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Entre a Cruz e a Espada. Ernesto de Fiori e Samson Flexor: artistas estrangeiros no Brasil.
Autor:
Gustavo Henrique Dioniso [i] - guhendio@ibest.com.br

Escreve, pois, as coisas que tens visto, e as que são, e as que depois destas hão de acontecer.
Apocalipse, 1, 19.

Aos pés da cruz
1949

óleo sobre tela

Acervo Pinacoteca do Estado de São Paulo

São Jorge
(entre 1944-1955)

óleo sobre tela

Acervo Pinacoteca do Estado de São Paulo

Resumo: Com o desejo de escrever algumas notas sobre dois importantes pintores da história da arte brasileira – Ernesto de Fiori e Samson Flexor – foi que procurei organizar uma reflexão, às voltas com a hipótese sobre a existência ou não de um possível paralelo entre eles, dividida em quatro partes, bastante sucintas; este ensaio (chamando-o de ensaio pretendo justificar o uso da liberdade quanto à escrita e a despreocupação com os dados obrigatórios que devem estar contidos pelo rigor das referências bibliográficas ao pé de página) traz num primeiro momento uma descrição rápida sobre os quadros que julguei interessantes para serem explorados (1), para depois ater-se numa também rápida recuperação biográfica dos artistas (2); em seguida, discuto algumas posições críticas em relação às obras (3) e, por fim, almejo apresentar contribuições para essa discussão (4).

Palavras-chave: Ernesto de Fiori, Samson Flexor, crítica de arte, recepção de arte, exposições.

Abstract: This work efforts to make a discussion about two important painters of the Brazilian art’s history – Ernesto de Fiori and Samson Flexor – reflection concerned with one hypothesis, implicated to seek the existence of a possible parallel between them; then, this lines are divided in four chapters, quiet brief: (1) the necessary and resumed description of the exploited paintings themselves, (2) recovering the artists’ biography, (3) to discuss some critic positions related to that works of art and finally (4) to introduce some contributions implied in this referred questions.

Key-words: Ernesto de Fiori, Samson Flexor, art critics, art reception, exhibitions.

[ii]

São Jorge, óleo sobre tela, concebido entre 1944 e 1945. Aos pés da cruz, também em óleo sobre a tela, já este terminado alguns anos depois, mais precisamente em 1949. Uma inequívoca tensão que produzem ambos, confrontados frente a frente, é uma das experiências a que se pode deixar levar o espectador ao percorrer os corredores da Pinacoteca do Estado de São Paulo. Ora, mesmo que se encontrem nossos personagens em salas diferentes, o primeiro que se insere entre as produções de caráter mais figurativo, o segundo residindo na sala em meio aos pintores aderidos à cauda da abstração brasileira pós-45, ao menos um paralelo não se pode deixar escapar: a temática, que, sem dúvida originada de desejos diferentes e intenções antagônicas – penso que Flexor expressa o lúgubre de maneira muito mais intensa, ao passo que a bem da verdade de Fiori não o quis, a não ser na atmosfera geral da obra, isto em plástica transformado na vitória do cavaleiro em disputa na infinita batalha – repito, a temática de ambos converge na escolha religiosa do motivo, e que embora constatemos a singularidade das razões que os levaram a emigrar para as terras tupiniquins, talvez este mesmo aspecto esclareça algumas de nossas inquietações.

No primeiro caso, a cena se compõe por duas figuras, não muito difícil de serem imaginadas: o guerreiro, cuja expressão facial nos remete a inúmeras questões sobre a sensação que o acometem no momento, ao subjugar sua vítima, apunhalando-a pela boca, mais parece um jovem gozando do júbilo pela vitória – prazer que, com efeito, veio de antemão, pois o monstro não se encontra derrotado de todo. O quadro poderia ser dividido em duas porções, no plano formal: a inferior, com o dragão, de costas para o chão, muito provavelmente lutando até o último momento contra o golpe final; e o superior, com o santo montado em seu cavalo alvo – dimensões estas que dão equilíbrio ao todo, pela simetria das proporções e pela aproximada igualdade no tamanho das figuras, sobretudo quando aponta, assim, para a superioridade do algoz.

No entanto, corrijo-me: o assento da tela possui menor unidade formal, já que as linhas de demarcação do dragão são quase que primitivas, ao passo que a margem superior seria decerto mais “racional”. Isto, o que também ao espectador não sugeriria uma contradição, já que a besta parece mais selvagem (e bem menor) que de fato é; mas como a superioridade se deve ao primeiro plano da pintura, este dado mais harmoniza a cena que a furta. Com muita habilidade o apaixonado mestre de Fiori, muito mais afeito à escultura que à pintura ao longo de toda sua carreira, compõe com o pincel de generosidade para com seus intérpretes, deixando-nos a impressão consciente e imediata do inacabado – os quadros parece que foram feitos às pressas –, tão característica de sua produção mais madura.

A perfectibilidade dos movimentos é impressionante: ambas figuras estão congeladas no justo instante do derradeiro golpe, do ataque fugaz; o cavalo não se dispõe aqui a ser mero veículo do herói e compõe no conjunto a agressividade da cena. Esse dinamismo se destaca do fundo, este por assim dizer mais “abstrato” e de influência secundária, quase en plein air – de Fiori está ali, sintetizando mentalmente ou assistindo à cena – apesar do traço geral dos contornos que de antemão anuncia ambiguamente a não-referência do conjunto principal. Ademais, não é tão difícil se deixar levar não só pelo todo da concepção, mas também pelos seus interstícios, num espaço intermediário predominante que caracteriza a obra. Oscilando entre mostrar e esconder, figurar ou dissipar, por demais atrai.

De Fiori nos fornece algumas pistas para compreender a obra, quando nos informa que e essas batalhas não são batalhas históricas, são as da eterna guerra entre a luz e a sombra, entre a perversidade e a bondade, entre a coragem e a perfídia, entre o espírito e a matéria. São batalhas metafísicas que se materializam, compondo cavaleiros e cavalos ardentes que vao destruir-se realmente, ou melhor, os guerreiros humanos que se vão transformando, como por encanto, nas relações de formas e de cor de uma conflagração cósmica. Assim, espanto-me quando algumas vezes  me parece haver trabalhado bem. (Apud Laudanna, 1997, p. 89)

Início de tensão.

Quanto Aos pés da Cruz, trata-se de um conjunto maior de telas ao qual esta última pertence, numa série de obras que contém ainda Cristo na Cruz, Repouso no Túmulo, A coroa de Espinhos, etc, o todo intitulado pelo artista como Os passos da Via Sacra, e que foi em boa parte pintada pelo Flexor brasileiro. É certo que o tema o atraía desde a sua vida anterior em Paris, e as razões para essa motivação são várias; não obstante somente aqui, em solo brasileiro, o impulso se concretizará com todo seu rigor.

A composição demonstra o período cuja influência da geometrização se fez mais patente na obra do pintor. Lembrando os traços livres e as matemáticas de um Paul Klee, segundo os quais a divisão por partes esquemáticas do quadro se completa na humanização crescente do tema: de baixo para cima, os blocos de cor – amarelos, roxos, vermelhos e pretos – vão dando lugar sucessivamente às figuras (humanas) principais, uma primeira bem acima (o Cristo) e à esquerda do observador, que se destaca ao olhar mais desinteressado, uma segunda à direita (Maria), alguns centímetros abaixo. As cores fortes, a complexificação progressiva de baixo para cima do motivo e o traço prevalecente denotam o intenso sentimento de resignação, o que sem dúvida se constata pelo pranto dos personagens. Sobre esta tela escreveu Alice Brill: 


A leitura da cena é difícil, a forma da cruz apenas sugerida, o vermelho vivo do primeiro plano, simbolizando a vida, é o manto da figura feminina, abraçada ao corpo de Cristo. O roxo do fundo é índice da morte de Cristo, dificilmente discernível no emaranhado atormentado de linhas e cores superpostas”. (Brill, 1990, pp. 62-67)

2.

Ernesto de Fiori, o autor do São Jorge, é de origem ítalo-alemã (pai e mãe, respectivamente, se bem que pesquisas recentes o contradigam [iii]) e nasceu em 12 de fevereiro de 1884, em Roma. Desde muito jovem, aproximadamente aos dezessete ou dezoito anos, resolvera que desejava pintar. Há diferentes teorias que explicam esse início da atividade do artista: alguns consideram que, terminados os estudos ginasiais, foi aluno de Otto Greiner na Academia de Belas Artes em Mônaco – passagem decerto interessante em toda sua vida de artista, já que o primeiro mestre, Greiner, “não aprovou a maneira pessoal com que de Fiori desenhava e lhe afirmou que ele, na realidade, não tinha talento” (Brentani, s/d., p. 13), acontecimento que o fez regressar a Roma. Outros afirmam que, a bem da verdade, Greiner trabalhava em Roma, e não em Mônaco (em certas publicações Mônaco é ainda trocada por Munique), de modo que de Fiori assim teria estudado mesmo na Academia de Artes Plásticas de Munique, sob tutela de Gabriel von Hack, 1904, quando então tinha dezenove anos.

De qualquer modo, em pintura sabe-se que logo sofreu a influência de Hodler (por volta de 1903), mas, cansado dos ensinamentos e do certo maneirismo, vai a Londres, seis anos depois; desta experiência, que durou quatorze meses, relata sua amiga Gerda Brentani, trouxe de volta duas coisas: “um fracasso para sua pintura e uma amarga desilusão amorosa” [iv] (Brentani, s/d., p. 13). Conheceu Paris em 1911, onde se encantou com os mestres Cézanne e Renoir – experiência que, conta a lenda, o fez quase que desistir de pintar [v]; é aqui também o período em que inicia sua produção de esculturas, em função da qual se tornará, anos depois, famoso internacionalmente – alguns concordam que a maior influência, ou ao menos o alicerce inicial, vem de Aristide Maillol. Nacionalidade*)

Em 1914 fixará residência em Berlim, e finalmente vem ao Brasil em 1936, já com 51 anos de idade, quando da ocasião de uma visita a ser feita à sua mãe e ao irmão mais velho (médico) que já moravam no país – Maria Unger de Fiori e Mário de Fiori –, momento este em que, muito provavelmente, escapava-lhe a idéia de constituir exílio definitivo no país, permanência que se concretizou e findou somente em 45, data de seu falecimento, ao final das tantas experiências migratórias.

Nesse entremeio, sua produção artística é interrompida por conta de ter-se tornado cidadão alemão e ter servido na frente francesa. A Primeira Grande Guerra estourava e, graças ao esforço de alguns amigos, de Fiori é retirado das trincheiras. Retomará a atividade artística em Zurique, mais tarde.

Amadurecido – tanto pessoal como artisticamente –, sua permanência no Brasil se caracterizou – bem como um eventual retorno posterior – como a da quase totalidade de artistas modernos, quer dizer, pela evasão diante de uma situação praticamente insustentável, sob o clima de perseguições políticas na caça às bruxas da Alemanha do 3o. Reich, anos 30; não obstante as dificuldades e decepções que encontrara na chegada ao novo continente, o “inesperado meio a que as circunstâncias o conduziram, porém”, declara Walter Zanini, “não o desencorajou de ainda prosseguir com sua obra de escultor de real renome internacional e, fato surpreendente, de retomar largamente a sua antiga e reprimida paixão pela pintura” (Zanini, 1995, p. 314)

Apesar da crescente escalada nazi-fascista, embora entusiasmado pelo rompimento da neutralidade brasileira de 1942, seu inconformismo diante da situação mundial catastrófica não esmoreceu: intentou fundar um movimento ao que chamaria Resistência espiritual contra o nazismo, “para o qual”, segundo Zanini, “adotou como lema a palavra Rech, inscrita numa espada [vi]”, além das anedóticas tentativas de disseminar intrigas entre Hitler e Goering “através da sobrinha do Marechal, consulesa da Alemanha em São Paulo” (1995, p. 315), fatos que saborosamente permeiam toda sua biografia.

Já nas terras brasileiras, de Fiori “de início não gostou de São Paulo” (Zanini, 1995, p. 315), e tampouco do Rio. Sua sobrevivência era assegurada pelo apoio da família e pela execução de obras feitas sob encomenda; procurou entrosar-se no meio e fez amigos como Sergio Milliet e Paulo Rossi Osir (críticos que inclusive escreveram sobre ele); expôs nos Salões de Maio, integrou a Família Artística Paulista e escreveu diversos artigos na imprensa brasileira especializada.

Já o autor d’Aos pés da cruz nasceu em Soroca, na Bessarábia do Império Russo, em 1907, (tendo se naturalizado francês em 29) e logo perde o irmão mais velho ainda bastante jovem – aliás, de súbito são os primórdios da sucessão de perdas afetivas, tão caras ao pintor. As agruras do artista não lhe dão folga e anos depois do convívio é-lhe retirada a mãe. Também estudará pintura em Paris, como de Fiori, onde conhece sua primeira esposa; quis o destino que mais uma vez a morte lhe rondasse, e Tatiana e o filho não resistem ao parto. Mais tarde se casa com a polonesa Margot Mezcycer e começa nova vida.

Antes, contudo, Flexor convertera-se ao catolicismo, em função da perda desses entes queridos. Teve com Abbé Richard, que era padre, o amigo que o confortará após as mortes do filho e da esposa. “Talvez uma religião que venera a mãe e filho de Deus”, escreve Alice Brill em Samson Flexor: do figurativismo ao abstracionismo, “possa oferecer um consolo àquele que tanto sofreu” (1990, p. 42).

O que nem por isso fez com que sua força crítica esmorecesse: Flexor e Margot participaram diretamente da resistência francesa, e, conseqüentemente, também foram perseguidos pelos fascistas na Segunda Guerra (Samson era filho de israelenses), como analogamente foi, já o dissemos, de Fiori. Em diversas ocasiões – divina providência! [vii] – consegue escapar das mãos dos alemães; exatamente daí aumenta-lhe o furor religioso, e Flexor começa a estudar sistematicamente a Paixão de Cristo, as “Composições sobre tema da paixão”, sob o impacto desses acontecimentos, tendo como anteparo, acima de tudo, os sofrimentos aos quais esteve sujeito durante toda a sua vida – quer pelas questões familiares, quer pelas perseguições anti-semitas – e assim recorre à fé quando seus filhos estão em perigo; em troca da sobrevivência da família, promete pintar todo o drama da história de Jesus de Nazaré.

No Brasil, os passos da Via Sacra são iniciados; uma produção que antes tendia à referência figurativa, porém agora e em meio propício (formação dos grupos Frente e Ruptura), se lança cada vez mais ao abstracionismo – no qual inclusive predominam especialmente no seu caso a linha e a cor, na esteira de um cubismo analítico de uma luz exterior como em forma de “cristal”, descaracterizando um abstracionismo flexoriano que desejássemos puro no período. Neste momento demasiado a matemática o influenciará – bem como a teoria da Einfühlung de Worringer o fez outrora – concentrando no estudo “Esthètique des proportions dans la nature et dans les arts” de Matila Glyka; abrirá definitivamente em seguida as portas ao abstracionismo propriamente dito com o Ateliê Abstração, e ainda mais tarde, ao fim de sua obra, será predominante a tendência abstracionista-lírica das manchas de cor – com perdão do trocadilho infeliz! – dos seus “quase-teste-de-rorscharch”.

3.

A produção mais especialmente pictórica de de Fiori data dos anos 40, momento em que essa prática se lhe torna prioridade, deixando de lado a prevalência anterior da escultura (tarefa que se limitou dentre 1936 e 39), legada agora ao segundo plano estilístico. Esse São Jorge (esse porque não foi um só; existem ainda outros São Jorges pintados por de Fiori), finalizado em 1945, ano de morte do artista, representa a aurora da produção do de Fiori pintor, antes talvez recalcada pelo medo do artista já famoso diante do possível malogro. O artista põe em jogo, desse modo, mais um motivo de autêntica integração: a criação se torna para ele uma vontade irreprimível de se subjugar às obrigações interiores de composição, expressando pela via da pintura o poder das cargas emocionais com cada vez maior liberdade (Zanini). Impõe-se uma obrigação vital de comunicar-expressar-formar uma figuratividade de linhagem certamente expressionista, o que, por outro lado, não escapa a um observador atento como Sergio Milliet constatar ali o romantismo rarefeito do criador. Pelo sim e pelo não, o que se sublinha é a rejeição deliberada do abstracionismo, por ser sem assunto, modesto e portanto covarde. (cf. Entrevista comigo mesmo, em: Laudanna, 1997, pp. 89-90)

Luis Martins sugere que na obra pictórica de Ernesto de Fiori salta aos olhos

o drama do exilado, a vontade de se integrar totalmente na nova cultura, o desejo de compreender e de sentir a terra, tudo isto se manifestando numa imperiosa e gramática necessidade de renovação. (Martins, s/d., p. 13)

De tal maneira que o nosso São Jorge se encontra dentro de uma das três linhas iconográficas que de Fiori concebeu para abordar a figura humana, como deseja o crítico Walter Zanini: nessa em questão elencam-se predominantemente os “fundamentos simbólicos” de sua personalidade poética, além das “míticas cenas de batalhas e lutas de cavaleiros”, que, ao fim e ao cabo, ora simbolizam a “luta entre o bem e o mal”, natureza versus cultura, boa arte contra arte ruim, enfim, ora cumprem função de “metáforas da guerra em curso”. A luta se resolve na metalinguagem da tela: a harmonia própria dessa conjunção, daquela conflagração cósmica, do “devir dos cavaleiros e seus cavalos”, enfim, percorrem as cores e as formas, como o belo está para o bem, “quando este é assunto na arte de de Fiori” (Kossovitch em Laudanna, 1997, p. 17).

In nuce:

"O espírito de liberdade que revela em seus golpes de pincel, sua composição solta, o não acabado não só de detalhes mas por vezes de trechos inteiros do quadro, as experiências com a simulação real do movimento (menos aceitáveis), os escorrimentos de tinta, os arrependimentos que deixa provocadoramente a descoberto, toda a expansão lírica do desenho rápido e das cores exuberantes que cobrem mesmo as largas molduras – tudo em suma o que serve às suas representações de grande inquietude, constitui uma contribuição especifica e ponderável à poética visual expressionista". [viii](Zanini, 1995, p. 320)

Justamente a cor, como fonte de vida, tenha talvez produzido em de Fiori uma inesgotável vontade do novo: antes de tudo, à própria retomada da pintura abstrata, movimento ao qual nunca se deixou influenciar, e que por ora abarcava mais e mais adeptos, de Fiori contrapôs um sistemático apelo à expressão. As deformações intencionais, a impulsividade do desenho (coisa que o velho Greiner já devia ter notado, e, é claro, não poderia ter compreendido nisto algo de efetivamente artístico) são os elementos mais marcantes da sua obra brasileira; vigora uma poética do esboço, que impõe o início para a conquista de uma nova vida.

Essa dialética – impossível não utilizar o termo – faz com que o seu São Jorge, bem como as cenas épicas imaginadas, “possam ser encaradas não apenas como excelentes pretextos para exercícios de pura plástica, senão também como evocações de uma realidade transcendente” (Martins, s/d., p. 05).

Para fim de conversa, sobre sua pintura o próprio de Fiori disse no Diário da Noite de 21 de março de 1941: 

Pinto apenas dois estados de consciência que sempre existiram. Fixo na tela dois sentimentos antagônicos que eternamente se chocam. A vida não tem sido outra coisa senão isso: a luta entre o bem e o mal. Está claro que eu sou favorável ao bem, sou contra o mal. Entretanto, é preciso saber distinguir entre o bem e o que pretende ser o bem. Entre o que é verdadeiramente o bem, e aquilo que, aos nossos olhos se apresenta sendo o bem. Aqui entra em ação o perigo das conceituações apressadas [...]” (Apud Laudanna, 1997, p. 45)

Certa ocasião Flexor por sua vez aventurou-se a escrever sobre a arte abstrata – com muita propriedade, diga-se de passagem – quando esta ainda era jovem por aqui:

O nascimento desse caso particular da pintura, que é o quadro abstrato, resulta da organização de uma superfície plana em manchas diversamente coloridas, as quais têm, entre si, relações quantitativas e qualitativas voluntariamente determinadas, no que concerne os seus tamanhos, formas, intensidades e matérias e não tendo outra finalidade, além da simples existência, intensa e exaltada, daquelas relações. (Apud Martins, 1955, p. 01)

Sem dúvida o aspecto progressista de São Paulo foi marcante em sua obra, “onde tudo tende para o futuro e clama seu desprezo pelo passado colonial” (Milliet, 1955, p. 03), e esse frenético dia-a-dia, contemplado não sem a veia crítica, foi-se transformando ao mesmo tempo numa metamorfose dupla: a sua própria – a cidade muda estruturalmente, as artes mudam estilisticamente – e do campo artístico em seu redor. No fim das contas, uma arte moderna precisa de uma cidade moderna – mudança a duras penas desenvolvida desde a Semana de 22 –, novas formas necessitam novas técnicas, outros espaços demandam outros artistas, e em tudo isto o contrário também não deixa de ser verdadeiro, já que urgida a vontade do novo, o desdobramento do primeiro modernismo, como é sabido, encontrará sua prole, sobretudo, com a experiência da imigração no país.

Aliás, toda essa experiência não restou incólume: nada poderia impedir que o debate abstração versus figuração, de antemão ocorrido nos círculos europeus, definitivamente se tornasse a bola da vez no país, deixando de cabelo em pé os mais conservadores e fornecendo elementos para a reflexão dos mais receptivos. A situação ficou no plano do que “gira nessa discussão em torno da existência ou não do assunto, como se uma elipse não fosse tão assunto quanto um jarro de flores” [ix]. Deixando de lado os intelectualismos, todo o quiproquó se resume em linha, cor, ritmos e movimento, espaços, equilíbrio, e especialmente imaginação criadora, enfim: pintura tout court.

Aos pés da cruz certamente se problematiza dentro de toda esta discussão paradigmática, na qual a composição geométrica de Flexor tenha sido das mais bem definidas, pois, com muito cuidado, “nem concretista nem hedonista, mas pessoal e lírico, embora disciplinado em seu abstracionismo”, mostra o quanto “pode ser livre e complexa uma tendência que tantos já acusam de acadêmica”, escreve Milliet, se cheia de autenticidade, a obra, isto é, se ligada e assumida à sua época. (Milliet, 1955, p. 6)

Antes artista que pintor, ou melhor, o pintor que se degladia com o artista, nas palavras do crítico Mário Pedrosa, Samson Flexor não escapa do mais precioso dote que lhe caracteriza na matéria pictórica: quer dizer, a constante disciplina de auto-análise do Flexor pintor o torna capaz, como poucos, de “interpretar e criticar a sua própria obra” (1981, p. 184), cuja consciência intelectual se destaca frente aos inúmeros equívocos puramente intimistas ou informais que prevaleceram quase que perenes em certo momento da cultura brasileira, " Como todo pintor em que a inteligência cooperativa não se afasta ou sucumbe à força instintiva, o desenho sempre foi nele de importância decisiva. Pode-se dizer que Flexor foi, desde o seu começo de pintor, um descendente direto do cubismo sintético” (1981, p. 184), e screveu Pedrosa sobre uma experiência cubista a que atribui ao autor dos Passos, com respeito ainda à iminente predominância dos planos sobre a cor ou sobre as “formas” (no sentido do acabado), encontramos porém sempre subjugados eles a uma disciplina menos severa que de costume, ela que é, em Flexor, sempre a do gesto resignado.

4.
 
Nada poderia ser diferente. Em paralelo à experiência de exílio – para o de Fiori maduro e para o Flexor poeticamente em definição – a qual provocou no primeiro um desejo de reconciliação, buscando atingir o nível da quase purificação, cumpre dizer que retratar a saga cristã não se limita nem na religiosidade do motivo nem da artisticidade da ação, como também o julgo em Kafka, por exemplo. Já em Flexor o mesmo exílio o fez retomar um quê do inominável, aquele je ne sais quoi de difícil elaboração e que só se pôde resolver formando, como que se deixando levar pelo impulso do lúgubre, resolvido no ato pictórico: a própria atividade de pintar.

O trágico em tudo isso é, certamente, a experiência da guerra, que nos anos 30 evidencia, como a concretude inelutável do destino humano diante do gigante avassalador que é progresso, sua situação artificiosamente desnaturalizada. Nos dois casos, se mais uma vez e mesmo esquematicamente fica impossível estabelecermos analogias contemporâneas ou rigorosas, ao menos emergem de certa maneira algumas afinidades eletivas, e não se deixa de compreender que a experiência de Flexor, que sai de Paris em busca de refúgio, distancia-se muito pouco da de de Fiori, ainda mais quando lembramos que, se ao primeiro a vinda não deixou de reunir inúmeras dificuldades, ao segundo estas dificuldades lhe ocorrem com o retorno; conquanto impossibilitado pelas condições políticas lá, restou ao artista ítalo-alemão fixar-se cá, “para voltar a pintar” [x].

Com efeito, ao passo que estes acontecimentos se desdobram, Samson Flexor descobre cada vez mais sua veia artística em direção às composições abstratas, dentre as primeiras figurando Os passos, abandonando – como por assim dizer acompanhando o fluxo de surgimento de novos experimentadores – as seduções da figuração para finalmente se deter nos temas abstratos.

A riqueza de tons do guerreiro defioriano (vá lá o termo!), oriunda da limpeza rítmica que por sua vez é conseqüência da agressividade da cena, somada ao equilíbrio geral que a circunda e dá seu caráter expressivo, como que se transforma – passemos agora a Flexor, historicamente, numa atitude bastante arriscada – numa decomposição de cores e linhas, formando um prisma caleidoscópico e radiante, concedendo-nos em verdade uma imagem suficientemente metafórica, a de um espelho em pedaços, cujos fragmentos reunidos comporiam nosso próprio mundo, por um lado, pela lente expressiva, e, por outro, pelo exercício de tradição cubista – eis Ernesto de Fiori e Samson Flexor, frente a frente.

Dessa abstração flexioriana quase em vias de fato – ainda não de todo devido à humanização que se destaca pelas duas figuras principais que se encontram na fatura – e, portanto, confrontada diante das imagens mitológicas do São Jorge e o dragão, a tensão que interrompe o olhar destaca justamente o que pretendo aproximar àquela possível transição que haveria entre as composições – que a meu ver parece mais um esfacelamento das formas, sem demérito das diferentes poéticas. Do episódio vitorioso do santo guerreiro, aspecto da sobrevivência dionisíaca na obra do mestre, como desejou o crítico Luis Martins, passamos ao drama da cruz e do sofrimento, o que também em parte justifica a adoção da fragmentação da ordem geral do quadro de Flexor, cuja articulação nos captura e impõe ao olhar a sensação do trágico em todo o esplendor da sua beleza, e nos indaga se seria de fato legítimo perguntar: existe outro vencedor que não o artista?

Não pretendo com isto dizer que na obra se tem a possibilidade de apreender a vida de um artista. Por certo que estender uma à outra seja uma operação violenta, nem por isso não se pode dizer que estão imbricadas, pois é sabido que em qualquer atividade, inclusive a arte, está inserida a ordem do humano, e daí caminha para a iniciativa pessoal, seu ato de suma liberdade. Essa pessoalidade da atividade formativa, como a entende por exemplo um “estético” como Luigi Pareyson, no seu Os problemas da estética, se define sob o pano tríplice de eixos fundamentais: 1) em primeiro lugar, surge como energia formante, modo de formar, ou, se quisermos, vocação formal, vontade de arte do artista; 2) neste deslizamento humanamente dinâmico da forma ativa-se o gesto de formar, estilo; 3) por fim, se o próprio modo é o estilo, o artista se encarnou na obra, sua pessoa está encarnada na obra formada, há entre eles como que uma identidade verdadeira – a despeito de a obra viver doravante por conta própria – em outras palavras, trata-se do que a obra é, “colhida na sua integridade viça, e solidificada, por assim dizer, num objeto físico e autônomo” (Pareyson, 1997, p.). O insuspeitado caráter pessoal está na própria forma, pois sintetiza e diz coetaneamente ao universal e ao particular num mesmo golpe: comunica a todos e a cada um a seu modo, exigindo de quebra interpretação e leitura dessa sua comunicabilidade.

Nestas imediações, em profundidade, o exílio pode ser interpretado não como fuga ou despertencimento – acompanhado do desespero originado do desenraizamento – mas tão-somente como luta pela vida, contra o tempo ou contra a morte, enquanto busca. Para os migrantes, bem como para qualquer experiência artística, importa encontrar – aqui o objeto é secundário, o importante é o verbo –, colocar em dia uma ação de que vem primeiro de dentro para fora, para em seguida retornar novamente do interior – ou vice-versa – o que Maurice Blanchot decerto chamaria de um espaço de exigência da obra, pois a ela e senão a ela pertence o artista, exigência esta que cumpre ser (assim a obra é: não é nem acabada nem seu oposto, não diz, não representa, não comunica, não faz outra coisa que não ser) o encontro com outro mundo – para uns, aterrorizante; para outros, emancipável; e ainda para outros reconciliador – tudo isto que caracteriza o reino próprio da liberdade ou aquele da luta do homem pela humanidade, como um dia disse de Fiori (tais palavras originalmente se dirigem a Kafka, que, segundo Blanchot, se eleva “acima de uma realidade mortal, na direção de outro mundo” [1991, p. 68]). O artista fala da alma no mesmo movimento interior no qual é falado por ela. Cabe a ele – e, em especial, às tais afinidades eletivas, entre a cruz e a espada – ir às profundezas do abismo para mais tarde dele ressurgir, uma vez vitorioso, já que ela, a arte, não comporta em si ou o abismo ou a verdade, não obstante os transcenda e vá além, sendo a sua consciência mesma.

Como não há um terceiro mundo para os homens (mais uma vez sou obrigado a retornar aos dizeres de Kafka, eterno exilado de si mesmo e de seu campo de relações cotidiano, ele que deveras nos serve pelo momento), restaria o leitmotiv original da experiência artística, germinada não num outro mundo, como seria o caso do exílio programado e, desse modo imaginário, porém, em seguida, de fato um experimentar-se no outro somente, com Ernesto de Fiori e Samson Flexor, lado a lado, outro esse que todo e qualquer mundo encerram.

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ZANINI, Walter. (org.) De Fiori, Ernesto, 1884-1945: [exposição] 19 de novembro – 19 de dezembro, 1975. São Paulo: MAC – USP, 1975.
________. Os anos tardios de Ernesto de Fiori no Brasil. Em: Estudos Avançados, vol. 9, no 25. São Paulo: EDUSP, 1995.

Notas:

[i] Por Gustavo Henrique Dioniso, mestrando do Departamento de Psicologia Social do Instituto de Psicologia da USP, bolsista do CNPq. Os agradecimentos vão aos professores João Augusto Frayze-Pereira e Raquel Lazzari Leite Barbosa, o primeiro por ter-me estimulado a conceber este trabalho e o segundo por me estimular publicá-lo. Agradecimentos são devidos também a Gabriela Balaguer, pela leitura atenciosa que fez deste trabalho.
[ii] De antemão devo admitir que ao ensaio faltam considerações mais especificas sobre a questão do exílio e seu aspecto religioso, que talvez devesse ser interpretado pela via do Êxodo; era de minha vontade aproximar estas noções, o que, confesso, não conseguiria aqui realizar em profundidade.
[iii] Mayra Laudanna conta que na verdade o pai de de Fiori, Roberto, nascera em Gorizia, cidade pertencente ao Império Austro-Húngaro que vem a se integrar à Itália antes mesmo dos acordos do pós-guerra; “assim”, escreve, “de Fiori ganha um pai italiano”. (Laudanna, 1997, p. 19)
[iv] Depois deste fatídico acontecimento marcante em sua vida (chegou a dizer que nunca mais se envolveria com mulher alguma!) de Fiori ainda viria a se casar outras duas vezes, com direito a sete “anos de inferno” (Brentani, s/d., p. 15). com Marta – que também esculpia –, e outros sete com a russa Bárbara (não me foi possível encontrar os sobrenomes das esposas).
[v]“Estive dois dias fechado em meu quarto com o rosto virado para a parede. Não posso continuar”, desabafou. (Brentani, s/d., p. 13)
[vi] Grifos meus. A partir disso, acredito que a metáfora do titulo deixa de exercer unicamente essa função.
[vii] Sobre as escapadas de Flexor, ver o interessante relato que faz Alice Brill na obra aqui citada.
[viii] Luis Martins prefere dividir a obra pictórica de de Fiori em duas formas de simbolismo: primeira, do simbolismo do indivíduo exilado e, segunda, do simbolismo de aspecto dionisíaco, ambos que expressam uma “atitude fundamental do artista e do homem diante da vida” (Martins, s/d., p. 01).
[ix] Esse comentário de Sérgio Milliet discute a polêmica da arte abstrata, no catálogo de uma exposição de Flexor de 1955, tanto de maneira histórica como de maneira crítica. Dentre os receptivos figuraram o próprio Milliet, Mário Pedrosa, Lourival Gomes Machado, o francês Leon Degand, etc., a seleta turma da geração crítica dos anos 40. (Milliet, 1955, s/d., p. 03)
[x] As pesquisas de Laudanna concluem que de Fiori, ao contrário, antes já pintava na Europa, e assim se encontram quadros do artista em coleções dessa época espalhadas pelo mundo. Não obstante, foi no Brasil que, com efeito, inicia sua produção mais rica.
 

Revista Digital Art& - ISSN 1806-2962 - Ano II - Número 01 - Abril de 2004 - Webmaster - Todos os Direitos Reservados

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