

A obra é, por assim dizer, um eixo. De tal modo que podemos falar de semioses anteriores (o artista), interiores (a própria obra) e posteriores (o leitor). Observando-se o fato de que determinada obra será sempre acrescida de significações, ela sempre transcendera a mente e o contexto em que foi criada; sua leitura será sempre instável, movediça e pluriforme segundo o tempo, o espaço e os intérpretes.

Justamente por causa da semiose que vai do artista ao fruidor, passando pela obra, é necessário sublinhar que a arte propicia uma visão de mundo e, portanto, é um dos mananciais da psicologia social. Mas a obra de arte, dada a carga histórica e social que possui, não pode ser reduzida, pura e simplesmente, à manifestação do discurso de quem a criou, visto que a interpretação do fruidor leigo se nutre da própria obra e não desta como fala do autor – eis porque me encanto com as urnas funerárias da cultura marajoara sem nem mesmo saber das intenções de quem as produziu. Por isso, considerar a obra de arte em si, antes de avaliá-la enquanto relicário dos sentimentos e da memória tanto do autor quanto do fruidor, é o primeiro passo. É necessário que isso seja dito porque só poderemos vislumbrar os links da obra com o autor ou com o intérprete se conseguirmos, primeiramente, enxergar a obra em si, se nos esforçarmos para percebê-la, lê-la, descrevê-la e interpretá-la. Em síntese, proponho aqui que nos dediquemos à obra de arte como texto nuclear ao redor do qual outros podem ser estabelecidos, inclusive o psicanalítico.

Na relação signo x objeto, aquelas mulheres não são, de imediato, uma referência às prostitutas da rua de Avinyó. Elas são as mulheres daquela tela, únicas, irrepetíveis. São signos, obviamente, que no desenrolar da semiose nos remeterão à zona de prostituição que Pablo Diego José Francisco de Paula Juan Nepomuceno María de los Remedios Crispín y Crispiniano de la Santísima Trinidad, conhecido simplesmente como Pablo Ruiz Picasso (1881-1973), freqüentou em Barcelona. Portanto, toda interpretação deveria considerar, antes de tudo, o aspecto formal da obra não para reiterar o fosso entre forma e conteúdo – eco da ilusão da matéria versus a perenidade da essência desde a filosofia platônica e do corpo corruptível contra o espírito transcendental desde o advento da patrística –, mas para percebermos que a forma já está semantizada. A forma, no ato da percepção é já significação, é já conceito, é já conteúdo.

Quando a obra de arte é figurativa, a conexão signo x objeto nos parece óbvia e imediata, mesmo considerando-se o fato de que a imagem, enquanto signo, revela uma ausência (seu objeto). Parte do projeto estético do modernismo, consciente de que a representação da figura é pura ilusão, procurou minimizar essa ausência ao tentar fazer da própria obra o objeto em si. Referindo-se à abstração nas artes plásticas, Ortega y Gasset em A desumanização da arte (1925) vaticina que “embora seja impossível uma arte pura, não há dúvida alguma de que cabe uma tendência à purificação da arte. Essa tendência levará a uma eliminação progressiva dos elementos humanos, demasiadamente humanos, que dominavam na produção romântica e naturalista. E, nesse processo, chegar-se-á a um ponto em que o conteúdo humano da obra será tão escasso que quase não se verá. Então teremos um objeto que só pode ser percebido por quem possua esse dom peculiar da sensibilidade artística. Seria uma arte para artistas, e não para a massa dos homens; será uma arte de casta, e não demótica” (1991:29).

Percebendo que a abstração retira da pintura toda e qualquer referência exterior imediata, Ortega y Gasset assinala que até o advento do abstracionismo nossos olhos se acostumaram a ver aquilo que estava além da pintura – como se esta fosse uma janela aberta a partir da qual vislumbramos a paisagem, a nós mesmos, aos outros e a tudo aquilo que nos acostumamos a chamar de realidade humana. A abstração na pintura, ao contrário, seria uma janela fechada em si mesma que nos obriga a percebê-la enquanto tal, sem nenhuma referência extrínseca. Naturalmente, Ortega y Gasset não está acusando a pintura abstrata de desumanizar a arte. O que ele quer dizer é que o senso comum apegou-se demasiadamente à figura – e nem poderia ser diferente, visto que a tematização figurativa foi, por muitos séculos, apreciada como a própria razão de ser da pintura.  Por esse motivo, o filósofo espanhol dá razão aos artistas modernistas (não sem um certo sentimento de perda) por quererem purgar da arte a pretensão ilusionista, por pretenderem mostrar que a arte não é um espelho… A arte é o que é: materialidade, antes de qualquer coisa. Um contraponto a essa visão de Ortega y Gasset encontra-se no ensaio Sobre a humanidade da pintura abstrata (1960) de Meyer Schapiro.

Na contramão desse processo “desumanizador” que a abstração provocou nas artes plásticas, o cinema, apesar de ser uma linguagem nascida em plena modernidade e de ter flertado em muitas ocasiões com as estéticas das vanguardas históricas – basta lembrarmo-nos de Eisenstein e Buñuel –, de quando em vez nos oferece a possibilidade de reflexão psicológica por ser aquele tipo de “janela” que se abre sobre o demasiado humano em nós e nos outros. Num certo sentido, o cinema herdou da pintura o “trompe l’oeil”, a ilusão engenhosa que projeta a aparência de realidade e, justamente por isso, toca fundo em nossos afetos. Provavelmente, o cinema é a única manifestação que perpassou a modernidade sem voltar-se demasiadamente para o próprio umbigo, revelando-se como “uma arte para a massa dos homens”. Nesse ínterim, pintura, escultura, música, literatura, teatro e dança foram com muito mais sede ao pote da auto-referência, da arte pela arte, da arte contra a arte, da arte como puro conceito – no vaticínio de Ortega y Gasset, artes de castas e não demóticas.

Advertências feitas, e (in)consciente do fato de que não sou um especialista em cinema, muito menos em psicanálise, limitar-me-ei a compartilhar com vocês um exercício de leitura (histórica e semioticista) de uma determinada obra de arte, mais especificamente de uma pintura, aquela que o crítico e historiador italiano Giulio Carlo Argan definiu como “o gesto de revolta com que se abre o processo revolucionário do Cubismo” (1992: 426) e que, quase invariavelmente, aparece como a primeira imagem reproduzida nos capítulos sobre as vanguardas históricas em livros de arte. Vou falar da obra que reitera, na história da pintura ocidental, a decomposição da figuratividade – mesmo que esta reapareça gloriosa após cada fúnebre prognóstico. Mas antes de nos determos especificamente nessa obra, há que assinalar, na pintura, a moldura histórica na qual se desenvolve a lenta agonia do naturalismo.

A questão icônica (a semelhança entre signo e objeto) reinsere-se furiosamente na arte ocidental a partir da renascença italiana e atravessa com diferentes matizes o barroco, o neoclassicismo, o romantismo, o simbolismo e o realismo. Na segunda metade do século 19, o impressionismo, voltando-se contra a pintura acadêmica produzida em estúdio e reverenciando as pinceladas vigorosas de Delacroix e o realismo de Courbet, vai a campo em busca dos efeitos luminosos e rarefeitos e privilegia os temas prosaicos: o burburinho das ruas, dos cafés e dos prostíbulos, as cenas e os cenários familiares da polis e bucólicas paisagens rurais e litorâneas. Através da influência exercida pela gravura japonesa, os impressionistas descobrem as cores nas sombras, a expressividade da linha e das cores chapadas, a descentralização da figura na composição e uma perspectiva diferente – a gravura japonesa foi a primeira concepção estética alienígena a influenciar decisivamente a cultura visual européia.

Já no pós-impressionismo, os experimentos de Van Gogh, Gauguin e Cézanne priorizaram a sintetização da cor, da forma e do espaço. Apesar de ainda demonstrarem um certo apego à integridade visível do objeto, são esses processos que promoverão a corrosão do naturalismo e seus efeitos de verossimilhança estrita enquanto paradigma da representação pictórica. Por um outro lado, os experimentos poéticos de Stéphane Mallarmé, atingindo a linearidade da escrita e assumindo a “magia das letras” já prenunciavam aquela atitude das vanguardas: o voltar-se para a materialidade da obra, para seus elementos intrínsecos. E nunca é demais lembrar o fato de que as idéias de Darwin, Marx e Freud, nessa mesma época, configuram um cenário que acelera o desmanche de uma razão humana que se pretendia capataz da natureza e da cultura.

O primeiro tiro de misericórdia na lenta agonia da figuratividade foi detonado em 1907 com a tela Les demoiselles d’Avignon de Pablo Picasso. É evidente que os experimentos dos pós-impressionistas e dos expressionistas já estabeleciam os primeiros passos nessa direção, mas é Les demoiselles que vai aplicar o mais forte golpe jamais desferido contra o poder ilusório da figura; com suas pinceladas fauves e expressionistas – mas suscitando problemas compositivos que o cubismo iria enfrentar dali em diante –, inaugura a decomposição da ilusão de realidade no espaço bidimensional. Esse golpe pode ser caracterizado pelo violento desprezo à integridade da figura, à ilusão espacial e à unidade da composição – com uma só cajadada (ou várias pinceladas), Picasso implode três pilares claudicantes da pintura. Pode-se mesmo afirmar que aqui começa a “desumanização da arte”, segundo o ponto de vista de Ortega y Gasset.

Essa tela – segundo alguns contemporâneos, considerada inacabada por Picasso –, já nos diz muito sobre o modernismo: uma experimentação, uma poética que se revela menos no resultado do que no processo (não foi à toa que ela só foi exposta em 1916). Os experimentos radicais de Picasso em Les demoiselles amadurecerão imediatamente, pelo menos em termos formais, em Três mulheres (1908) e ainda se fazem notar em Guernica (1937). Apesar do passo decisivo dado em direção à abstração, diga-se, desde já, que toda a obra de Picasso nunca abandonou completamente a figuração. Sua obra, além do mais, é perpassada por amplas referências sociais, literárias e visuais e Les demoiselles não constitui exceção.

Voltemo-nos, primeiramente, para a descrição de Les demoiselles d’Avignon (“As senhoritas de Avignon”).

Nesse óleo sobre tela de 244cm x 233cm (um quadro de dimensões inusitadas na obra de Picasso até aquele momento) vemos cinco figuras femininas em meio a um emaranhado de formas angulosas preenchidas por um experimento cromático que vai do ocre ao branco. A figura à esquerda aparece de perfil (exceto seu olho) e ela é toda ângulos. Seu peito é quase um losango e sua perna em primeiro plano termina em um pé descomunal (ela parece ter sido flagrada no ato de caminhar). Do alto de sua coxa descem linhas que visualmente ultrapassam a borda inferior do quadro. Embora seu corpo tenha sido pintado em tons claros, sua cabeça foi intencionalmente escurecida – com isso, a figura sofre descontinuidade, como se o rosto não pertencesse àquele corpo. Do alto de sua cabeça surge uma mão espalmada que não podemos definir como sua. Em contraposição, seu braço direito (estendido) termina numa mão fechada.

A segunda figura, imediatamente à direita da primeira e mais próxima do centro do quadro, aparece frontalmente. Seu corpo também é anguloso, embora mais curvilíneo que sua antecessora. Sua postura está em franco desequilíbrio, pois sua perna esquerda dobrada sobre a direita não lhe dá sustento; a essa posição inusitada das pernas, some-se o braço direito erguendo-se acima e por trás da cabeça e o que vemos é uma postura claramente inverossímil. A cabeça é representada frontalmente, embora seu nariz (diretamente ligado à sobrancelha) esteja de perfil. Seu olho esquerdo, esbugalhado, parece ultrapassar a lateral do rosto; suas orelhas são desproporcionais; o vértice do ângulo no lugar das axilas inicia a linha curva dos seios. Ficamos em dúvida se a figura está completamente nua, pois as linhas perceptíveis no baixo ventre tanto podem sugerir uma roupa íntima como podem simplesmente delimitar a região pubiana. Considerando-se que essa região tem a mesma cor do restante do corpo, a primeira hipótese é mais plausível, sobretudo porque o panejamento que cobre sua coxa é de outra cor; entretanto, a genitália não está definida e isso corrobora a segunda hipótese… Instaura-se a ambigüidade. Sua mão esquerda parece segurar um pano que está sendo levantado para mostrar um joelho e parte da coxa.

A figura central (terceira da esquerda para a direita) aparece com o corpo direcionado para a direita enquanto que sua face volta-se para a esquerda. Com os dois braços suspensos e dobrados por trás da cabeça, o esquerdo é bem maior que o direito (aquele, pela posição do corpo, “deveria” parecer menor que este), efeito esse que quebra completamente a noção de profundidade. Seu rosto, encimado por um penteado, segue as convenções da figura anterior: olhos esbugalhados, nariz de perfil atrelado à sobrancelha, boca definida por um simples traço horizontal, orelha esquerda em forma de oito. Mesmo que pareça estar atrás da segunda figura, é bem maior que esta (o que acentua a quebra de profundidade). A linha interna do braço direito continua sinuosamente até definir o seio direito (o esquerdo é sugerido por duas linhas retas). Ela é claramente a única figura que tem algo cobrindo o sexo, um tecido que resvalando nos quadris, encobre boa parte de suas coxas, mas revela um joelho. Encobrindo seus pés, algumas frutas (talvez uvas, maçã, pêra e melancia) sobre um fundo branco que sugere uma toalha de mesa. Essas três primeiras figuras, embora claramente distintas, parecem integrar um só grupo. Entre estas e a quarta figura aparece o experimento cromático (predominantemente azul e branco) de maior contraste em relação à cor dos corpos, o que acentua a divisão das figuras em dois blocos.

A quarta figura (voltada para a esquerda, no canto superior direito da tela) é completamente distinta das três primeiras: seu corpo é quase que completamente definido por linhas retas; seu seio direito é claramente um losango (desproporcional ao tamanho do seio que a figura deveria ter) rebatido num outro losango delimitado por uma cor homogênea e cujo vértice inferior coincide com a altura da cintura. Sob seu braço esquerdo há uma região escurecida que mais sugere a sombra desse mesmo braço (ou a axila) que um seio. A cabeça difere completamente das anteriores: com muito mais contraste e diversidade cromática, percebemos um nariz retilíneo e escultórico, o olho esquerdo sem detalhe, completamente recoberto por uma única cor… Mais que um rosto, uma máscara. De todas as figuras é a que parece estar mais distante do espectador.

Finalmente, a quinta e última figura a ser pintada (na metade inferior direita do quadro) é a mais intrigante de todas elas: é a única que está sentada, de costas para o espectador, com os braços apoiados nas pernas abertas. As linhas que definem seu corpo são curvilíneas em contraste com o retilíneo da figura anterior, mas em consonância com os corpos das duas figuras centrais. Mesmo estando de costas (percebemos isso claramente na linha das nádegas e no pedaço de um seio descomunal entrevisto sob a axila esquerda), seu braço esquerdo parece ter sido torcido na altura do cotovelo para parecer de frente e terminando naquilo que seria uma mão apoiando um rosto frontal. Nesta face (claramente derivada da figura acima dela), intencionalmente deformada, os olhos estão desalinhados e têm cores distintas. O traçado do nariz se inicia na junção das duas sobrancelhas e se alarga para tomar conta de quase metade do rosto. A orelha é sugerida somente pela extensão da cor do rosto e contornada por uma região escura que representa a cabeleira. Este rosto, também menos face que máscara, é equivalente, em tamanho, às suas costas. Sua perna esquerda também está parcialmente escondida pela natureza morta; um panejamento sob suas nádegas parece encobrir o banco onde está sentada. Considerando-se as linhas e os procedimentos que a conformam, esta figura parece ser a síntese das anteriores.

Em todas as figuras, o artista parece ter buscado um meio termo entre o achatamento e o modelado, a distorção e o literal, a diluição e a concentração.

Pablo Picasso. Les Demoiselles d'Avignon. 1907. Oil on canvas, 8' x 7' 8" (243.9 x 233.7 cm).

Pablo Picasso. Les Demoiselles d'Avignon. 1907. Óleo sobre tela. MoMA, New York, USA.

Essa obra de Picasso (adquirida pelo MoMA de Nova York em 1939) angariou imediata notoriedade entre artistas e boêmios que se reuniam em Montmartre. Daniel Henry Kahnweiler, marchand e editor de Picasso e dos cubistas, “recordou mais tarde que, a todos os que a viram, a pintura pareceu ‘uma coisa louca ou monstruosa’, ao passo que a amiga do pintor, Gertrude Stein, relatou que o colecionador Sergei Shchukin quase foi às lágrimas, lamentando a perda para a arte francesa [sic]” (apud Cottington, 1999: 12).

De Delacroix a Gauguin, foi-se consolidando uma determinada prática artística que se aprazia em desmantelar as convenções morais, sociais e estéticas da urbanidade capitalista moderna – prática essa que angariou defensores apaixonados de inegável percepção crítica como Victor Hugo, Charles Baudelaire, Emile Zola e Guillaume Apollinaire. Mesmo dentro desta comunidade há muito acostumada com as atitudes iconoclastas, Les demoiselles causou um escândalo retumbante, inclusive entre os mais íntimos do pintor espanhol. Picasso, espírito sagaz e ambicioso, percebeu imediatamente que naquela tela havia uma revolução embutida.

A primeira observação que deve ser feita em termos compositivos é a completa implosão da noção de plano. A perspectiva euclidiana desaparece completamente, e embora a distribuição das figuras na tela sugira “o que está atrás do que”, os planos são simultâneos e superpostos e não sucessivos. É preciso assinalar que a perspectiva geométrica no plano bidimensional não é uma representação do real tal como o vemos, mas uma suposta representação do nosso modo de ver sob um único ponto de vista, isto é, uma representação equivocada da visão, visto que esta é esférica e móvel, enquanto a perspectiva é linear e imóvel. Assim, negando a perspectiva geométrica, Picasso reinstala na pintura a mobilidade do olhar, neste caso guiado pelas linhas diagonais que emprestam um dinamismo único à composição.

Disse anteriormente que o quadro de Picasso reinstala a mobilidade do olhar na pintura. A apresentação simultânea das diversas facetas do objeto que o Cubismo explorará a partir de Les demoiselles constitui uma experiência “cinematográfica” na pintura. Cinematográfica porque, num certo sentido, movimenta o plano bidimensional, tensiona esse plano, fragmenta o objeto, estilhaça o olhar ao obrigá-lo a perceber suas várias facetas – como se a câmera o flagrasse de alto a baixo, de frente e de costas, por baixo e por cima. Além disso, ali está presente o corte e a montagem, tal como na técnica cinematográfica.

Com uma variedade cromática impressionante, na tela de Picasso podemos observar que as figuras são entremeadas por um experimento formal e cromático que não nos remete a nenhum cenário real (nos desenhos preliminares pareciam cortinas). Portanto, esse “fundo” não determina o local da cena… Tanto pode ser o interior de um bordel como um piquenique. A idéia de mulheres nuas ao ar livre não é absurda se lembrarmos Le déjeuner sur l’herbe (“Almoço sobre a relva”, 1863) de Manet ou as banhistas de Cézanne como precedentes imediatos (os desenhos preliminares deixam clara a influência deste último), mas trataremos disso mais adiante.

As figuras são quase que completamente chapadas, praticamente destituídas de volume e quase sem efeitos de luz e sombra (exceto nas duas mulheres da direita). Tanto nas figuras quanto nos espaços entre elas há uma tendência à geometrização – outra influência de Cézanne, que Picasso chamava de “meu único e exclusivo mestre (…), o pai de todos nós” (Brassaï, 2000: 112). Entretanto, a diferenciação entre figura e fundo ainda permanece. Se as figuras têm uma certa uniformidade de cor, forma e textura, o mesmo não acontece com os espaços entre elas – muito mais diversificado e fragmentado, como se o pintor tentasse equilibrar a composição através do binômio unidade (nas figuras) versus fragmentação (no fundo). É esse efeito que faz das “senhoritas” uma passagem ainda tateante da figuratividade à abstração. Embora a figura humana ainda seja reconhecível, no espaço entre elas não há nada que nos remeta a um cenário naturalista. É ainda Kahnweiler quem esclarece os porquês dessa tentativa:

porque haviam descoberto que o verdadeiro caráter da pintura e da escultura é o de um manuscrito. O produto dessas artes são signos, emblemas para o mundo exterior, e não espelhos que refletem o mundo exterior de maneira mais ou menos distorcida. Uma vez que isso foi reconhecido, as artes plásticas foram liberadas da escravidão inerente aos estilos ilusionísticos” (apud Frascina, 1998: 102).

Mesmo que as referências ao corpo feminino sejam claramente perceptíveis, não existe aqui uma deliberada intenção do autor em iludir o expectador. Da esquerda para a direita as figuras vão sendo decisivamente decompostas, reduzidas a formas elementares. Se a primeira (à esquerda) ainda resguarda uma certa proporção física, a figura da direita (a última a ser pintada) é grotesca em sua deformidade. Em toda a tradição européia de representação pictórica do corpo Les demoiselles configura-se como o mais contundente golpe contra a integridade e a estabilidade física, a favor da fragmentação – um verdadeiro esquartejamento. Nesse sentido, essa tela é a versão pictórica do Frankenstein de Mary Shelley e prenuncia a dilaceração do corpo pela ciência moderna – doravante a medicina será exercida por especialistas em cada parte do corpo –, refletindo, por um lado, a linha de produção mecanicista da revolução industrial e, por outro, a idéia de um artista-cientista que subverte as leis da vida para criar vida. Les demoiselles representa o corpo como um ente mutilado, despedaçado, negado em sua completude, mas completamente vívido – aqui, naturalismo e figurativismo não são necessariamente sinônimos. Segundo o próprio Picasso,

Antigamente, as pinturas eram finalizadas por etapas. Cada dia trazia algo novo. A pintura costumava ser uma soma de ações. No meu caso, uma pintura é uma soma de destruições. Eu faço um quadro e depois o destruo” (apud Puente, 1987).

Essa “destruição” de que fala Picasso é patente em Les demoiselles através da ousada representação do corpo feminino – olho de frente em cabeça de perfil, narizes de perfil em rostos frontais, figura de costas que olha o espectador de frente. Existe nessas figuras, ainda, certa sinuosidade; mas há também cortes abruptos, superfícies cúbicas, ilustrações de corpos claramente encimados por cabeças escultóricas… É como se os corpos tivessem passado por uma cirurgia antiestética, como se eles fossem parcialmente desenhados e o restante modelado a machadadas. Em outras palavras, o artista espanhol cria corpos alinhavando a tradição curvilínea do desenho europeu com a tradição retilínea da escultura africana. O efeito não é de síntese, mas de antítese; não é de unicidade, mas de ambigüidade; não é de sedução, mas de estranhamento.

Mas mesmo o corpo fragmentado não é nenhuma novidade na arte européia. Desde a Vênus de Milo e a Vitória de Samotrácia, nossos olhos talvez já estejam há muito acostumados com o desmantelamento do corpo. A diferença é que tanto na Vênus quanto na Vitória a amputação foi imposta pelo tempo e pelo descuido da conservação, enquanto nas demoiselles o corpo é completamente despedaçado já em seu nascedouro – naquelas a amputação é efeito; nesta, é causa.

A referência à Vênus não se dá por acaso. As figuras femininas na tela de Picasso representam, também, um amplo e intenso diálogo com a história da arte. A mulher na extrema esquerda remete-nos diretamente à lei da frontalidade da pintura egípcia, pois embora esteja completamente de perfil, seu olho não está. As duas figuras mais ao centro (as únicas com panejamento), além de serem uma referência à tradição do nu na iconografia ocidental desde a escultura grega arcaica, são também uma visitação ao mosaico bizantino (prestem atenção em seus olhos). Finalmente, as duas figuras na extrema direita são claramente influenciadas pelas máscaras rituais africanas que Picasso conheceu nos ateliês de Matisse, Derain e Vlaminck no final de 1906 (embora Picasso sempre tenha afirmado que só viu as esculturas africanas depois de terminar Les demoiselles). John Golding assinala, ainda, que

Sem as realizações de Gauguin, por exemplo, é possível que essa tela nunca tivesse chegado a existir. Nas formas angulares alongadas, e na luz branca e áspera, há um reflexo do interesse de Picasso em El Greco. Há elementos tirados da pintura dos vasos gregos, da escultura grega arcaica e da arte egípcia. Depois, existe uma referência direta às convenções faciais da escultura ibérica nas cabeças das duas figuras centrais” (Golding, 1991: 38).

Aliás, essas referências visuais, de impressionante diversidade, são constantes na prolífica carreira do artista espanhol, dado seu fascínio pela obra de outros artistas, como Velázquez e Matisse. O contato com seus pares (anteriores e contemporâneos) sugeria-lhe experimentações que levavam essas influências a extremos inesperados – Picasso dizia: “Eu não procuro, acho”. Nesse sentido, as cinco “senhoritas” são uma espécie de resumo dessa permanente referência à história da arte – prática hoje em dia chamada de “releitura” da obra de arte. Através dessa tela, Picasso reitera o fato de que a pintura pode ser um discurso sobre a própria pintura através de duas possibilidades: a citação da obra de outrem e a redução da pintura a seus elementos intrínsecos (linha, cor, forma, textura, contraste, gestualidade plasmada no traço).

Das figuras femininas, somente a central ostenta um penteado elaborado. Todas as outras trazem seus cabelos soltos, como se estivessem numa cena íntima, um momento em que não estão envolvidas com clientes – a natureza morta reitera essa percepção. Cenas “caseiras” num bordel não eram novidade na época; já por volta de 1900, havia muitas fotografias de grupos de prostitutas onde estas aparecem em poses estereotipadas ou flagradas no momento em que se vestem e se maquiam para o ofício. Mesmo assim, As senhoritas de Avignon que Picasso pintou, com seus olhos arregalados e sua fealdade instalada na deformidade física, constituem talvez a mais explícita expressão de uma sexualidade nua e crua jamais verificada em toda a história da pintura européia até aquele momento (mesmo considerando o furor causado pela Olympia de Manet em 1863). Ali, o grotesco, o disforme e a sexualidade escancarada estão intimamente entrelaçados – sabe-se que Picasso tinha pavor de contrair sífilis, doença sexualmente transmissível que deformava completamente os infectados. O artista espanhol chamou Les demoiselles de “minha primeira pintura exorcista” (Cottington, 1999: 19). Outra semelhança é perturbadora: compare-se os olhos esbugalhados das duas senhoritas centrais às fotos e auto-retratos de Picasso dessa mesma época… É tentador, neste sentido, recorrer à célebre frase de Flaubert: “Madame Bovary sou eu”.

As senhoritas de Avignon aludidas no título referem-se às “senhoritas” de um prostíbulo da “calle d’Avinyó” em Barcelona – o título foi inventado algum tempo depois pelo poeta e crítico André Salmon. A esse respeito, o próprio Picasso, em conversa com Kahnweiler, esclarece:

Les Demoiselles d’Avignon, como esse título me irrita! Você sabe muito bem que foi [André] Salmon [poeta e crítico] quem o inventou. Você sabe muito bem que o título original desde o início era O bordel de Avignon. Mas sabe por quê? Porque Avignon sempre foi um nome que eu conheço bem e que faz parte da minha vida. Eu vivi a menos de dois passos da Calle d’Avignon [Carrer d’Avinyo, uma rua na famosa zona de meretrício de Barcelona, a cidade em que Picasso freqüentou a escola de arte], onde eu costumava comprar meu papel e minhas aquarelas, e também, como você sabe, a avó de Max [Jacob] veio originariamente de Avignon. Nós costumávamos fazer muitas piadas sobre a pintura. Uma das mulheres era a avó de Max. A outra Fernande (Olivier, companheira de Picasso à época], a outra Marie Laurencin [a pintora], todas num bordel em Avignon… A propósito, de acordo com minha idéia original, deveria haver homens nela – você viu os desenhos. Havia um estudante segurando um crânio [um memento mori]. E também um marinheiro. As mulheres estavam comendo, daí a cesta de frutas que deixei na pintura. Depois eu a alterei, e ela tornou-se o que é agora”. (Kahnweiler [Huit entretiens avec Picasso], 1952: 24, apud Francis Frascina, 1998: 109).

Ora, se o título não foi dado por Picasso, até que ponto ele reflete a subjetividade do autor? Até aquele momento, e antes que o “sem título” se tornasse o rótulo preferido dos artistas contemporâneos, o título de uma pintura era uma forma de se iniciar a leitura da própria obra, era um invólucro que deixava pistas sobre as intenções do pintor – Duchamp, o iconoclasta por excelência, afirmou “que o título é um elemento essencial da pintura, como a cor e o desenho” (Paz, 1997: 10). Se Picasso aceitou o título, é sinal de que, mesmo a contragosto, concordou com ele, ou seja, aquiesceu que o título era um rótulo propício à sua obra. Por que uma clara referência visual à cultura africana e à arte européia relaciona-se verbalmente às prostitutas de Barcelona? Sem esse título, as prostitutas seriam qualquer prostituta, sem relação com um lugar específico. Seria uma maneira de caracterizar como grotesca a “mais antiga das profissões”? Ou seria uma forma de confronto entre a liberação sexual idealizada do “continente negro” e a sublimação por muitos apontada como “marca” da civilização européia?

A quantidade de estudos preparatórios para Les demoiselles demonstra o quanto Picasso refletiu e questionou sua composição. Em vários trabalhos preliminaries produzidos na primavera de 1907, já aparecem a figura sentada na extrema direita (quase sempre na mesma posição em que surge no quadro) e a figura central com os dois braços levantados (variando a localização conforme o esboço). Nos desenhos as figuras femininas são puras curvas e não há detalhamento nos rostos. Em mais de um desenho, há a presença de homens vestidos, sobretudo de um de perfil na extrema esquerda (substituido por uma mulher também de perfil). O que Picasso pretendia exprimir colocando um homem que segura um crânio (desde sempre um símbolo da morte e da transitoriedade da vida) num cenário de bordel? Ou o que fez Picasso desistir das figuras masculinas e, sem que isso estivesse patente nos desenhos preliminares, acrescentasse as máscaras africanas? Quem se habilita a responder as interrogações feitas nestes dois últimos parágrafos?

Com Les demoiselles questiona-se definitivamente a ilusão da realidade, a noção de equilíbrio, certa concepção de beleza e de “melhoria” da natureza presente nos ideais helênicos, renascentistas e iluministas. Em contrapartida, reinsere-se a fragmentação, a diversidade e as apropriações interculturais.

A representação da sexualidade, a lenta agonia da figura, a geometrização do espaço pictórico… Nada disso foi iniciado pelas “senhoritas”. Mas essa tela reuniu, como nenhuma outra antes dela, todos esses “sintomas” da modernidade.

Por fim, algumas linhas sobre a ascendência imediata de Les demoiselles d’Avignon enquanto representação do nu feminino.

A tradição do nu na iconografia européia expressa uma sensualidade largamente escamoteada como referência ao mito e é idealista e pudica; não são representações de mulheres… são deusas, vênus, evas, arquétipos. A partir do século 19 a representação do nu se encarna literalmente. Em Ingres e Delacroix, ainda percebe-se a referência ao mito, mas o corpo feminino é sensualmente explícito, é carne de mulher e não de deusa. O Almoço sobre a relva e a Olympia, ambas de Manet, causaram escândalo por expressarem uma sensualidade que não exita em expor-se, em encarar o espectador de frente, sem nenhum resquício do pudor burguês (nesse sentido, elas são a ascendência imediata das senhoritas de Picasso). Mulheres banhando-se é um assunto pictórico recorrente nesse período, particularmente em Ingres, Renoir e Cézanne. Nelas, a intimidade aflora, o corpo já não é o corpo venusiano que paira sobre as ondas. Da Olympia de Manet, Cézanne fará Uma moderna Olimpia (1874); Seurat, Picasso e Magritte, dentre muitos pintores, reinterpretarão a beleza adolescente de A fonte (1856) de Ingres. Degas e Lautrec mostraram bailarinas e prostitutas em cenas prosaicas, destituídas de qualquer glamour nas coxias e nos bordéis. Com Utamaro, Lautrec, Cézanne, Matisse e Picasso o corpo feminino se torna rarefeito: é pura sugestão, linha, forma, cor, pincelada.

Mas nenhum desses exemplos é comparável a L’Origine du monde (“A origem do mundo”, 1866) de Courbet. Essa pequena tela (46cm x 55cm) mostra o baixo ventre feminino, de pernas abertas, com a vagina encimada por pêlos pubianos em primeiro plano. Não existe na história da pintura ocidental uma representação tão explícita e desavergonhada do órgão sexual feminino – mais que erótica, ela é obscena. Os nus mitológicos são destituídos de pêlos pubianos, o que acentua por contraste o realismo fotográfico do quadro de Courbet. Essa tela ficou muito tempo “escondida” em mãos de colecionadores – encomendada pelo diplomata turco Khalil Bey, pertenceu também a Lacan –, o que já indica a que tipo de público destinava-se: o masculino, para um deleite privado.

Tal como a tela de Courbet, Picasso exitará por longos anos em expor Les demoiselles… Em ambos os casos, a sensualidade nua e crua destinava-se aos olhares de poucos e íntimos. Mas as senhoritas de Picasso irão para a parede de um museu bem antes de A origem do mundo ter o mesmo destino.

Em Les demoiselles, Picasso substitui a aparência naturalista leonardiana (com suas idéias de proporção e beleza física) por um tipo de distorção anatômica completamente engendrada em sua mente – o que não deixa de ser um paradoxo para um homem tão sensível aos encantos femininos. Embora tenha sepultado muitos dos legados da renascença com Les demoiselles, Picasso não deixa de pagar tributo à estética renascentista, pois com essa pintura prolonga-e a tradição da composição geometrizada (cubismo, construtivismo); embora não mais através da perspectiva, em Les demoiselles ainda estão patentes os princípios geométricos de organização do espaço pictórico; a geometria (ainda) dá as cartas, a pretensão matemática de purificação/abstração das formas ainda é uma constante. A geometria, enquanto lei que ordena o espaço pictórico e privilegia a abstração (no sentido de princípios gerais e invisíveis que conformam a singularidade da experiência sensível), sobreviveu ou, melhor dizendo, reiventou-se. Essa análise é corroborada pela afirmação de Golding:

Picasso viu que a fragmentação racional, freqüentemente geométrica, da cabeça e do corpo humanos empregada por tantos artistas africanos poderia fornecer-lhe o ponto de partida para a própria reavaliação de seus temas” (Golding, 1991: 40).

Leonardo dissecava cadáveres, verificava as articulações de ossos e músculos para compreender o dinamismo do corpo e expressá-lo em sua pintura. Picasso, a partir da influência da arte africana, os decompõem, os fragmenta, os torna mais abstratos e, de certo modo, mais conceituais – como diria Octavio Paz (1997: 10), “uma cirurgia mental”. Em Leonardo, uma lição de integridade física através da expressão icônica. Em Picasso, uma ode ao corpo multifacetado através da expressão simbólica.

Finalmente, nas senhoritas do pintor espanhol a geometria não se instala só no espaço, mas penetra o corpo… De modo que, renegando a perspectiva linear, instaura outros pontos de vista, inaugura outras perspectivas menos lineares, mas ainda geométricas.

“Arte é coisa mental”.

Leonardo não sabia que, mesmo contradizendo-o, Picasso lhe daria razão.

Referências Bibliográficas:

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Nota:

[1] José Afonso Medeiros Souza, mestre em Arte-Educação pela Universidade de Shizuoka (Japão) e doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP, é professor de Estética e História da Arte do Deptº de Arte e atual coordenador do Núcleo de Artes da Universidade Federal do Pará.

Revista Digital Art& - ISSN 1806-2962 - Ano II - Número 01 - Abril de 2004 - Webmaster - Todos os Direitos Reservados

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