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Percepção Estética: um diálogo no Sertão.
Autor: Kátia Maria Bastos [1] - katiabasttos@yahoo.com.br

Resumo:Percepção Plástica: um diálogo no sertão tem por fio condutor a fenomenologia ao lidar com o artista, o percebedor de sua obra na sua relação com o mundo. O objetivo é compreender o fenômeno perceptivo no contexto do Projeto Terra e identificar aspectos do  imaginário do público e da história do lugar onde vivem: o sertão é uma região de forte carga simbólica na formação de nossa identidade cultural e na discussão a respeito do processo de modernização da nossa sociedade. O elemento gerador de tais reflexões, tanto por parte do pesquisador, como por parte do público, é a obra escultórica de Juraci Dórea exposta a céu aberto nos descampados do sertão baiano.

Palavras-chave: arte contemporânea, arte pública, percepção plástica, recepção estética, sertão.

Abstract: Plastic perception: a dialogue on Hinterland is conducted by phenomenology when dealing with the artist, the perception of his work and its to the world. The research  aim is to understand the perceptive phenomenon within the Earth Project and identify, from then on, people’s imagination different aspects and history of the place they kive.: the hinterland, the region where the very meaningful symbology has strongly contributed to our cultural identity and is also concerned to our societ modernization process. The element that generates those reflections, as much to the research as to the public is Juraci Dórea’ sculpture work displayed at the open space in the hinterland of Bahia state.

Key-words: contemporary art, public art, plastic percetion, esthetical reception, hinterland.

 

 

-  “O que é isso? É pra explodir o lajedo é?”
-  “É algu’a coisa mostrano. Porque se você olhar isso aí não siglifica   nada.”
- “É símbolo dum produto feito pela natureza e destruído pelo home. É um trabai.”
- “Tô veno uma armação É uma curiosidade que aparece.”
- “É um home montado, encourado. Podia ser. Mas não tô achano mutchas parença.”
- “Senti u’a coisa que nun era mais. Aí perguntei às pessoas e vi. Acho que  ele é um artista.”
-“Ele deve tá querendo dizer uma coisa bonita pra cidade. Ele tem a arte dele. E com certeza não tem uma visão ruim.”

Essas são algumas das tantas falas que compõem o diálogo entre os passantes das estradas, vilarejos e pequenas cidades do sertão da Bahia. Num pequeno desvio de sua rota habitual, essa gente simples pára, olha e se pergunta sobre o que é “aquilo”. Trata-se do Projeto Terra de Juraci Dórea com sua obra escultórica exposta nos ermos da caatinga. De fato, a arte é uma fonte inesgotável de percepções, interpretações e questionamentos. E esse diálogo é uma pequena demonstração disso. A partir de uma pesquisa de campo com entrevistas e documentação fotográfica, busco uma aproximação ao desconhecido sertanejo enquanto público de arte em meio às suas atividades cotidianas e desenvolvo um estudo perceptual da obra escultórica de Juraci  Dórea. Seu sonho é transformar o sertão num museu a céu aberto, invertendo o processo de circulação da obra de arte que se concentra em locais especializados dos grandes centros urbanos.

Já no início da sua carreira, na década de 1970, Juraci abordava o imaginário sertanejo em sua obra. Mas constatando que a carga simbólica do seu trabalho não encontrava lugar no mercado de arte, devolve sua obra para o lugar que o inspira: o próprio sertão. Ele diz: “Chega! Deixa lá as galerias, os museus, os salões e vamos mostrar para o próprio sertanejo para ver o que acontece[2]” Nasce então, em 1981, o Projeto Terra. É a estética da sinceridade, como afirma o poeta Antônio Brasileiro (1987):

Sua arte não é bem para ser vista, muito menos ser aplaudida. A idéia é esta: expõe-se (melhor seria dizer: inexpõe-se) num deserto; salva-se pelo menos a integridade. [...] Eis a estética da sinceridade. [...] Eis a estética em estado de inocência.” Interrogado sobre se ele sabe o que acontece quando mostra sua arte para o sertanejo dos descampados baianos, Juraci responde: “Não. A minha preocupação era mostrar, registrar, falar. Eles entendiam à  sua maneira e isso era suficiente para mim.”  [3]

A arte brota da vida interior e subjetiva do ser humano, mas só se realiza na comunicação com o outro e o mundo. A arte exige diálogo. Em vista disso, Juraci Dórea, nascido em Feira de Santana, cidade apelidada de Princesa do Sertão, parece buscar uma síntese entre sua identidade sensível - alimentada por um cotidiano repleto de história de vaqueiros, encourados, cantadores, cangaceiros, tabaréus, etc. - e sua formação erudita, as convenções de linguagem e de mercado próprias ao modelo industrial, urbano e elitista.

Na sua fase inicial o Projeto Terra contava com três pontos básicos: a escultura de couro e madeira, a pintura feitas em quadros e murais e um trabalho complementar de documentação imagética. As pinturas eram feitas em tela comum ou sobre o couro em substituição à tela. Os murais eram feitos na própria  caatinga, no oitão das casas, etc . Entre os fatores que afirmaram a escultura como ponto de força do Projeto Terra foi o fato delas possibilitarem, pela sua forma abstrata, um acesso à essência da arte que, para Juraci Dórea é a ligação mais profunda da arte com a vida. Ele diz:

Na pintura, a leitura é bem mais fácil na zona rural. [...] Para fazer uma leitura mais profunda de uma figura ou mesmo de uma paisagem tem que ter uma informação. O camponês faria uma leitura somente dentro da visualidade. Eu não queria que ficasse uma “falsa” ou talvez  “fácil” interpretação da arte. [...] Isso não esgotaria o que eu estou querendo. O que eu quero é buscar esse diálogo do ponto de vista da essência. [...] A escultura tem materiais deles (o couro e a madeira) mas tem uma forma que não é nada. Se a gente consegue ler aquilo como um símbolo, uma síntese de qualquer coisa, chega à essência da arte: a ligação mais profunda da arte com a vida”.

Sendo uma arte efêmera, o trabalho complementar de documentação terminou abrindo o campo de abrangência do Projeto Terra, gerando publicações e atraindo o interesse de críticos, sociólogos, antropólogos, poetas e a possibilidade de dialogar com o cenário internacional.  Se a iniciativa de expor no meio do mato teve também um certo tom de protesto com relação ao mercado de arte, por rejeitar suas raízes culturais sertanejas, foi  exatamente ao assumi-las, movendo-se na contramão do processo de circulação da arte, que Juraci ganha visibilidade. Em 1987, sua obra no Projeto Terra  foi selecionada para a 19a  Bienal Internacional de São Paulo; em 1988, para a 43a Bienal de Veneza e, em 1989, participou da Bienal de Havana, etc. Enfim, um pedacinho do sertão sai dos bastidores da cena nacional, fazendo-nos lembrar Guimarães Rosa (1998, apud BRIT, p.8) quando dizia: “o sertão está em toda parte”. Ou, ainda, conforme Brit (1998, orelha do livro) “esse sertão/sertões que, sendo o Brasil, não deixa de ser o mundo.”

Muitas vezes a obra artística de Juraci Dórea teve como espaço expositivo os descampados e reservas ecológicas. Mas quando instaladas em povoados ou vilas, promovia-se um caráter festivo, lúdico, incluindo, eventualmente, a participação de tocadores de pífaro, sanfoneiros, permitindo um envolvimento maior das pessoas como pode ser observado nas últimas imagens da galeria  abaixo:

Estas são imagens da fase inicial do Projeto Terra, em 1980, quando Juraci Dórea recebeu financiamento através do Prêmio Ivan Serpa para realizar e documentar o seu trabalho por um período de dez meses. A partir de então, decorreram-se mais de 20 anos, nos quais Juraci instalou, por conta própria e com a eventual ajuda de amigos, aproximadamente quarenta esculturas. Uma das últimas foi instalada na cidade de Valente-BA, por solicitação do meu projeto de pesquisa Diálogo poético de formas sertanejas – um estudo perceptual da obra escultórica de Juraci Dórea no âmbito do Projeto Terra,  desenvolvido pelo programa de Pós-Graduação do Instituto de Artes da UNESP, concluído em 2003.

Com o acompanhamento do processo de instalação de uma escultura ao vivo, tento compreender o fenômeno perceptivo e identificar aspectos do imaginário do público e da história do lugar onde vivem. O sertão é uma região de forte carga simbólica na formação de nossa identidade cultural e na discussão a respeito do processo de modernização da nossa sociedade. Apesar dos inúmeros estudos desenvolvidos desde que Euclides da Cunha lançou seu livro os Sertões, há mais de 100 anos, o sertão continua desconhecido. Como que reeditando sua condição de lugar geograficamente do interior, o sertão permanece nos bastidores da nossa (in) consciência. O sistema político parece ainda não assumir, a contento, sua responsabilidade histórica, econômica e cultural por essa parte do seu “corpo”: o sertão nordestino.

Tomemos então um pedacinho do sertão. Aproximemo-nos dele não pelo ângulo da sêca, da fome e da miséria, aspectos tão divulgados pela mídia. Mas, pela janela da sensibilidade de sua gente. Aproximemo-nos do lugar, da obra, do público e de suas percepções. E vejamos o que nos revela o diálogo poético em torno daquele novo elemento – a escultura – naquele cenário tão habitual, cotidiano.

A Obra e seu Entorno

O cenário natural que se constitui no mundo imediato dessa experiência é uma região semi-árida, com árvores e arbustos semi-ressequidos. É verão e a temperatura oscila próxima aos quarenta graus. É final de tarde e, em alguns momentos, a tempestade ameaça participar. Tudo na cidade remete a uma circunvizinhança rural. Animais circulam pelas ruas, ou estão expostos em uma pequena área reservada como mercadoria para comercialização. Muitos são os elementos que falam sobre o mundo cultural desse lugar.

Os animais, enquanto elementos do mundo natural, também estão ali, no desvio de suas funções espontâneas, participando do mundo cultural ou humano. Enquanto ainda vivos, eles servem de meio de transporte; depois de mortos, seus corpos servem de alimento e de remédio; a pele do boi, - o couro cru ou curtido ao sol – se transforma em inúmeros objetos e utensílios de uso cotidiano na vida doméstica e no trabalho. Boaventura (1989, p. 31) afirma que, na roupa do vaqueiro, o couro se desdobra em calção, perneiras, gibão, guarda-peito, jaleco, luvas, chapéu. Nos apetrechos de trabalho, ele se desdobra em bogós (para tirar água em poço), surrões, embornais (para comidas ou viagens), lastro de móveis, forro de baús, arreios; couro cru para carregar terra etc. Esses mesmos apetrechos já eram utilizados desde a época das entradas.

Ainda segundo Boaventura, essa forte presença do couro na nossa cultura, desde o período das primeiras fixações do homem branco no sertão -  quando até paredes de taipa eram amarradas com tiras de couro - levou Capistrano de Abreu a denominar a este ciclo da sociedade brasileira de civilização do couro.  Atualmente, continua-se a utilização do couro na fabricação de cintos, bolsas, objetos de arte, artesanato etc. O couro também está presente na escultura de Juraci Dórea.

Nesse estudo, o lugar escolhido para instalação da escultura é um lajedo que ocupa a parte mais alta da praça onde ocorre a feira livre da cidade de Valente. Esse lugar favorece uma boa visibilidade da obra por todos os ângulos da praça, tanto em termos qualitativos, estéticos, quanto em termos quantitativos, uma vez que um grande número de pessoas pode vê-la a um só tempo sem maiores obstáculos. A escultura é construída com caibros de aproximadamente 4 a 6 metros e umas três peles (couro de boi) inteiras.

A equipe da pesquisa de campo chega ao lajedo no final da tarde de uma sexta-feira, quando também os feirantes já estão preparando suas barracas para a feira que começa no dia seguinte bem cedo. Diante dos nossos primeiros movimentos, as pessoas ao redor já se postam numa atitude observadora. Juraci caminha por um longo tempo observando o entorno para captar a melhor posição para a escultura. Ao colocarem-se de pé os primeiros caibros, já se aproxima uma ou outra pessoa para indagar  sobre o que é aquilo. Surpreendo-me. Enfim, o público toma a iniciativa do diálogo – a entrevista começa e o gravador ainda está na bagagem. Anoto as primeiras conversas. Ao final dessa tarde, sob a ameaça de uma tempestade, apenas a estrutura de madeira fica pronta, aguardando o dia seguinte para ser completada. Falta envolvê-la com as peles.

Sábado bem cedo a escultura está totalmente pronta, ficando exposta por quatro dias sobre o lajedo. Algumas pessoas se aproximam indagando, “O que é isso?” e saem insatisfeitas por não obterem uma resposta – uma vez que eu sempre respondia com outra pergunta: “O que você pensa que é?”.  Lançam uma outra pergunta-suposição: “Isso aí é para explodir o lajedo? Assim, o diálogo passa a se estabelecer, ora por iniciativa do público, ora por iniciativa do pesquisador. Neste último caso, na medida do possível, adoto uma pergunta padrão para a abordagem inicial: “Eu estou observando que você está subindo o lajedo devagarinho, olhando, prestando atenção, o que você está vendo?”.

Nem sempre a aproximação se dá através de uma pergunta. Mas é freqüente que as pessoas permaneçam no seu ponto de interrogação e retornem várias vezes para  interrogar: “Afinal o que é isso?” Parece haver a necessidade de uma resposta definitiva e que somente nós pudéssemos fornecê-la. A dúvida sobre o que é esse objeto é uma reação freqüente entre os entrevistados. Em alguns casos essa dúvida se apoia no fator memória, uma vez que alguns dizem não lembrar de ter visto nada parecido. Porém, Merleau-Ponty assegura que perceber não é recordar e que embora a memória circunde e envolva todas as percepções ela não é suficiente para processá-la por inteiro. Sendo assim, como podemos saber qual é a percepção destas pessoas?

O Público e seu Contexto

O público (sujeitos percebedores), nessa experiência, são os sertanejos de Valente, cidade localizada no semi-árido baiano e de sua microrregião constituída de várias fazendas e dez povoados. Como a escultura foi montada num período de férias escolares (janeiro de 2001), no dia da feira livre da cidade, pude contar com pessoas de todos os povoados. Em geral, as pessoas estão de passagem na praça da feira livre para vender, para comprar, ou porque estão passeando num fim de tarde. Algumas estão ali aproveitando as férias para visitar parentes, depois de um longo tempo de ausência. Chama a atenção que são pessoas, em geral, de estatura média, magras, com predominância de mulatos e brancos. Seu andar é pausado, seu vestir é simples. Em alguns casos, as adolescentes arrojam um pouco mais na maquiagem e numa certa atenção para com a moda.

 

No dia da feira livre fica muito claro o contraste entre o estilo do sujeito rural que vem na cidade só para negociar, com o estilo do sujeito nascido e/ou residente há mais tempo na cidade. O primeiro, parece ocupar-se com os produtos da criação de animais e da lavoura e está negociando o seu produto no comércio da feira livre. O segundo está detrás dos balcões dos armazéns, das lojas de artesanato de sisal ou trabalhando como motoristas, dirigindo carros de som que fazem a publicidade local, estão filmando ou fotografando os eventos sócio-culturais ou dirigindo instituições da cidade etc.

É deste conjunto que emerge o público da obra de Juraci. Entre eles está D. Madalena - que é de Valente, mas, há 25 anos, mora em Itaquaquecetuba, no interior de São Paulo. Com ela inicio a apresentação do diálogo e da dinâmica perceptiva em torno da escultura.

As Percepções

Dona Madalena vem subindo o lajedo, devagarinho, observando... Não procura saber “o que é aquilo ali”. Ao chegar perto da escultura, ela exclama: “Que lugar mais lindo pra cantar a música do couro de boi!” E canta um poema de cinco estrofes. Todos ao redor se emocionam, fazem silêncio. A palavra foge. Tudo ao redor é poesia:

Disse a mulher o marido
Agora eu vou lhe falar
Mande seu pai ir embora
Se não quiser que eu vá.
Disse o filho pra o pai
Meu pai eu vou lhe pedir
Para o senhor ir embora
O senhor tem que sair.
Leva esse couro de boi
Que acabei de curtir
O pobre velho chorando
Pegou o couro e seguiu
O seu neto de oito ano ia atrás
Aquela cena sentiu
Pediu pra o seu avô
Que parasse de chorar
Aquela metade do couro
Deu pro neto levar.
Quando ele chegou em casa
Seu pai foi lhe perguntano
Pra que você quer esse couro
Que seu avô ia levano.
Disse o menino pro pai:
Um dia eu vou me casar
Possa que um dia que aconteça
De nós dois não se combinar.
Essa metade do couro
Dou pro o senhor levar.

Após cantar essa música, D. Madalena passou a falar espontaneamente, com bastante orgulho e entusiasmo, sobre aquele lugar que agora lhe  desperta tantas memórias. Em torno dela outros se unem naquela prosa e partilham memórias e sentimentos de suas experiências vividas. Vejamos um recorte de seu depoimento:

Estamos aqui na cidade de Valente, em cima de um lajedo aonde as mães pobre sofreram lavando roupa de ganho pra criar seus filho. Essa cidade de Valente é muito importante. É muito amada por todos que aqui chega. Senti essa música e senti o sofrimento do menino pedir o couro pro avô. Esse lajedo é mutcho importante e mutcho amoroso porque é uma coisa muito bonita dentro da cidade de Valente. Infelizmente que a aguada que nós pegava água [...] – parecia uma praia - foi entupida pela Prefeitura. É por causa de perigo de morrer criança afogada”.

Ao lidar com esses e os demais depoimentos, entro em contato com uma certa forma de síntese da história da cidade. Ainda que não coincida totalmente com a história oficial, é uma história verdadeira, porque vivida por seus habitantes. Nos depoimentos que apresento a seguir, observo vários aspectos do desdobramento do processo perceptivo que envolve associações, memórias etc. Passo agora a me referir a cada pessoa entrevistada como S (Sujeito percebedor). Utilizo números (S 01, S 02, S 03, etc.) para distingui-los entre si.

 

S 01: “Não sei o que pode significar aquilo (risos, suspiro). Mas taí o dia todo, é? Feito de flecha e ali enrolado! Plástico não pode ser (risos). O ripão e o quê? Ah! O couro... (risos) É um couro! (gargalhando) Éeeeee... (pensativo). Ali, no mermo tempo parece assim ... uma fogueira... . Parecido, assim.... Mas por enquanto não dá pra gente saber o que é de verdade. É, parece. Parece não é parecido. Parece, né? Então não dá pra gente saber o que pode ser. So vocês mesmo é que entende (risos). Botaro ali pra mostrar ao povo, foi? Mostrar o que é verdade. A verdade é que tem que ser. Valente tem que crescer mais um pouquinho e ser mais um povo; se evoluir mais um pouco. Porque o povo idoso, as modernage, né...

Observo que S1 permance por algum tempo no estado perceptivo inicial de sondagem. Não há, de imediato, referências aos elementos comuns do seu cotidiano – o couro e a madeira. Processa uma descrição permeada por dúvidas e, por fim, associa a escultura à idéia de uma fogueira; desenvolve uma curiosa reflexão sobre semelhança e ainda introduz a questão da verdade do percebido.

Esse entrevistado manifesta uma expectativa de que haja uma definição que seja a verdadeira para aquele objeto. Lembro Merleau-Ponty (1994, pp. 13-14) quando diz que “nossa percepção de mundo funda para sempre nossa idéia da verdade.” E que “[...] não é preciso perguntar se nós percebemos o mundo, é preciso dizer, ao contrário: o mundo é aquilo que nós percebemos. [...] é não aquilo que eu penso mas aquilo que eu vivo.

Nos próximos depoimentos os entrevistados se referem à necessidade do outro como fonte de obtenção ou confirmação do seu saber:

S 2: É a primeira vez que eu vi. Só depois que alguém disser ... Que a rente só aprende se vê os ôto dizer também, né.
S 3: Fica até sem explicação, né, o que a gente tá vendo. As veiz a pessoa sabe de alguma coisa; e a gente tem uma informaçãozinha. Mas se a gente num sabe de alguma notícia, fica difícil explicar.
S4. É algu’a coisa mostrano. Porque se você olhar, isso aí não siglifica nada, né. Quem faz sabe pra que é. Quem fez sabe mais ou meno.

Ainda de acordo com  Merleau-Ponty (1994, p. 467), o corpo de outrem é sempre o rastro falante de uma existência. Aqui, esse rastro é a escultura. Diante dela manifesta-se um estranhamento. É  algo desconhecido. O público não traz definições a priori. Em vez disso, abre-se ao questionamento e ao diálogo, revelando ora uma auto-estima subestimada em relação a esse outro, tomado como alguém que sabe mais, tem mais experiência (S 5). Ou ainda, revelando orgulho em assumir sua identidade cultural e a alegria de se mostrar e de ser visto (S6, S7, S8). Vejamos:

S 5: Ali tem sola... Ele tá fazendo experiença. Aqui nom dá pra fazer essa experiença. Ele tá achano que dá certo aí quarqué coisa. Só pode ser é negoço de couro. Ali é negociante véio (risos). Sabe o que é as coisa. Eu é que nom sei. Moro na roça, (risos).
S 6: Tô vendo aqui a cultura de Valente, a história. A alegria de ver todo mundo conhecendo Valente. [...] a cultura do couro, do sisal, tapete da APAEB.
S 7: É símbolo dum produto que é feito pela natureza e destruído pelo homem. É um trabai. É que o homem já fez muitas participação da matança do boi. E do próprio couro volta a fazer esses instrumentos que serve para muitas coisas. Acho que seja muito importante pra o povo de fora que num cunhece as coisas do sertão.

 

Nada é mais difícil ao certo do que saber o que nós vemos. Merleau-Ponty  (1964, p. 83, 90) diz: “Nós não percebemos quase nenhum objeto, assim como não vemos os olhos de um rosto familiar, mas seu olhar, sua fisionomia. [...] A visão já é habitada por um sentido que lhe dá uma função no espetáculo do mundo, assim como de nossa existência.” Isso parece ficar claro nos depoimentos a seguir. Eles estão carregados de sentimentos que afloram nas associações que se estabelecem entre o objeto percebido e as experiências vividas pelo sujeito da percepção:

S 8: Ah! Sei, lá... Eu senti a tradição aqui de Valente. Ah... Não sei (riso emocionado). Eu senti assim também, né. Eu tenho um avô que ele já morreu. Ele era vaqueiro e gostava de vestir essas roupas. A sensação que eu senti assim, né... eu senti muito emocionada, como se fosse uma homenagem para o meu avô.

S 9: É bom a gente sentir as coisas assim diferente, que aqui não tem. Tá parecendo as barracas que a gente fazia nos campos pra gente passar a chuva (chorando) quando ia pro trabalho com sisal. Recordou u’as coisa assim, mais ou menos da roça, né. (Rindo e chorando ao mesmo tempo).

É interessante que S 9 tem sentimentos/percepções ambíguos. Percebe a escultura como algo diferente e, ao mesmo tempo, como algo parecido  com elementos de suas experiências vividas. Os depoimentos também revelam um medo de perder as referências do passado. O lajedo, local de exposição da obra, já havia sido, em parte, destruído. Essa possibilidade é sentida como algo terrível, conforme depoimentos de S 10 e S 11.

S 10: Minha relação, desde a infância foi com esse espaço aqui [...] Essa arte foi um complemento muito importante. [...] acho que se tirar esse espaço de pedra tira muito da história de Valente. Seria terrível se isso acontecesse. A primeira vez que aconteceu – a outra parte – já foi um pedaço da nossa vida.

S 11: Eu me lembro, cumo eu era garoto. Um certo dia eu vim aqui no Tanque Velho. Ali tinha uma presa e aqui tinha um tanque. Eu me afoguei. Nesse dia quase morro. Minha irmã me salvou. Tenho muitas lembranças disso aqui. Tudo isso era a praça do Tanque, mas sofreu um grande aterro. Depois quebraro aquela parede da represa pra passar u’a rua. O home se desfaz de muita coisa que Deus faz. É... Foi aceito, né. [...] Quem manda mais é os poderoso. A gente mais pequeno não pode fazer nada. Ou algu’a coisa, né? Esse lajedo foi uma obra que Deus deixou. Obra da natureza. O home volta pra destruir. E pra fazer u’a rua pra enfeitar a cidade. [...] Não tinha precisão. É uma rua quase insolado, não tem movimento, ou movimento muito pouco.

A escultura suscitou tanto sentimento de perda em relação às tradições quanto expectativas em relação ao futuro da cidade. E freqüente a referência ao evento como uma amostra de algo novo que vai ser instalado: novas tecnologias para a expansão da área industrial com a possibilidade de mais emprego, etc.

S 12: Deve ser a respeito da indústria de sapato. Terá alguma coisa a ver com isso? Já é uma base pra mostrar pro pessoal.

S 13: Tô vendo uma montagem meio diferente, rústico. Enquadra com a região. O que eu imagino pode ser para o futuro: o pessoal com as novas tecnologias, os avanços da nossa sociedade. Pode até montar uma fábrica.

Sabemos que a introdução de novas tecnologias resulta em profundas mudanças do mundo vivido. As paisagens naturais e culturais a cada dia se tornam outras. É compreensível que isso seja vivido como algo terrível, assustador. Mas se a vida também se caracteriza por movimento e mudança, deparamo-nos com algumas questões: O quê mudar? Como mudar, sem destruir e sem morrer para a história? O que preservar?

Os depoimentos sinalizam que o mundo vivido pelos percebedores é um mundo em mudança onde os valores da tradição sertaneja dialogam, de forma nem sempre feliz, com os valores modernos da sociedade mais ampla, regida pelo capital, pela tecnologia, pela informação e pela conseqüente velocidade de todos esses processos do mundo globalizado. Convivendo com esses fatores, a tensão entre a necessidade de preservar as tradições e, ao mesmo tempo, usufruir os possíveis benefícios da tecnologia industrial, como abertura do campo de trabalho, gera sentimentos contraditórios ora de afirmação, ora de dissolução da identidade cultural.

Essa questão da convivência dos valores tradicionais com a modernidade é um tema contemporâneo que termina por definir a condição pós-moderna da sociedade brasileira. Assim a define o sociólogo francês Michel Mafesoli (BRASIL, LABORATÓRIO ..., 2002, p. 64):

Para mim a pós-modernidade é a sinergia entre arcaísmo e desenvolvimento tecnológico. E isso vemos claramente no Brasil e não vemos na Europa. Uma razão importante para o Brasil ser considerado um laboratório da pós-modernidade é que, através de sua geração jovem [...] o país dita novas formas de pensamento e comportamento do que são os valores pós-modernos. Assim como a Europa fpo o lugar onde se desenvolveram os grandes valores modernos, o Brasil é onde identificamos esses novos padrões.

Palavras Finais

Se o despertar dos sertões para a consciência nacional, no início do século XX, foi marcado pela ausência de diálogo  e pelo massacre do desconhecido, nos sertões do Projeto Terra de Juraci Dórea, o oposto se verifica. Nele, há uma abertura para o novo. A temática regional de sua obra sofreu rejeição do mercado de arte. Mas Juraci continua afirmando sua identidade enquanto artista ligado as suas raízes. A angústia comum aos processos de criação o conduz a formas de expressão, utilização de materiais e ocupação de espaços não convencionais, próprias da arte contemporânea. Elege como espaço expositivo de sua obra o sertão da Bahia. A natureza e a cultura são fontes de inspiração e material de trabalho.

Ao afirmar o aspecto regional de sua arte, assume sua identidade cultural e, ao mesmo tempo, estimula essa afirmação  nas pessoas e lugares  onde expõe sua obra. Sua escultura de couro e madeira, uma espécie de “tótem solitário e silencioso”, instalada em descampados e vilarejos do sertão baiano, faz falar um público freqüentemente sem voz, especialmente nos circuitos artísticos convencionais. Essa fala, na verdade, constitui-se num diálogo poético que brota da percepção imediata dos elementos que constituem a escultura e sua relação com o entorno – um diálogo entre uma expressão do pensamento plástico (a obra) e o pensamento verbal e poético (a fala do público).

O couro, um dos dois elementos formais da escultura, fala-nos dos vaqueiros e jagunços com suas vestimentas – verdadeira armadura flexível que, como uma segunda pele, lhes permite, em situações diversas adentrar a vegetação agressiva da região; fala-nos ainda das ferramentas e dos diversos utensílios do cotidiano sertanejo. O couro curtido é o principal elemento do trabalho de Juraci. Nenhuma interferência é feita nesse material, a não ser envolvê-los nos caibros que, apoiados sobre o solo, lhes servem de suporte.

A pele inteira do boi apresenta alguns rasgos que supomos corresponder aos orifícios naturais do corpo ou a possíveis acidentes do processo de despelamento. Tais orifícios funcionam como vias de ligação entre o interior e o exterior do organismo. Na escultura de Juraci, mesmo sendo poucos ou quase únicos, esses orifícios, de certa forma, quebram a monotonia da superfície. Discretamente, terminam emoldurando um pequeno recorte do entorno. Através deles, a paisagem do outro lado pode ter, por um momento, a escultura como moldura. E as inversões se sucedem eternizando o jogo infinito das possibilidades de perceber e estabelecer relações.

As diversas formas assumidas pelas esculturas variam entre expressivas posições verticais lembrando corpos em súplica aos céus, ou longos braços que, como lanças em diagonal, apontam direções longínquas excitando a imaginação. Esses e outros efeitos são possibilitados pelos caibros de quatro a seis metros que dão suporte aos couros e pela forma na qual o solo favorece uma  sustentação.

Muitas são as possibilidades de percepção que se abrem diante das formas abstratas das esculturas. Essas percepções, quando expressas nas palavras do público, possibilitam uma aproximação a aspectos das experiências vividas do percebedor e do seu mundo cultural. Esses aspectos vão sendo aflorados através das operações mentais que se superpõem à percepção originária. Ou seja, com essa percepção desdobram-se associações, recordações e imaginações diversas que funcionam como vias de acesso ao mundo deste outro que é o percebedor da obra escultórica de Juraci Dórea no âmbito do Projeto Terra.

Considerando o modo como se dá a percepção, constato que no processo de perceber primeiro a experiência presente adquire forma e sentido para então suscitar uma certa recordação. A percepção se dando como uma síntese que emerge do confronto entre a consciência e as recordações. Tais sínteses se processam dentro de cada sujeito, como uma síntese aberta que se atualiza e se modifica a partir da combinação de inúmeros fatores internos e externos.

Ao gravar os depoimentos do público, o Projeto Terra de Juraci Dórea está contribuindo para uma “história da sensibilidade sertaneja”, em particular e, em geral, para o autoconhecimento da subjetividade brasileira. Penso que o conhecimento dessa subjetividade pode contribuir para fundamentar e definir políticas culturais que considere as especificidades e as singularidades das diversas regiões que compõem a multifacetada cultura brasileira num mundo dominado pela velocidade das mudanças. Os diversos aspectos envolvidos na discussão a respeito da identidade cultural no contexto de um mundo globalizado convida ao aprofundamento das reflexões e a realização de novas pesquisas nessa direção.

Também o campo da recepção estética carece de mais pesquisas, mesmo quando se considera os grandes centros onde os museus recebem multidões. Mais ainda quando se trata do público das regiões interioranas do país. Na recepção da obra de Juraci Dórea  a questão da identidade e da memória é recorrente. Mas as sínteses elaboradas  na percepção não convergem para uma significação única. Ao contrário, mesmo sendo a natureza ao redor o elemento comum para todos, o modo como cada percebedor se relaciona com este ambiente e com seus objetos naturais e culturais recebem o colorido e o timbre das experiências vividas individualmente. São estas experiências que marcam a singularidade de cada sujeito e de suas percepções. Nesse sentido, são percebidos tantos objetos quanto pessoas se fazem de corpo presente diante da escultura no dia de sua instalação e nos dias subsequentes nos quais permanece exposta. Uma vez que não existe uma verdade absoluta, não há também uma percepção determinada da escultura que seja a absolutamente verdadeira. A percepção verdadeira seria apenas aquela resultante de uma consciência possível numa existência atual.

O núcleo de significação que parece comum a todos, é o formado pela identificação dos materiais - o couro e a madeira - e a reação de estranhamento diante da forma daquele objeto – a escultura. Nenhum dos percebedores revela certeza sobre o que está sendo visto. Mas alguns expressam a certeza de nunca terem visto nada parecido. Algumas percepções se modificam à medida que a escultura vai sendo construída. A expectativa parece ser a de que a forma denuncie a identidade do objeto. Em torno desse ponto se dá a dinâmica reflexiva que induz ao diálogo. O que é percebido, afinal? O que esta percepção revela sobre o mundo vivido desses percebedores? Muitas das percepções se referem a “símbolo”, “homenagem”, “representação” de algo relacionado à vida do homem do campo, do vaqueiro e dos criadores de animais ou a “apresentação” de algo novo que vem se instalar na cidade – uma indústria de sapato, por exemplo.

A diversidade de percepções da obra ajuda a formar um quadro com aspectos importantes da vida objetiva e subjetiva dos percebedores, individual e coletivamente. As associações, as recordações e os sentimentos expressados funcionam como reveladores de suas crenças, sentimentos, valores e visão de mundo, dando contorno e individualizando as percepções de cada sujeito. Esse contorno se apresenta, não como algo impermeável, mas como uma superfície porosa por onde se dá o dialogo com o mundo e, ao mesmo tempo, revela o mundo onde vivem.

O boi é um animal de forte carga simbólica da região. Sua pele, enquanto couro curtido, de certa forma, simboliza o contorno e a especificidade da cultura sertaneja. Parece que, como a pele do corpo, Juraci Dórea e sua escultura ao mesmo tempo delimita, respira e transpira, estabelecendo um intenso diálogo entre o dentro e o fora, o eu e o outro, a natureza e a cultura.  Uma verdadeira conspiração estética – considerando que conspirar é respirar junto. No contexto do Projeto Terra, artista, público e pesquisador, todos observam, sentem, imaginam, elaboram e expressam algo. Uma rica oportunidade se abre para uma pesquisa que aborde a dinâmica intersubjetiva no campo da recepção estética.

Esse sentido de integração é um convite e um desafio para respirar e conspirar a vida mais ricamente. Afinal, a respiração é a nossa primeira experiência de relacionamento. Através do ar, na inspiração e na expiração, fazemos involuntariamente a ponte entre o interior e o exterior do organismo. Portanto, já na natureza, no campo da vida, está explícita a desvantagem do isolamento – que tanto tem marcado a vida sertaneja. Respirar é relacionar o dentro com o fora. A vida, que é mantida pela respiração, se caracteriza por movimento e mudança.

Nesse estudo perceptual, considero a experiência estética no ato da recepção como sendo sensorial, reflexiva, transformadora e criativa. Modificações no espectador tornaram-se perceptíveis já no ato da entrevista. Partindo de uma atitude inicial de curiosidade, o público passou por um processo de reflexão, culminando, algumas vezes, em descarga emocional através do choro ou do gesto espontâneo de cantar uma canção. Outros demonstraram sentir apreensão  diante de possibilidades futuras a respeito do lugar que abrigou a obra. Possibilidades ameaçadoras, destrutivas e outras estimulantes e construtivas. Ao expressar estas idéias e sentimentos colocaram em movimento seus desejos e sua imaginação na direção de melhores destinos para sua vida e sua cidade.

Também para mim essa pesquisa promoveu mudanças. Como experiência de um diálogo transformador, ela  ganhou o sentido pessoal de resgate da minha identidade sensível mais profunda. Senti meu corpo como um museu de memórias esquecidas. Cada lembrança despertando uma emoção, sentimento profundo, ao integrar uma sensibilidade antes perdida no caótico e espesso burburinho da superfície. Se “o sertão está em todo lugar”, como disse Guimarães Rosa, o sertão, como um lugar interior, também está em mim. Os percursos necessários para esse estudo, tornaram esse lugar um pouco mais conhecido, um pouco mais integrado à totalidade do meu ser. Essa viagem interior, a convivência com as descobertas, foi surpreendente, emocionante e, muitas vezes, dolorosa. Testemunhei o poder integrador da arte, mesmo no contexto de uma pesquisa científica.

Decididamente, não há separação entre as coisas. O espaço entre elas não é um vazio. Há uma rede de relações sensíveis que dão vida ao tecido do mundo. Viagens, convivência e intervenção podem ser vistos como alguns dos fios que ligam a experiência de Juraci Dórea à de Euclides da Cunha e de outros que tentaram conhecer e, de alguma forma, integrar os sertões no grande corpo da nação brasileira.  É com esses fios que Juraci Dórea tem mantido, mesmo que na condição de sobrevivência mínima, o Projeto Terra. Atualmente, apenas uma escultura é montada, a cada ano, em lugares próximos a Feira de Santana. O propósito inicial era adentrar cada vez mais os sertões, expondo e documentando todo o processo. Sem apoio, essa realização fica cada vez mais difícil. Afinal, enquanto proposta que enfatiza o processo, parece não corresponder ao caráter de espetáculo e eventos isolados que tem caracterizado as políticas culturais no Brasil.

Por fim, o conjunto das características do trabalho de Juraci o insere no quadro de várias vertentes da arte contemporânea, que tem em comum a ligação da arte com a vida e o envolvimento e participação do público no sentido da afirmação da sua identidade, e cidadania. Ao expor na natureza trabalhos perecíveis, efêmeros, com ou sem a presença do público; ao documentar e expor esses documentos em museus e revistas especializadas ele está em correspondência com a arte ecológica, land art, process art. Com a arte povera a sua relação se dá na medida em que adota um despojamento material (uso de couro e madeira rústica) numa sociedade consumista baseada no desperdício e lazer mecânicos. Na arte povera, o artista aspira viver e não representar. Nessa sintonia, Juraci Dórea diz: “Quero fazer uma arte com todo o envolvimento que ela pode ter.

Com o sonho de um museu a céu aberto no sertão, talvez Juraci Dórea tenha dado um passo na direção de constituir um  ecomuseu. Segundo Teixeira Coelho (1997, p.159) “o ecomuseu é um espelho no qual a população se contempla para reconhecer-se e no qual busca a explicação do território no qual está enraizada. [...] É uma expressão do tempo, pois estabelece a ligação entre as gerações precedentes e as posteriores.” Nas regiões percorridas pelo Projeto Terra, as gerações precedentes incluem figuras míticas da cultura sertaneja como Antônio Conselheiro, Lampião etc. e evoca a memória de passagens trágicas de nossa história como por exemplo, a Guerra de Canudos. Assim o Projeto Terra de Juraci Dórea parece enfatizar a democratização e o valor  social da cultura.

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Fontes iconográficas:

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Notas:

[1] Pesquisadora independente. Professora voluntária do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista –2003/2004.
[2] Juraci Dorea: Depoimento. [Janeiro 2001]. Entrevistador: Kátia Bastos, Valente Ba.
[3] Ibid

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