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Des-Construindo Casas, Corpos e Cenas: Visitors Only, de Meg Stuar.
Autores: Rogério Moura [1] - rogermou58@hotmail.com e Ciane Fernandes [2] - cianef@hotmail.com

Teatro VolksBuehne de Berlim, Maio e Junho de 2003

Resumo: O Relato analisa o espetáculo Visitors Only (Apenas Visitantes) da coreógrafa Meg Stuart, norte-americana residente na Suiça e reconhecidamente uma das líderes da desconstrução em dança na última década. O espetáculo é analisado sob uma perspectiva estético-crítica que o relaciona com aspectos culturais, sociais, políticos e econômicos da contemporaneidade, demonstrando como a coreógrafa logra desconstruir ideais de beleza, de comportamento e de mundo.

Palavras-Chave: Desconstrução, Contemporaneidade, Corpo em Crise, Dança-Espaço-Sociedade-Política.

Abstract: The Critique analyses the performance of Visitors Only (Apenas Visitantes), from Swiss resident and North American choreographer Meg Stuart, reknown as one of the leaders of dance deconstruction in the last decade. The performance is analysed under an aesthetic-critic perspective, relating the dance event to cultural, social, political and economic aspects of contemporary life, and demonstrating how the choreographer manages to deconstruct ideals of beauty, of behaviour, and of the world.

Key-Words: Deconstruction, Contemporary, Body in Crisis, Dance-Space-Society-Politics.

Nem todas as casas são luxuosas e olímpicas como a exposta no espetáculo de mesmo nome (Casa) da coreógrafa Deborah Colker, especialmente ao considerarmos dois aspectos característicos da contemporaneidade: o êxodo generalizado e o alto índice de sem-tetos em todo o mundo. O conceito de casa associa-se à experiência de proteção e bem-estar, à fisicalização espaço-temporal de uma identidade pessoal e íntima, inserida num contexto geográfico de características sócio-econômico-culturais bem específicas. Ou seja, casa – e consequentemente sua ausência - tem muito a ver com desigualdades sociais e econômicas, e com poder aquisitivo, determinando por extensão outros poderes e dominações. Curioso é observar que uma coreógrafa brasileira, residente numa capital repleta de favelas, retrate apenas uma Casa tão perfeita quanto uma mansão do Morumbi ou de Brasília, e com corpos atléticos cujo maior conflito é qual figurino vestir na próxima cena, como assíduos consumidores de shopping centers; enquanto que uma coreógrafa nascida nos Estados Unidos e residente na Suíça – dois dos países mais ricos do mundo – retrate, pelo contrário, uma casa repleta de invasores estranhíssimos – cinicamente denominados “Apenas Visitantes” (Visitors Only) –  num ambiente totalmente fragmentado e em demolição.

Residindo numa zona limítrofe, Visitors Only, com o grupo Damaged Goods, sob a direção de Meg Stuart, articula linguagens como teatro, dança e música. Há uma série de pequenas narrativas, muitas vezes simultâneas que acontecem numa casa “estripada”, isto é, uma casa rasgada em corte horizontal, que ocupa toda a extensão do palco, em dois pavimentos, com portas, janelas e passagens estranhas e não ergonomicamente pensadas para seres humanos.... pelo menos não para “normais”. Este espaço anormal se relaciona intensamente com seres, aparentemente normais, mas esquizo-mecanicamente alterados pelos processos de modernização, pela tecnologia, pela sêde de sucesso, pela perda da doçura, da espontaneidade, que assola e coloniza corpos. Isto está explícito no embate constante entre corpo mecânico-newtoniano e corpo organo-quântico.

É verdadeiramente um trabalho que coloca em discussão sobre o palco até que ponto realmente vivemos numa era de rupturas coloniais, ou simplesmente transferimos os processos colonizatórios para o corpo. Propositalmente, a cena de abertura é exaustivamente longa, com seu elenco impessoal de costas, com trajes de chuva que não diferencia seus corpos nem suas formas orgânicas, estremecendo por mais de 15 minutos sobre os calcanhares com os joelhos fletidos sem sair do lugar. Talvez seja uma espécie de aquecimento em cena, ou talvez uma ponte com o espetáculo Alibi, da mesma coreógrafa, apresentado há um ano no teatro Schaubuehne de Berlim, e que termina exatamente com este mesmo tremor por muito tempo, mas de maneira bem mais pessoal, com os dançarinos olhando-nos cinicamente enquanto tremem. Em Visitors Only, o tremor ocorre enquanto o público entra no teatro e acomoda-se na cadeira, ou melhor, incomoda-se na cadeira, devido ao crescente bombardeamento por uma improvisacional mistura de instrumentos musicais eletrônico-acústicos, executados por músicos posionados entre o platéia e o palco.

Apesar da cena antecedente à final ser também propositalmente exaustiva, com movimentos repetitivos acompanhados de sons em volume alto, criando um beco sem saída, na cena de encerramento, que se confunde com a de agradecimento, a temperatura cênica cai e nos ajuda a digerir todos os intensos eventos da noite nesta estranha morada.

No entanto, é no coração - nem no fim, nem no começo - mas no meio do espetáculo Visitors Only que se situa seu grande valor. Stuart aceita o desafio de dialogar com a perda de sentido em separar linguagens artísticas neste começo de milênio. Aos poucos podemos distinguir corpos que, aparentemente bem vestidos e por isso ilusoriamente bem corportados, de fato usam roupas exageradas, combinadas de maneira bem bizarra, e que são esquartejados até virarem trapos (figurino da última cena). Abrir e fechar de portas, caminhar, abraçar, arrastar-se, beijar, olhar, tudo faz parte de um ritual de esquartejamento, que ao partir o corpo em vários pedaços, faz brotar dalí um ser estranho, algo que de alguma forma se aproxima do ator santo de Grotowiski e do “duplo” cruel de Artaud.

As cenas são cuidadosamente compostas, tem partituras, começo, meio e fim. A encenação é generosa em deixar ao espectador a oportunidade de visualizar pequenos enredos, pequenas estórias, encontros, diálogos e despedidas, que logo se dissolvem por corpos que se arrastam, rosnam, clamam por algum sentido enquanto são estraçalhados pelo liquidificar tecnológico da sociedade em rede. Trabalhando numa frequência onde as palavras chaves são luz, velocidade e ritmo, o espetáculo absorve a tecnologia muito para além da costumeira crítica que a ela se faz. Hora serve para exarcebar o quanto temos nos transformado em Frankensteins disfarçados de normais, hora para demonstrar que faz parte de nossa virtuose, recriar o mundo, reinventá-lo a partir do domínio dos processos tecnológico-culturais.

Algumas passagens são realmente impressionantes. Há uma dançarina que, vestida com uma roupa que lembra um cowboy, usando quatro ou cinco elementos vocais e uma partitura básica de quatro ou cinco movimentos, faz um impressionante trabalho sobre o palco que leva o espectador a um pequeno gozo, a uma pequena catarse. Através de seu trabalho, materializam-se num caleidóscópio corpóreo-efêmero ao mesmo tempo o calor do Texas, a pujança de seus poços de petróleo e a doença espiritual que se instalou naquele território a partir da combinação química pena-de-morte e bíblia. A autora é discaradamente crítica, quando coloca no pavimento superior uma dançarina que repete incessantemente-convictamente-histericamente-fortemente: “This is my house and this is my chair” (“Esta é a minha casa e esta é a minha cadeira”). Seria no entanto superficial e datado dizer que é uma crítica à sociedade de consumo. É antes de tudo, a demonstração de impotência, de extrema dissolução do mundo real, de turvamento da materialidade da vida, de insustentabilidade de um corpo num espaço contemporâneo que combina trivialidade e virtualidade.

Outra crítica à sociedade de consumo é minuciosamente talhada numa cena onde um agente imobiliário mostra o espaço a um casal – supostamente noivos à busca do “lar doce lar” para sua futura família. Sem nenhuma palavra, os personagens e suas relações de poder são claramente definidos a partir da linguagem não-verbal, expondo-os antes de tudo em seu lado patológico até a comicidade. Cinicamente, o agente mostra com orgulho seu “excelente” produto à venda, cheio de buracos, falhas, etc., enquanto sutilmente tenta seduzir a noiva encantada por ambos: o espaço e o agente decadentes.

Ao trazer de forma harmônica dança, teatro e música para o corpo orgânico e para o corpo cênico, para o corpo humano e para o corpo teatral, Stuart cria como que uma semeadura. O resultado da sobreposição de cenas, onde alguns estão completamente absorvidos por partituras esquizofrênicas, enquanto outros estão tomados por combinações vocais potencializadoras de atmosferas sobrenaturais, e outros ainda irrompem com estranhas máscaras “frias” sobre o palco, é o de uma situação de extrema estranheza criativa.

Na marcante cena da festa, a suposta dona da casa recebe, pouco a pouco, um a um, os mais estranhos visitantes, nos rituais mais absurdos de saudações e relações, desde a  entrada no espaço assimétrico até o gradual “escape” para o quarto “proibido”, protegido pela dona. Esses “Apenas Visitantes” desconstroem radicalmente o inconsciente coletivo norte-americano - impresso à força no imaginário internacional - marcado pelo pânico da invasão e pela destruição e extinção de seres mutantes, aberrações altamente ofensivas à raça humana. Este é o caso de King Kong, Alien, Godzilla, E.T., e tantos outros mitos criados simultaneamente a heróis norte-americanos que nos salvam da perigosa anormalidade invasora.

Na última cena do espetáculo, vestidos como mendigos sem-teto num inverno severo, o grupo entra em cena gradualmente e serve-se de um café feito alí mesmo, como nas ruínas de um prédio de subúrbio de qualquer grande capital do mundo – centros econômicos que criam e esmagam uma enorme camada de marginalizados sem-teto vivendo ao pé de grandes construções modernas e futuristas. Afinal e ao final, reverbera a imagem de que somos todos estranhos extra-terrestres, invasores não bem-vindos, sem-tetos, sem-terra, sem-corpo. Após um espetáculo estético-reflexivo, um a um, os dançarinos sentam-se à beira do segundo pavimento da casa, e despretensiosamente bebem café enquanto se acendem as luzes do público. Não agradecem euforicamente, apenas relaxam como amigos solidários na mesma situação crítica muito além do palco.

A coreografia por fim, leva a pensar na casa enquanto planeta. Quem é visitante e quem não é (interrogação). Quem é bem vindo e quem não é (interrogação). Num tempo onde homens-bomba e seus corpocídios mobilizam exércitos inteiros, aumentando o esfacelamento das fronteiras e extinguindo por vez o significado de Estado e Nação e mesmo de cultura, é de se perguntar por quanto tempo o corpo e o ser que nele habita ainda portarão a missão de unir, de celebrar. Naquela noite, corpos estrangeiros do além mar uniram-se ao de Stuart e aos dos que estavam na platéia. Na porta do teatro, dicutia-se aquilo tudo. E, por entre as frestras assimétricas daquela casa-corpo em pedaços, vazavam temas atuais como escravidão, pobreza, dependência cultural, corrupção e uma guerra surda de todos contra todos.... temas estes que conflituam, e muito, no caso de nações como a nossa, com um desejo oculto de modernização e consumo.

Notas:

[1] Universidade de São Paulo e Humboldt Universitaet (Berlim). Rogerio Moura é diretor teatral pela Escola de Teatro da UFBA, Mestre em Artes pela ECA-USP e doutorando da Fac.de Educação da USP, tendo como tema um recorte específico relacionado às políticas para a juventude. No momento atua em Berlim, como pesquisador convidado da Humboldt Uni, departamento de Educação Comparada. No Brasil traduziu e encenou O Amante, de Harold Pinter, 1998. Também montou A História do Zoo ( Albee) em 1999, tendo ainda trabalhado na Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo como educador/diretor entre 2000 e 2001. São de sua autoria "Os trabalhadores Culturais e a Pedagogia do Teatro", Revista Sala Preta, ECA-USP, junho de 2002 e "Internacionalidade e Intra-nacionalidade das Ações do Instituto Ayrton Senna", CD Room ANPED nov. 2003.
[2] Universidade Federal da Bahia. Ciane Fernandes é performer, coreógrafa, e professora do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia, Ph.D. em Artes & Humanidades para Intérpretes das Artes Cênicas pela New York University, Analista de Movimento pelo Laban/Bartenieff Institute of Movement Studies, de onde é pesquisadora associada. É autora de Pina Bausch e o Wuppertal Dança-Teatro: Repetição e Transformação (São Paulo/Hucitec e New York/Peter Lang), e O Corpo em Movimento: O Sistema Laban/Bartenieff na Formação e Pesquisa em Artes Cênicas (São Paulo/Annablume). www.cianefernandes.pro.br
 

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