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Cinema e História: Entre Pesquisa e Ensino
Autor: Alexander Martins Vianna [1] - alexvianna1974@hotmail.com

Resumo:

Desde a década de 1960, os debates em torno de novos problemas, objetos e abordagens para a História permitiram a ampliação da noção de fonte para o trabalho do historiador. Assim, os filmes cinematográficos têm conseguido espaço nas indagações historiográficas sobre novas fontes para o historiador. Neste artigo, pretendo apresentar algumas considerações téorico-metodológicas a respeito do filme cinematográficos como uma forma específica de expressão cultural e, considerando isso, indagarei sobre algumas formas de seu uso como recurso para pesquisa e ensino em História.

Palavras-chave: Cinema – História do Século XX – Ensino da História

Abstract:

Since 1960’s academic debates about new questions, objects and approaches in History Studies have amplified the notions of resources to History works. And so the movies have gotten place as resources to searching and teaching in History. In this article, I intend to show some theoretical e methodological approaches about the movies like a specific kind of cultural expression, and I intend to show some inquiries concerning ways of movie uses like resource to searching and teaching in History.

Key-words: Cinema – 20th Century History – History Teaching

Introdução: Imagem, Paisagem e Comunicação

Observamos mapas e demais sistemas métrico-imagéticos da cartografia, pinturas rupestres entre indígenas, esculturas renascentistas; ouvimos a máxima bíblica da “imagem e semelhança” do homem com seu “criador”. Se atentarmos para a tautologia bíblica da “imagem e semelhança”, talvez possamos encontrar nela a condensação de todo o mistério da imaginação nas artes seqüenciais, pois a imagem é o resultado de uma ação deliberada de construção de semelhança, o que está muito longe de ser algo simples, pois construir semelhança pressupõe um desejo ou intenção de comunicação. Nesse sentido, há uma implicação existencial entre imagem e comunicação.

Não há a menor necessidade da co-presença de palavras e imagens para que se perceba a sua relação de complementaridade e reciprocidade. Na verdade, imagens formam palavras e palavras formam imagens num processo sem fim desde o começo da formação do homem. Nesse sentido, só há imagem (no sentido de semelhança construída) quando um indício sócio-ambiental qualquer consegue desencadear um pensamento ou discurso interior (lógico, mitológico, poético, alegórico etc...) que adquira, num segundo momento, a forma externa da palavra (seja ela sonora, gestual, alfabética ou ideográfica), ou a forma da escultura, da pintura, da fotografia, da cartografia, dos cartoons etc. Portanto, um indício sócio-ambiental sai da inatividade simbólica ou inexistência significativa quando ganha significação – ou seja, ação significativa num processo de comunicação. Nesse sentido, considerando que a imagem existe porque faz parte de um processo de comunicação, não podemos concebê-la como auto-suficiente, ou seja, a imagem “não fala por si”. Portanto, devemos ter como premissa que uma imagem é imagem (i.e., semelhança construída) quando comunica idéias e sentimentos, o que é o mesmo pressuposto que distingue palavras faladas de meros ruídos.

Se uma imagem é semelhança construída porque expressa idéias/significados/ sentimentos, não devemos esquecer que isso também pressupõe o envolvimento da mente numa atitude interpretativa – que não é algo óbvio ou totalmente transparente. Logicamente, tal atitude pode ser a mais variada, indo desde os extremos mágico-mítico e científico-indiciário aos seus interlúdios de poética, retórica ou alegoria, o que nos remete ao contexto sociocultural em que a imagem foi construída: se, por exemplo, a minha civilização é monoteísta e encara o mundo como objeto, minha forma de construção de semelhança na relação com o mundo, com o divino e com o humano vai ser completamente distinta de uma outra civilização que seja politeísta e encare o mundo como sujeito. Por isso, entre uma pintura rupestre e uma fotografia, ou entre uma escultura renascentista e um ídolo pré-colombiano, a diferença na construção de semelhança não se mede apenas em termos tecno-lógicos, mas sócio-lógicos, pois tais expressões artísticas estão inseridas em tipos de cotidiano cultural com formas díspares de comunicar-se com o mundo, com o divino e com o humano[2].

A arte seqüencial cinematográfica pressupõe o olhar individual – e o aprendizado para a sua formação e/ou decifração imagético-significativa é, em larga medida, o resultado do aprimoramento da técnica da perspectiva. No entanto, mais do que uma simples técnica, tal “olhar em perspectiva” é uma conquista sociocultural que se tornou tão habitual para nós que mal nos detemos para meditar sobre isso, inclusive no quanto que afetou a nossa concepção de espaço e tempo. No universo mental aberto pelas experiências das grandes navegações dos séculos XV e XVI, os vários lugares de paisagens perderam a sua auto-referencialidade medieval, tornaram-se – se quisermos construir uma semelhança – círculos rompidos. Agora, a partir de um lugar, haveria um espaço maior para ser abarcado pela mente. Assim, pode-se dizer que o lugar tornou-se para o espaço o correspondente funcional do ponto-de-fuga para um quadro renascentista: é um “olhar individual” que exige que o espaço seja deformado e comprimido para caber em sua perspectiva comunicativa – trata-se da síntese de um choque não resolvido entre proximidade e distância. Sem este novo olhar sobre a paisagem, não haveria o aprendizado de uma nova sensibilidade de espaço e tempo que marcaria a arte seqüencial cinematográfica[3].

No entanto, quando se pensa em paisagem, não se deve cair na sedução positivista de que ela existe por si mesma. A paisagem, tal como a imagem, é uma existência significativa, ou seja, a paisagem não se confunde com o meio ambiente, da mesma forma que uma mancha na parede não é uma imagem. A paisagem só existe porque está inserida numa demanda qualquer de comunicação, o que significa que já é o resultado da ação mental de construção de semelhança. Nesse sentido, a diferença entre imagem e paisagem é praticamente nula, pois trata-se tão somente de uma questão de abrangência de foco: uma imagem pode ser um ponto significativo em um espaço qualquer, enquanto a paisagem é necessariamente um recorte significativo de um espaço qualquer. Portanto, uma paisagem não é deduzida imediatamente de um espaço e, como forma (não-pontual) de imagem, também se relaciona com uma demanda simbólica de comunicação.

Ora, imaginar (i.e. construir semelhança) faz parte do processo significativo de recorte que define uma paisagem, o que é o mesmo que dizer, do ponto de vista lógico, que uma paisagem é um conjunto – e todo conjunto pressupõe minimamente uma clareza de atributos. Assim, por exemplo, se sou geógrafo e imagino uma paisagem urbana, devo pensar em qualidades que ajudam a recortar significativamente tal conjunto. Se sou Sergei Eisenstein e pretendo num filme construir um processo de semelhança para a idéia de fraternidade revolucionária, interessa-me recortar significativamente a paisagem naqueles elementos que, metaforizados seqüencialmente, estimulem a atitude interpretativa na direção de minhas intenções de comunicação.

Em geografia, delimitar um conjunto é o mesmo que definir uma fronteira (lógica) para o recorte do espaço, o que significa sempre deixar algo de “fora”. Isso se torna tanto mais evidente quando se tem que praticar a fronteira racionalmente constituída na materialidade sensual de um território. Nesse processo, o geógrafo adquire consciência da vagueza das coisas, observa o quanto de coisas é comprimido ou deformado no recorte significativo da paisagem. Ora, a mesma linha de raciocínio é aplicável aos planos expressivos seqüenciais dos filmes, pois todo cineasta faz escolhas de recortes e, na seqüência metafórica que forma, condensa o sentido que quer para as coisas na paisagem. Ora, se entender a semelhança construída pressupõe conhecer as ligações entre comunicação e contexto, a relação de implicação entre ambos não é imediata, transparente ou unilateral, daí o nosso grande desafio de tratar o filme como fonte de época.

Filme como Fonte de Época

O material fílmico para pesquisa ou a ser utilizado em sala de aula pode ter a mais diversa procedência, característica e assunto. A principal postura que o profissional de ensino e pesquisa em História deve ter na tarefa de seleção deste material é delinear o objetivo do seu uso e nunca deixar de situá-lo no contexto de sua produção. Nesse sentido, o filme deve ser encarado como uma fonte a ser analisada como um enunciado de sua época, deixando-se bem claro que é portador de um plano discursivo-expressivo que representa uma visão de mundo que deve ser tomada criticamente, tal como seria feito no caso de fontes escritas. Afora a rotina especificamente didático-pedagógica, há pelo menos duas relações sugestivas entre história e cinema: por um lado, o cinema é uma manifestação cultural e, portanto, é parte da história – é ao mesmo tempo meio atuado e meio atuante pela/na realidade –; por outro lado, tornou-se uma ferramenta para se fazer história, no sentido de incidir nas mentalidades, opções políticas, desejos e comportamentos nas massas, mas cujos efeitos de seu consumo criativo como artefato cultural ultrapassam em larga medida as suas já reconhecidas possibilidades como instrumento de propaganda.

Concebido como fonte de época, um filme é sempre um documento válido para se obter informações sobre a sociedade no momento em que foi produzido. Nesse sentido, serve para se aproximar de um acontecimento, tal como entendido nos debates da “história-problema” de Marc Bloch e Lucien Fèbvre[4]. Se nos mantivermos atentos aos argumentos que constituem o roteiro de um filme, poderemos desenvolver o nosso próprio argumento-problema conforme os interesses de pesquisa. Dependendo do enfoque que se dê, informações a respeito de roteiro, direção, montagem, processo de produção e sistema de financiamento tornam-se elementos muito significativos sobre a sociedade em que nasceu e foi consumida cada realização cinematográfica.

Em caráter mais geral, algumas informações nunca devem deixar de serem identificadas: ano da produção e/ou distribuição, país ou países envolvidos na produção e público inicialmente almejado. Se a recepção for o enfoque dado para a pesquisa, o êxito ou fracasso de público de um filme pode nos informar sobre a opinião pública e expectativas dominantes no momento de sua produção/distribuição. No entanto, pode-se também estudar a recepção presumida, ou seja, a recepção que um cineasta gostaria de ter para o tema de seu filme, o que é presumido a partir da forma como estrutura o plano expressivo de um enredo, a abordagem do tema principal e o tratamento dos personagens – em alguns casos, a escolha conjuntural de atores já consagrados para determinados papéis também compõe o elo significativo do tema.

Como parte substancial da cultura imagética do século XX, o cinema apresenta várias formas de participar, escrever ou pensar histórias. Por isso, a validade de um filme como fonte histórica deve estar diretamente relacionada a um problema central que circunscreva um tema e crie campos para o desenvolvimento de hipóteses que lhe sejam pertinentes. Como em qualquer trabalho de pesquisa, deve haver uma adequação clara entre problemas/hipóteses e a fonte, independentemente de o filme ser “reconstituições históricas”, “reconstruções históricas”, “alegorias históricas”, “pastiches”, “trash”, “paródias”, “retro”, “ficção científica”, etc... Logicamente, deve-se considerar a especificidade expressiva de cada filme porque a forma tanto quanto o conteúdo compõem a mensagem e, portanto, devem ser analisados conforme a sua pertinência para responder as questões postas sobre a fonte.

Em 1997, Christian Délage falaria justamente da necessidade de não se excluir o cinema como fonte para o pesquisador somente porque apelava para a emoção. Com isso, ele propunha criticar tanto aquelas pessoas que não consideravam o cinema como “fonte digna” para o historiador quanto aquelas que, como Marc Ferro, aceitavam as fontes fílmicas à luz de uma hierarquização entre “sério” e “cômico”, “realístico” e “ficcional”[5]. Este tipo de hierarquização, de uma forma um tanto positivista, pensa a fonte fílmica (significante) conforme a sua maior ou menor “proximidade/fidelidade” (significado) em relação àquilo que retrata (referente). Por tal vertente, seria mais “digno”, por exemplo, assistir aos cine-jornais da II Guerra Mundial (1939-1945) “para se entender a II Guerra Mundial” do que “perder tempo” com filmes ficcionais britânicos do período com histórias de “Sherllock Holmes”. Ora, a pertinência da fonte fílmica, no entanto, dependerá da questão que tenho em mente e que delimita meu tema. Assim, por exemplo, se eu quiser entender o imaginário pró-Aliado construído sobre a “ameaça inimiga” no contexto da II Guerra Mundial, a forma expressiva dos cine-jornais e dos filmes de aventura de Sherllock Holmes responderiam perfeitamente a estas demandas.

Atualmente, ninguém mais duvida que a arte cinematográfica é um testemunho da sociedade de seu tempo, informando particularmente sobre as mentalidades e cultura política de uma época. No entanto, um debate à parte desenvolvido por José Maria Caparrós Lera, desde a década de 1980, no Departamento de História Contemporânea da Universidade de Barcelona, insiste que o filme pode ser um meio didático para se ensinar história – referindo-se particularmente ao potencial fotográfico de “reconstituição de época” dos então denominados “filmes históricos”. Com base nisso, organizou um livro com 100 “filmes históricos” para tratar da história contemporânea, estendendo-se da Revolução Francesa até a Guerra do Vietnã.[6] Embora as fichas críticas sejam bem estruturadas, diferenciando a temporalidade dos temas nos roteiros do tempo de produção dos filmes, dando informações pertinentes sobre ambos, o efeito predominante é de um nivelamento entre o potencial do filme como fonte de sua época de produção e do filme como reconstrução temática de época. Se Caparrós tivesse optado por filmes como fontes temáticas de sua época de produção, deveria restringir-se marcadamente à história do século XX.

Aliás, a título de comparação, podemos lembrar que, na década de 1980, o medievalista francês Georges Duby participou de várias séries na TV francesa sobre história medieval, sendo de particular monta a série filmográfica “No Tempo das Catedrais”. Em entrevista a Guy Lardreau[7], Georges Duby lembrou a importância da lente das câmeras para se alcançar detalhes de gravuras e vitrais nas igrejas francesas que permaneceram por séculos ocultos aos historiadores – e talvez às sucessivas gerações de contempladores de tais artes – pelo simples fato de não serem alcançáveis a olho nu, coisa muito bem resolvida pelos potentes zooms das câmeras e por andaimes. Ocultos por muitos anos, estes pequenos detalhes poderiam informar agora muita coisa sobre a mentalidade religiosa do artista que executou os planos da obra – e, por extensão, do meio sociocultural presumido como sua receptora. Como contrapondo ao exemplo de Georges Duby, há o medievalista francês Jacques Le Goff, que participou como assessor de produção na adaptação cinematográfica (1986) do romance policial de Umberto Eco, “O Nome da Rosa”(1980). Le Goff ajudou na “reconstrução do clima de época”, ou seja, na aproximação estética ao tempo em que transcorre a trama policial.

Lembrar estes exemplos diametralmente opostos de participação de dois reconhecidos medievalistas franceses na produção de filmes serve para demonstrar os cuidados que se deve ter quando se pensa o filme como um meio didático para se ensinar história. No primeiro caso, pretendeu-se deliberadamente utilizar os recursos técnicos do métier cinematrográfico para se desenvolver um tema tratado sob o crivo da crítica histórica – logicamente, ao se ampliar os instrumentos de busca, apreensão e divulgação das fontes, sempre estaremos sujeitos a surpresas de novas descobertas, problemas e abordagens. Portanto, o filme de Georges Duby pretendeu ser desde o início um meio didático para se dar aula de história sobre um assunto específico. Logicamente, toda mídia, por ser mediadora, interfere no conteúdo e na recepção da comunicação. Por sua vez, o filme em que Le Goff prestou assessoria é uma aproximação estética ao medievo para servir meramente como cenário alegórico para diálogos que tratam de questões relativas à quebra da autoridade de um determinado topos cultural presente na crítica de Umberto Eco da visão apocalíptica da crítica à cultura de massa do pós-II Guerra Mundial. Nesse sentido, tal filme não seria um meio didático adequado para se pensar Idade Média, já que, em sua paisagem, associa uma estética adequada a um tema anacrônico. É justamente este tipo de cuidado que faltou na seleção fílmica de Caparrós Lera.

Nesta mesma linha do filme como meio didático, embora não com a conotação dada por Caparrós Lera, Roberto Rossellini, mestre do neo-realismo italiano, assim declarou em 1963: “Através do ensino audiovisual, a história pode mover-se em seu terreno e não se volatizar em datas e nomes, pode abandonar o quadro história-batalha para constituir-se em seus dominantes sócio-econômico-políticos, pode constituir-se não na vertente da fantasia, mas naquela da ciência histórica: clima, costumes, ambientes, homens... que tiveram relevância histórica e promoveram os avanços sociais que hoje vivemos. Alguns personagens, regenerados psicologicamente, podem converter-se em módulos de ação”(Grifo meu).[8] Portanto, mais do que um meio didático para aulas de história, Rossellini está inserido numa vertente de intelectuais do cinema que o pensaram como arte engajada, portadora de exemplos para inspirar ações e transformações culturais, comportamentais, econômicas e políticas.

Em filmes de “reconstituição histórica” ou de “ficção histórica”, um “passado histórico” pode ser deliberadamente evocado como marco referencial para se realizar alguma análise sobre questões contemporâneas à produção do filme. Nos casos de Sergei Eisenstein ou Roberto Rosselini, por exemplo, os filmes de “reconstituição histórica” ou de “ficção histórica” são usados claramente com tal intenção. No entanto, uma boa parte dos cineastas contemporâneos não chegam deliberadamente a isso, agindo mais por demanda de mercado e sendo habitualmente contaminados pelo clima de sua época. Neste caso, dependendo da inserção temática que o historiador considere pertinente para determinada produção cinematográfica, teria a vantagem de trabalhar com o seu plano expressivo como locus atravessado por um habitus, ou seja, indagar como determinado tema atravessou inconscientemente o continente convencional expressivo do filme. Um bom exemplo é o filme “1492: A Conquista do Paraíso”(EUA, França e Espanha, 1992: Dir. Ridley Scott), em que a história da empresa de conquista de Cristóvão Colombo é temperada com indagações críticas sobre massacre cultural e racismo que são inseparáveis do clima político de debate em torno do problema da imigração em finais da década de 1980.

Um filme de “ficção histórica” pode ter uma alta qualidade do ponto de vista da reconstrução de um ambiente estético para representar numa “época passada” uma narrativa fictícia, mas não deve ser confundido com os filmes que deliberadamente se pretendem “reconstituições históricas”, pois estes evocam um período ou fato histórico tentando reconstituí-lo com todo rigor – dentro da visão subjetiva de seu realizador. No entanto, trata-se de um trabalho artístico-criativo que, por mais criterioso que seja, não se confunde com a operação historiográfica contemporânea e não pode ser nivelado aos livros de divulgação científica – a menos que tome a forma de documentários que mostrem os processos, silêncios, limites e dúvidas que envolvem um determinado trabalho de reconstituição histórica.

Operação Historiográfica versus Operação Filmográfica

Os filmes de “reconstituição histórica” podem possuir menos problemas quanto a erros factuais do que quanto à forma de abordar o passado, já que deve seguir necessariamente uma estrutura dramática. Como toda arte dramática, o filme deve ser marcado por uma série de características cujo principal fim é fazer com que o espectador acredite que aquilo que vê encenado é a verdade, o que significa uma linguagem específica que não se confunde com o fazer do historiador: segundo plano, linguagem serial, edição de som e imagem devem provocar a sensação de que estamos diante de uma janela para a “realidade imediata”; a história deve ter começo, meio e fim (com uma mensagem moral), ou seja, ser uma narrativa fechada, completa em si e, em última palavra, simples – uma outra alternativa de passado nunca é apresentada. Devido ao caráter específico do trabalho dramático, questões históricas complexas são personalizadas com a finalidade de arrebatar pela emoção – um filme apela primeiro para nossas emoções a fim de se somar aos nossos conhecimentos e crenças. Portanto, um filme de “reconstituição histórica” não é um livro de história transferido para as telas e não está sujeito às mesmas regras e práticas do fazer historiográfico.[9]

Todas as convenções do fluxo fílmico tornam impossível que sua estrutura narrativa mantenha-se rigorosamente dentro das normas que julgamos ser a escrita do historiador. Nem sempre é possível encontrar imagens equivalentes para muitas evidências (escritas ou não), o que só aumenta as dificuldades dos produtores. A estrutura dramática e o jogo das câmeras não permitem os “vazios” ou “silêncios” admitidos e expostos pelo historiador em seu trabalho. Invenções devido às demandas/limitações expressivas das câmeras podem ser mais sutis, mas não menos significantes na estruturação do plano narrativo. Por isso, haverá sempre uma margem maior de preenchimentos desses silêncios nos filmes com deliberadas invenções que não são permitidas ao historiador – a menos que deixe de sê-lo. Além disso, para manter a audiência, a estrutura dramática do filme demanda a invenção de incidentes e caracteres que raramente ocorrem na realidade com a mesma forma, ordem e intensidade, devendo tudo ser bem harmonizado com os constrangimentos temporais dos filmes. A própria escolha dos atores a comporem os papéis principais do drama pode ser outro fator a interferir na mensagem.

Tal como um livro de História, o filme de reconstituição histórica não é uma janela imediata para o passado, mas sim a sua reconstrução, manipulando as evidências desse passado a partir de uma determinada estrutura de possibilidades e tradição de práticas expressivas. Não há literalismo histórico nem para o historiador, nem para o diretor ou produtor de um filme. O filme de “reconstituição histórica” propõe uma forma de aproximação do passado e, tanto quanto o historiador, não pode simplesmente replicá-lo. No entanto, diferentemente do historiador, o diretor do filme não informa isso enquanto provoca o drama (ação), expondo-o em ciclo fechado. Além disso, por constrangimentos temporais, o filme pode incluir imagens inventadas que podem ser consideradas verossímeis porque ajudam a simbolizar, condensar e resumir uma ampla margem de eventos, significando adequadamente um passado facilmente verificável, documentado e avaliado historicamente. Por isso, para ser considerado de “reconstituição histórica” e não simplesmente de “reconstrução histórica” para um tema fictício, um filme deve dialogar minimamente com um corpo preexistente de debates e conhecimentos sobre o assunto que pretenda abordar, caso contrário será apenas um cenário exótico para um romance ou aventura particular, como ocorreu com o filme “O Nome da Rosa”(Alemanha, Itália e França, 1986: Jean-Jacques Annaud).

No entanto, de acordo com a forma que concebo o filme como fonte de época para pesquisa e ensino em História, diferentemente de Marc Ferro ou de Caparrós Lera, não faço distinção hierárquica entre filmes de “reconstituição histórica” e outros gêneros. Todo filme precisa de uma análise rigorosa uma vez que for escolhido como fonte de época[10]. A sua pertinência será medida, repetimos, pelo argumento-problema que o pesquisador desenvolver para o tema de pesquisa. Os filmes de “reconstituição histórica” nos falam mais de como uma determinada geração pensava determinados fatos passados do que de tais fatos propriamente ou, sofisticando mais as questões, poder-se-ia perguntar à fonte fílmica, situando-a adequadamente em seu espaço e tempo de produção, porque se pensou desenvolver um determinado tema de uma forma específica e não de outra.

Logicamente, conforme as questões que cada trabalho histórico pretenda responder, haverá diferentes usos para diversas formas de fontes, trazendo distintas contribuições para nosso entendimento sobre o passado. Alguns trabalhos históricos se tornam muito importantes pelo simples fato de trazer à luz uma cadeia de eventos antes esquecidos, outros pela elegância de argumentos e abordagens, outros por trazer novas questões sobre temas tornados canônicos há algumas gerações. Isso um filme de reconstituição histórica também pode fazer, mas sempre pretende mais do que isso: deve ser arrebatador para o pensamento, funcionar como uma intervenção na história de forma a estimular uma audiência que busca no cinema não a “História”, mas sim um drama. Por isso, sempre terá uma forma própria de intensificar as questões do passado, fazendo a audiência participar do passado como se fosse um processo acabado (começo-meio-fim), quando a vida é, em sua intensidade, mais confusa, múltipla e complexa do que nos deixa perceber a sua estrutura dramática.

Nesse sentido, pode-se dizer que, como artefato cultural, um filme provoca ressonância e encantamento[11]. Ressonância deve ser entendida como o poder de alcançar um mundo maior, além de seus limites formais como artefato cultural, de evocar as forças culturais complexas e dinâmicas das quais emergiu, em relação às quais pode ser considerado pelo historiador uma metáfora ou uma sinédoque. Encantamento deve ser entendido como o poder de o filme exibido prender o espectador em seu lugar, de transmitir um sentimento arrebatador de unicidade, de evocar um atenção exaltada. Portanto, um filme não é um mero “confirmador passivo” de uma “realidade externa” que já se conhece por antecipação, mas um mediador de visões, pensamentos e emoções sobre o seu momento com convenções expressivas e proposições próprias que devem ser enfocadas criticamente à luz de uma inserção temática pertinente.

Por isso, penso uma noção de contextualização distinta da abordagem sobre cinema e história de Marc Ferro[12], pois entendo o contexto como um recorte interpretativo conduzido por um problema analítico que delimite claramente um tema que seja pertinente em relação à fonte utilizada. Nesse sentido, a contextualização é um procedimento metodológico que deve ajudar a interpretar como certa temática foi, numa determinada época, expressa no plano narrativo de um filme. Um exemplo claro é a exploração da temática do racismo em certos filmes, que não é homogêneo em seus dilemas, discussões, justificativas, representações e práticas culturais e políticas ao longo do século XX. A contextualização que proponho para a interpretação de determinada temática em filmes inverte o procedimento de Marc Ferro e, assim, em vez de pensar como através de filmes é possível alcançar o “racismo fora do filme”, devo conhecer bem as circunstâncias do racismo fora do filme para entender como ele se apresenta ou se manifesta no continente convencional do filme, pois, como artefato cultural, um filme é tanto atuado pelos valores de sua época quanto atuante neles.

Portanto, não se trata de entender produções cinematográficas como fontes mais ou menos “fiéis a ilustrar sua época”, mas, partindo desta, compreender como uma determinada temática se apresenta em seu plano expressivo de enredo. Pensando nisso, devemos observar que a estrutura de enredo, a solução dramática e o laboratório de personagens – assim como a escolha de determinados atores para certos papéis – podem muito nos falar dos valores, temores e expectativas de recepção de um diretor em determinada época. Isso significa que é um truísmo falar em “filme histórico” como categoria ou gênero, pois todo filme – trash, épico, retro, capa & espada, romântico, ficção científica, terror, comédia, tragédia, documentário, propaganda etc – é necessariamente histórico e pertinente para o historiador de acordo com o tema que se pretenda desenvolver.

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Notas:

[1] Professor de História Moderna e Contemporânea do Departamento de História da FEUDUC (RJ); Doutorando em História Social pelo Programa de Pós-Graduação em História Social da UFRJ.
[2]GRUZINSKI, Serge. “A Guerra das Imagens e a Ocidentalização da América”. In América em Tempo de Conquista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992. pp.198-207; TODOROV, Tzvetan. A Conquista da América. São Paulo: Martins Fontes, 1993. pp.51-120.
[3]HARVEY, David. Condição Pós-Moderna. São Paulo: Loyola, 1993. pp.185-289.
[4]BLOCH, Marc. Introdução à História. Lisboa: Publicações Europa-América, 1989; FEBVRE, Lucien. Combates pela História. Lisboa: Presença, 1989.
[5]DELAGE, Christian. "Cinéma, histoire: La réappropriation des récits”. In Revista Vertigo. Paris, 1997 (16): pp.13-23.
[6]CAPARRÓS LERA, José Maria. 100 Películas sobre Historia Contemporánea. Madrid: Alianza, 1997.
[7]LARDREAU, Guy. Dialogues. Paris: Flammarion, 1980.
[8]CAPARRÓS LERA, Ibdem Op. cit. p.20.
[9]ROSENSTONE, Robert. “JFK: historical fact/historical film”. In American Historical Revew, vol. 97. Washington, 1992(2): pp. 506-511.
[10]KORNIS, Mônica Almeida. “História e Cinema: um debate metodológico”. In Estudos Históricos, vol. 5. Rio de Janeiro: FGV/CPDOC, 1992(10): pp.237-250.
[11]GREENBLATT, Stephen. “O Novo Historicismo: Ressonância e Encantamento”. In Estudos Históricos, vol.4, n.8. Rio de Janeiro: FGV-CPDOC, 1991. pp.244-261.
[12]FERRO, Marc. Cinema e história. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992

Revista Digital Art& - ISSN 1806-2962 - Ano II - Número 01 - Abril de 2004 - Webmaster - Todos os Direitos Reservados

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