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Arte, Educação, Cidadania e Tecnologia - Relato de experiência.
Autor: Jurema Luzia de Freitas Sampaio-Ralha [1] - ju@jurema-sampaio.pro.br

Resumo:

Este trabalho relata, de forma resumida, simplificada e informal, a experiência de uma arte-educadora num trabalho de inclusão sócio-cultural-tecnológica, pela arte, de uma turma de graduação em Publicidade e Propaganda, procurando esclarecer a importância do conhecimento/apreciação artística na formação de “repertório” para esses futuros profissionais, oriundos de classes sociais menos favorecidas, trabalhando com o conceito de Cidadania Cultural.

Palavras-chave: Arte e Cultura, Inclusão Social, Cidadania Cultural, Formação de Repertório.

INTRODUÇÃO

Quando convidada pelo coordenador do curso de publicidade e propaganda, no início de 2001, a lecionar a disciplina "História da Arte e Estética dos meios", no primeiro ano do curso das Faculdades Interamericanas - FAITER, a conversa foi mais ou menos nesse sentido: a proposta pedagógica da disciplina era, antes de ensinar história da arte aos alunos, fazê-los compreender a necessidade de saber-se existe arte em publicidade e propaganda e torná-los culturalmente mais ativos, com maior capacidade crítica, de forma a assumir uma posição de cidadãos conscientes.

O coordenador iniciou a explanação da proposta explicando-me que, por pesquisas internas feitas junto aos alunos, haviam levantado seu perfil sócio-econômico-cultural, através do qual  constataram que a maioria absoluta advém das classes C e D, e é a primeira geração, de suas famílias, a chegar ao ensino superior.

Junto com esses dados, outros aspectos foram delineando o perfil cultural e a proposta do curso a ser desenvolvido. Quase a totalidade não tinha hábito de freqüentar exposições de arte (nenhum deles havia assistido sequer às grandes; ocorridas em São Paulo nos últimos três anos); a maioria não ia ao teatro, muito poucos freqüentavam cinema (e os que o faziam, em geral, assistiam somente aos "sucessos de bilheteria") e a única forma de acesso à cultura que cultivavam era a televisão. Isso é assustador num país com uma televisão de péssimo nível cultural como a nossa e foi assim que me senti: assustada. Meu perfil, formação[2] e experiência profissional[3], encorajaram-me a enfrentar o desafio de formar o repertório desses estudantes, desenvolvendo-lhes  a cidadania pela arte. O programa foi estruturado com liberdade, com a disposição de proporcionar aos alunos, o entendimento do sentido do estudo da história da arte em um curso de Publicidade e Propaganda (questão, aliás, recorrente, segundo depoimento de vários colegas), bem como lhes favorecer diferentes oportunidades de acesso a programas culturais, como formas de divertimento, construção de repertório para a carreira que pretendem seguir e de inserção social.

PERCURSO

Começamos por definir uma linha de atuação: trazer a arte o mais perto possível da realidade de vida deles. Precisava saber "o que” entendiam como arte e qual sua relação com ela. Neste sentido, propus que começássemos o ano com debates temáticos, devidamente orientados, mas livres em essência: eu queria ouvir meus alunos.

O conteúdo não era o mais importante, inicialmente, mas argumentei que, se iniciasse uma proposta falando de séculos muito distantes, se desinteressariam logo. Assim, centralizamos o conteúdo nos séculos XX e XXI, com breves pinceladas sobre o século XIX. Propus que partíssemos da consideração dos dias atuais até o início do século XX e fim do século XIX. Para isso, forneci uma bibliografia[4], selecionei filmes e documentários[5] a serem apresentados em sala, seguidos de relatório de impressões e debates.

Simultaneamente, organizei um programa de seminários, no qual diferentes grupos de alunos prepararam apresentações para a turma, com temas escolhidos por eles, cujo objetivo era desenvolver um projeto de peça de comunicação publicitária, a ser proposta para qualquer veículo, que apresentasse características do período ou movimento artístico escolhido. Para isso, a técnica ou recurso a ser utilizado seria livre, mas a condição comum a todos era que suas peças publicitárias venderiam "caixas de giz" (dessas simples, com apagador acoplado, comuns em qualquer sala de aula).

Para desenvolver as peças, os alunos fizeram pesquisas relativas ao período escolhido. Professora e demais colegas tornaram-se os "clientes", e os grupos tiveram que nos esclarecer a respeito das características dos objetos projetados para que pudéssemos avaliar as propostas.

Os movimentos apresentados como alternativas para escolha foram, predominantemente, os do século XX: Arte Moderna, Impressionismo, Neo-Impressionismo, Cubismo, Dadaísmo, Surrealismo, Expressionismo, Arte Abstrata, Construtivismo, Concretismo, Neo-Concretismo, Arte ótica/cinética, Minimalismo, Hiperrealismo, Pop Art, Vanguarda e Transvanguarda.

Após todos escolherem os períodos, a turma organizou uma "linha de tempo", para as apresentações serem feitas em ordem cronológica.

Alguns períodos ficaram "de fora" das escolhas e foram trabalhadas pela professora, em aulas especiais, de modo a que não houvesse nenhum vazio na cronologia organizada.

Iniciei o primeiro seminário para demonstrar o que era esperado de cada grupo ao se apresentar. Falei da presença da arte na propaganda em geral, como referência direta na construção de peças, lay outs e campanhas, usando a força expressiva de obras de arte consagradas. Como exemplo, destaquei uma campanha dos sabonetes Vinólia[6], onde há a presença do impressionismo, desde as embalagens dos sabonetes até a estética das peças publicitárias. Nesse dia, a "tarefa de casa" foi localizar, em qualquer peça publicitária, impressa ou não, características artísticas de períodos da história da arte..

Todos os grupos se apresentaram, de acordo com a linha de tempo montada. Cada seminário consistiu em uma aula sobre o período artístico, seguido da "defesa" do projeto proposto pelo grupo. Nas aulas intermediárias, filmes e documentários eram exibidos e os relatórios, individuais, eram entregues no estilo de redação livre. Neles, podiam fazer críticas, opinar com simples questões como "gosto" e "não gosto", desde que, sempre, expusessem seus motivos.

Esse "choque" de épocas, estilos e temáticas provocou reações bem interessantes: quando assistiram ao filme sobre a vida do pintor Basquiat[7],fizeram muitas críticas ao comportamento anti-social do artista e seu envolvimento com drogas e, curiosamente, foram poucos os comentários sobre sua condição marginal de vida; quando foi exibido o vídeo-documentário da artista de body-art Priscilla[8], as reações de repulsa à proposta foram freqüentes; no vídeo de Nam June Paike[9], eles riram muito ao constatar as diferenças estéticas do vestir na década de 70, mas foram raros os comentários sobre o teor das obras apresentadas. No filme "Matrix"[10], ficou clara a percepção da crítica social à sociedade informatizada em que vivemos, porém muito poucos declararam a percepção de características pós-modernistas, como a androginia estética das personagens.

Esse programa foi desenvolvido durante todo o primeiro semestre. No segundo semestre, um fato marcante aconteceu: a FAITER foi incorporada às Faculdades Oswaldo Cruz, ocasionando mudanças, tanto físicas (mudamos de endereço) quanto de orientação pedagógica. Em um encontro interno, em Águas de São Pedro - SP, reuniram-se todos os professores das duas instituições, com vistas a incorporar ao trabalho cotidiano a interdisciplinaridade. Todas as disciplinas de primeiro ano (onde História da Arte e Estética dos Meios está inserida) deveriam se comunicar, em forma e conteúdo.

Em conseqüência, as disciplinas Fotografia e Sociologia se incorporaram ao que já havia proposto. Em Fotografia, a partir desse ponto, iniciou-se o trabalho com o conteúdo de composição estética e, em Sociologia, estudaram a revolução industrial e suas conseqüências.

Somando esses conteúdos à bagagem que os alunos já haviam adquirido ao longo do semestre anterior nas três disciplinas, os vídeos foram reapresentados e novos relatórios foram pedidos, Individualmente e por escrito. Nesse momento, as diferenças, comparadas à performance anterior, foram evidentes. Houve entendimento das propostas e a Body Art ou a Vídeo Arte passaram a ser valorizadas como manifestações artísticas, não mais como "loucura" (comentário mais freqüente nos relatórios anteriores); foi possível perceber alguma percepção estética de pós-modernidade em Matrix. Também comentários de teor crítico-artístico a filmes, eventos artísticos (segundo relataram, passaram a freqüentar “por curiosidade") e a programas de TV, também apareceram nos relatórios.

No fim do ano, tratamos da arte postal e exploramos a relação entre arte e propaganda. Um trabalho de "garimpagem" de postais de divulgação de eventos foi feito e, a partir do material recolhido, ocorreram debates analíticos, quanto ao estilo, técnicas, composição e, também, à pertinência comunicacional, comercial e publicitária da proposta.

O trabalho final foi a execução de uma peça publicitária, chamada "take one", com qualquer técnica ou tecnologia, acompanhada de um brieffing artístico descritivo do estilo em que foi baseada.

AVALIAÇÃO

Os seminários foram avaliados da seguinte forma: metade da nota foi atribuída pela turma, em graus de zero a 10. Foi necessário justificar e/ou explicar a nota. A outra metade foi  dada por mim, de acordo com a pesquisa apresentada, pertinência e caracterização do trabalho e identificação com o período.

Os relatórios dos filmes receberam conceito de participação e foram avaliados a partir da coerência de idéias.

Ainda referente a notas, foram feitas duas provas escritas: uma, em duplas e com consulta, com três questões referentes a um dos períodos (Principais características do período; Nome de três artistas mais relevantes do período; Principais obras do período).O material de consulta era de livre escolha, na biblioteca da faculdade, no dia e horário da prova. A segunda prova foi individual, também com consulta, neste caso, ao livro Direção de Arte em Propaganda, de Newton César. Este livro foi apresentado em sala como indicação de leitura com pedido de resumo escrito, individual, a ser entregue no dia da prova. As questões feitas foram: 1. Qual a importância da arte para a propaganda? 2. Qual a importância das cores na propaganda? 3. Quais as técnicas artísticas presentes em peças de propaganda?

CONCLUSÕES:

Após o ano de trabalhos, considerando todos os seminários, projetos e modelos desenvolvidos e executados pela turma, além dos relatórios, concluímos que os objetivos iniciais foram atingidos, senão completamente, com certeza, em grande e significativa parte.

Mais de 80% da turma declarou ter passado a se interessar por teatro, cinema e exposições. Alguns alunos chegaram a ir junto comigo a lançamentos de livros para os quais  fui convidada e estendi o convite a eles.  Grande parte dos alunos comentou (comigo, e com os outros professores) que não fazia idéia da importância e alcance da arte em sua futura carreira e que pôde, com as experiências vividas, vislumbrar o "tamanho da encrenca" (palavras de um dos alunos), percebendo o quanto se tem que "estar ligado" (literalmente, de uma aluna) em tudo e o quanto a arte ajuda neste sentido, não só "para ser publicitário" mas, principalmente, para ser "gente" (textualmente extraído de um dos depoimentos). Assim, terminamos o ano letivo com a certeza de termos contribuído para a formação do conceito de cidadania dos alunos.  

Notas:

[1] Mestre em Artes Visuais pelo Instituto de Arte da UNESP/SP e Professora do Curso de Comunicação Social – Publicidade e Propaganda da UNIP – Universidade Paulista – Campus Marginal Pinheiros.

[2] Graduação: Artes Plásticas, licenciatura Plena; Pós-Graduação: Ensino e produção em artes e Mestrado: Artes Visuais.
[3] Design e Publicidade: Criação e desenvolvimento de folderes, cartazes, ícones de campanhas; criação de logotipos e logomarcas; editoração eletrônica e programação visual; criação de capas de livros; direção de arte; projeto, produção e desenvolvimento de Internet, websites e CD-ROMs; arquitetura de informação em conteúdos de websites e CD-ROMs, e planejamento de comunicação.
[4]Bibliografia: ARGAN, G. C. Arte e Crítica de arte. Lisboa: Estampa, 1988. Trad: Helena Gubernatis. 1ª Ed. CANCLINI, N. G. A Socialização da Arte - teoria e prática na América Latina. São Paulo:Cultrix, 1980. Trad: M.ª. Helena R. Cunha e M.ª. Cecília Q. M. Pinto. 2ª Ed. CARVALHO, A. e QUINTELLA, A. Arte. Belo Horizonte:Lê, 1988. Coleção Pergunte ao José. 6ª Ed. CÉSAR, N. Direção de arte em propaganda. São Paulo:Futura, 2000. 2ª Ed. DOMINGUES, D. (Org.) A Arte no século XXI - A Humanização das tecnologias. São Paulo:Unesp, 1997. 1ª Reimpressão. FISCHER, E. A Necessidade da Arte. Trad. Ed. inglesa de 1963: Anna Bostock. Rio de Janeiro:Jorge Zahar, 1976. 5ª edição. GOMBRICH, E. H. História da Arte. São Paulo:Círculo do Livro. Trad: Álvaro Cabral. LUPETTI, M. Planejamento de Comunicação. São Paulo:Futura, 2000. MARTINS FONTES. O Livro da Arte. São Paulo:Martins Fontes, 1999.Trad: Mônica Stahel. PEDROSA, M. Mundo, Homem, Arte em Crise. São Paulo:Perspectiva - Série Debates, 1986. Org: Aracy Amaral. 2ª Ed. READ, H. O Sentido da Arte. São Paulo:IBRASA, 1978. 8ª Ed. STRICKLAND, C. Arte Comentada: da pré-história ao pós-moderno. Rio de Janeiro:Ediouro, 1999. Trad: Ângela L. Andrade. 5ª Ed. TEIXEIRA COELHO NETTO, J. Um século da melhor arte. In: ARANHA, C. (Et.Alii.) Museu de bolso - MAC. São Paulo:Lemos Editorial, 2000. PP. 9-10
[5]Os filmes escolhidos foram: 1. Basquiat (96), de Julien Schnabel; 2. Nam June Paike - Vídeo Art – documentário; 3. Priscilla - Body Art - Vídeo documentário e 4. Matrix[5] - Andy Wachowski e Larry Wachowski.
[6] A referida propaganda esteve "no ar" por um longo período na década de 80. Tinha como temática principal imagens de quadros de pintores impressionistas e nas peças que continham áudio, a música "Quatro Estações", de Vivaldi, que, apesar de barroca, marcava a atmosfera "artística" da proposta. Mesmo hoje em dia, as novas propagandas dos sabonetes Vinólia ainda guardam na música "Primavera" de Vivaldi, a identificação com a marca e o slogan de ‘sensível diferença’. Segundo o diretor de criação do trabalho, André Pinho, Agência J. Walter Thompson (http://www.telaviva.com.br/making/produto/makin94a.htm): "A intenção da agência era a de ressaltar o conceito de”sensível diferença” que sempre caracterizou a marca, mostrando a mulher como diferente entre iguais. Até mesmo a trilha sonora foi feita em cima da Primavera, de Vivaldi, cuja identificação com Vinólia é imediata."
[7] Primeiro filme pedido para que vissem, alugando-o em video-locadoras de sua preferência.
[8] Priscilla é uma moça, aluna de graduação de arte na UNESP, que tem uma proposta de body arte onde ela tatua permanentemente, manchas de vaca, em seu próprio corpo, numa proposta de, segundo ela mesma, "virar vaca". Uma "negação da sua condição humana para se tornar um animal". O vídeo com o trabalho dela não é comercial e consegui uma cópia com a Profª. Drª. Lia Tomás, que leciona na Unesp e por intermédio de quem conheci o trabalho da Priscilla.
[9] Coletânea de trabalhos do artista multimídia, apresentadas sob forma de documentário. Cópia emprestada pela Profº. Drº. Lia Tomás, IA-Unesp, SP.
[10] Foi pedido aos alunos que vissem o filme, alugando-o em vídeolocadoras de sua preferência.

Revista Digital Art& - ISSN 1806-2962 - Ano II - Número 01 - Abril de 2004 - Webmaster - Todos os Direitos Reservados

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