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O Discurso Cientificista no Livro a Chave do Tamanho de Monteiro Lobato
Autor: José Apóstolo Neto [1] - joseapostolo@ig.com.br

Resumo:

O presente artigo objetiva empreender uma análise crítica literária e histórica do livro A Chave do Tamanho (1944), de Monteiro Lobato; buscando apreender na estrutura e no conteúdo do mesmo a recriação literária do discurso científico de sabor oitocentista.

Palavras-Chave: Literatura; História; Arte; Ciência.

Abstract:

This article tries to make a critical literary and historical analysis of the book "A Chave do Tamanho" (1944), by Monteiro Lobato. It tries to take the literary recriacion of the cent-XlX cientific speech in the structure in the contents of the of same.

Keywords: Literature; History; Art; Science.

1. Introdução.

No decurso do presente século, tornou-se um consenso, pelo menos para os historiadores da cultura, a idéia de uma comunicação dialógica entre várias áreas do saber, mutável historicamente. Idéia que, em termos alegóricos, corresponderia a um espírito unificador da produção cultural e intelectual de determinada época histórica[2].

Tal postura epistemológica - motivada em parte por certas experiências históricas[3] - tem possibilitado enxergarmos o mundo e o seu passado como um imenso caleidoscópio, cujo movimento diante dos nossos olhos produz uma profusão de irisadas imagens de configurações diversas, que são mais que uma mera somatória de suas partes constituintes; mas um todo em que as partes interagem entre si modificando-o sempre e por ele sendo modificadas.

Para ter uma idéia do que foi dito anteriormente, basta dizer que as realizações culturais da humanidade, que pareciam não estabelecer nenhum contato entre si, agora são vistas como mantenedoras de inter-relações diversas. Fritjof Capra soube como poucos visualizar os pontos de comunicação entre fenômenos culturais aparentemente distintos e excludentes um do outro.

No livro O Tao da Física, por exemplo, realiza um brilhante trabalho no qual procura estabelecer um paralelo entre física moderna (física subatômica, física quântica, física nuclear, teoria da relatividade etc) e o pensamento místico oriental (taoísmo, budismo, zenismo e hinduísmo).

Em certa passagem do livro, Capra faz uma afirmação que sintetiza muito bem o que foi dito aqui nos parágrafos anteriores:

“O mundo, diz ele, afigura-se assim como um complicado tecido de eventos, no qual conexões de diferentes tipos se alternam ou se sobrepõem, ou se combinam, determinando assim, a textura do todo”.

Anatol Rosenfeld, num sofisticado ensaio, intitulado Reflexões Sobre o Romance Moderno, faz do zeitgeist o fio condutor de suas reflexões sobre a arte moderna, propondo a idéia de que várias áreas da cultura no século XX estabeleceram uma comunicação entre si ao representarem, cada qual com a sua linguagem própria, experiências da vida moderna - a crise dos paradigmas da totalidade, a relatividade do mundo fenomênico, a crise da posição objetiva do homem diante da natureza, o mergulho do indivíduo no turbilhão da vida urbana, a aceleração da história, o dilaceramento do ser humano pelas guerras e poderosos cataclismos naturais etc.

E isto é percebido, no campo da produção artística, não só na temática abordada, mas também na composição formal da obra. No caso do teatro, da pintura, do romance e do cinema, a solução estética encontrada para representar o caos urbano, a perda de perspectiva, o desaparecimmento do sujeito no objeto, foi a desrealização da realidade através de processos estilísticos formais que abolem a perspectiva - técnica cara à arte tradicional[4].

A arte moderna, portanto, se nega a ser figurativa, quebra com a ilusão do espaço tridimensional e rompe com a visão lógico causal, mergulhando na subjetividade relativista do indivíduo[5].

É assim que o palco à italiana dá lugar à cena espacial, no teatro; a figura humana e o objeto dão lugar às imagens deformadas, às figuras geométricas e ao jogo de tons e coloridos, na pintura; que o tempo cronológico e a causalidade dão lugar à fusão temporal do monólogo interior e à visão microscópica, no romance.

Assim, não fica difícil perceber que noções e conceitos das ciências modernas se fazem presentes também na arte moderna, indicando um fecundo diálogo entre elas.

Posto isto, o presente trabalho, com base no que foi discutido anteriormente, objetiva discutir as relações entre ciência e literatura, mais especificamente entre o livro A Chave do Tamanho, de Monteiro Lobato, e o pensamento cientificista do século XIX. Para tanto, fará uso da análise crítica literária e histórica do conteúdo e da estrutura narrativa da obra, bem como da filosofia da ciência.

2. Lobato e o Cientificismo.

Existe um expressivo número de obras literárias de autores brasileiros nas quais o pensamento cientificista faz-se sentir fortemente. São obras produzidas principalmente no século XIX e no início do século XX, que, no conjunto, formam o movimento estético literário denominado realista-naturalista-parnasiano.

Filhas do seu tempo, tais obras não se fizeram alheias à consciência cultural oitocentista, gestadas e difundidas em grande parte no e pelo Velho Mundo. Ao contrário, elas tomaram para si a tarefa de representar a objetividade da análise e os condicionantes externos do homem como orientavam o positivismo e o evolucionismo, respectivamente:

“Comte, Taine, Spencer, Darwin e Heckel foram os mestres de Tobias Barreto, Silvio Romero e Capistrano de Abreu e o seriam, ainda nos fins dos séculos, de Euclides da Cunha, Clóvis Bevilácqua, Graça Aranha e Medeiros de Albuquerque, enfim, dos homens que viveram a luta contra as tradições e o espírito da monarquia.”[6]

Monteiro Lobato, embora tenha vivido e escrito, basicamente, na primeira metade do século XX, parece ter se esforçado para realizar, através de sua obra, o projeto estético-literário da cosmovisão realista do século XIX.

De acentuada tendência à concepção racionalista e pragmática do homem, ele negou a contribuição dos movimentos estéticos de caráter irracionalista que o pensamento do imediato pós-guerra propusera para arte novescentista. É famosa a crítica exagerada que Lobato fez ao trabalho de Anita Malfati na Semana de Arte Moderna de 1922.

Lobato era um assíduo leitor e admirador confesso dos ideólogos e propagandistas da “forma mentis” objetivante do século XIX. Isto contribuiu para que ele mantivesse sua postura cientificista, em meio a um mundo fragmentado pela visão relativista da arte moderna e da filosofia da primeira metade do presente século.

2.1. Linguagem científica e linguagem poética

Esse cientificismo é recriado no livro A Chave do Tamanho. Ele conta a história dos habitantes do Sítio do Picapau Amarelo, que preocupados com os horrores da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), especulam sobre uma maneira de colocar um fim imediato ao conflito.

Impulsionada pelo seu instinto prático, Emília toma a iniciativa de tal empreitada. Cheira o pó mágico do Visconde de Sabugosa e transporta-se para o mundo das chaves, intencionando encontrar a chave da guerra. Mas, ao tentar acioná-la, Emília tem o seu tamanho reduzido e verifica que mexeu na chave do tamanho.

Curiosa em saber se a redução também se efetivou sobre todos os seres vivos, aspira o pó que restava e volta ao Sítio do Picapau Amarelo, mais precisamente no jardim. Aí tem início à aventura da boneca no campo da investigação científica no sentido de discernir a lógica de funcionamento do mundo natural e social até encontrar a solução para o problema da redução do tamanho dos seres humanos.

Por trás de uma história aparentemente simples como esta, podemos encontrar alguns pontos de contato entre o discurso científico e a narrativa literária ficcional; ponto de contato que não fica apenas ao nível do conteúdo, mas também da estrutura. O discurso científico aqui funciona ao mesmo tempo como matéria e elemento formal.

O primeiro paralelo que se pode estabelecer entre os dois discursos, um funcionando no outro, é no que se refere à linguagem. A linguagem científica é, como prescreve os próceres positivistas, uma linguagem por excelência referencializada, precisa, objetiva.
No afã de apreender o objeto na sua essência, na sua concretude, o sujeito do conhecimento, segundo os manuais de cientificidade, deve adotar uma linguagem livre de subjetividade, livre de plurissignificação e ambigüidade. Referencializar a linguagem, ou seja, falar de algo que realmente existe externamente ao pesquisador, é um expediente que supostamente garante o estatuto de cientificidade ao conhecimento, a sua veracidade.

A linguagem objetiva aparece no livro A Chave do Tamanho, afora como recurso lingüístico formal, como idéia desenvolvida no interior da obra, parecendo justificar a sua utilização pelo autor.

Refiro-me ao episódio da primeira parte do livro, intitulado “Pôr do Sol de trombeta”, no qual Emília trava uma acirrada discussão com Dona Benta acerca da expressão “Pôr do Sol”, como podemos conferir nestas narrativas.


- “Que maravilhoso fenômeno é o pôr do sol! - disse ela.” (Dona Benta).(...)
- “Por que é que se diz ‘pôr do sol’, Dona Benta? - perguntou com o seu célebre ar de anjo de inocência. - Que é que o Sol põe? Algum ovo?
- O Sol não põe nada, bobinha. O sol põe-se a si mesmo.
- Então ele é o ovo de si mesmo. Que graça!
Dona Benta teve a pachorra de explicar.
- Pôr do sol é um modo de dizer. Você bem sabe que o Sol não se põe nunca; a Terra e os outros planetas é que se movem em redor dele. Mas a impressão nossa é de que o Sol se move em redor da Terra. - e portanto ‘nasce’ pela manhã e ‘põe-se’ à tarde.
- Estou cansada de saber disso - declarou Emília - A minha implicância é com o tal de ‘pôr’. ‘Pôr’ sempre foi botar uma coisa em certo lugar. A galinha põe o ovo no ninho. O Visconde põe a cartola na cabeça. Pedrinho põe o dedo no nariz.
- É um modo de dizer, já expliquei - repetiu Dona Benta.
- Estou vendo que tudo que a gente grande diz são modos de dizer, continuou a pestinha. Isto é, ‘são pequenas mentiras’ - e depois vivem dizendo as crianças que não mintam! Ah! Ah! Ah!... Os tais poetas por exemplo. Que é que fazem senão mentir? Ontem à noite a senhora nos leu aquela poesia de Castro Alves que termina assim:
‘Andrada! Arranca esse pendão dos ares! Colombo! Fecha a porta dos teus mares!’. Tudo mentira. Como é que esse poeta manda o Andrada, que já morreu, arrancar uma bandeira dos ares, quando não há nenhuma bandeira nos ares, e ainda que houvesse, bandeira não é dente que se arranque! ... E como é que esse poeta, um soldado raso, se atreve a dar ordem a Colombo, um almirante? E como é que manda Colombo fechar a porta dos teus mares, se o mar não tem porta e Colombo nunca teve mares - quem tem mares é a Terra?[7]

Nesse debate, do qual Emília sai vitoriosa, podemos perceber claramente a oposição linguagem científica/linguagem poética, que o narrador expõe definindo a sua escolha lingüística. Prefere a primeira à segunda.

2.2. O tempo verbal

Ainda no que diz respeito à linguagem, as aproximações entre o discurso cientificista e o discurso de A Chave do Tamanho não param por aí. O tempo verbal é um aspecto revelador disso. Num discurso quanto no outro um verbo é conjugado no pretérito perfeito, dando à narrativa um certo grau de impessoalidade, neutralidade e veracidade, pois fala daquilo que já passou, já foi consumado. Somente quando se trata da voz da personagem é que outros tempos verbais são utilizados:

“(...) Nesse momento avistou um enorme caramujo da altura dela. Compreendeu que era um daqueles caramujinhos tão abundantes na horta de Dona Benta. Trepou sem medo encima da casca e ficou de cócoras. O caramujo parece que nem deu pela coisa. Foi andando, andando, mas vagaroso demais. Emília cochilou e caiu.
- Este cavalo não serve. Dá sono na gente. Tenho de arranjar outro.”[8]

Roland Barthes, no livro O Grau Zero da Escritura, nota que o verbo no passado simples exprime um ato fechado, definido e determinado; fornecendo à narrativa perspectiva, racionalidade e linearidade.

2.3. O narrador onisciente

Por outro lado, a veracidade, a perspectiva, a linearidade e, o mais importante, a neutralidade do discurso e da narrativa são ainda conseguidos através do tipo de narrador empregado - o narrador em terceira pessoa, que conta a história e narra os fatos de fora e de cima, como um Deus todo poderoso que tudo conhece, tudo vê e tudo organiza:

“Aquela tristeza de Dona Benta andava à anoitecer o Sítio do picapau, outrora tão alegre e feliz. E foi justamente esta tristeza que levou Emília a planejar e realizar a mais tremenda aventura que ainda houve no mundo. Emília jurara consigo que daria cabo da guerra e cumpriu o juramento - mas por uns trizes não acabou também com a humanidade inteira.[9]

Neste texto, o narrador faz um pequeno resumo da história, revelando, em linhas gerais, o jogo de causa e efeitos no qual se desenrola a mesma, bem como o seu desfecho; o que indica que ele (o narrador) como um Deus, conhece a história na sua totalidade.

Nessa modalidade de texto tem-se a impressão de que a narrativa se constrói a si mesma. Com o apagamento do seu sujeito, cria-se a idéia de que o mundo e os seus fenômenos ocorrem tal como se está sendo narrado; independente da vontade e da existência do observador. O “ele” funciona aqui como um recurso lingüístico criador da ilusão de um mundo regido por leis próprias, que segue no espaço e no tempo uma linha evolutiva.

2.4. Análise de conteúdo

Porém, se no nível da forma e do estilo pudemos perceber algumas aproximações entre o discurso cientificista e aquele encontrado no livro A Chave do Tamanho, ao nível do conteúdo tais aproximações tendem a se estreitar mais.

Na verdade, o conteúdo do livro é um conteúdo que se pretende científico. Ele quer mostrar, comprovar, descrever, classificar, afirmar, e ensinar. Nele, não faltam métodos de análise, experimentações, pesquisas, idéias e teorias científicas, realizadas e desenvolvidas nos limites dos preceitos de cientificidade instituídos pelo pensamento oitocentista.

A necessidade de dar ordens às coisas, de colocar o mundo em perspectivas é elemento essencial da história. A passagem em que Emília desperta no mundo das chaves ilustra muito bem isto:

Quando Emília abriu os olhos e foi lentamente voltando da tonteira, deu consigo no lugar nebuloso, assim com ar de madrugada. Não enxergou  árvores, nem montanhas nem coisa nenhuma - só havia lá longe um misterioso casarão.

Isto deve ser o Fim do Mundo, e aquela casa só pode ser a Casa das chaves. Que pó certeiro o do Visconde!

Ergueu-se, ainda tonta, e aproximou-se do casarão. Certinho! Um grande letreiro na fachada dizia simplesmente isto: ‘CASA DAS CHAVES’. Emília esteve algum tempo de nariz para o ar, com os olhos naquelas estranhas letras de luz. Viu uma porta aberta. Enchendo-se de coragem, entrou. Não havia coisas lá dentro, objeto nenhum, nem máquinas. Só aquele nevoeiro de lá fora, mas numa espécie de parede distinguiu um correr de chaves como as da eletricidade, todas erguidas para cima.”[10]

2.5. Concepções sobre método

Desde épocas remotas, o homem, por motivos de sobrevivência, num mundo dominado por forças naturais poderosas e ameaçadoras, procurou desesperadamente dar significado ao mundo circundante.

Ocorre, porém, que o objetivo de dominar a natureza tornou-se, a partir do século XVI, um imperativo. E o pensamento pautou-se, desde então, basicamente, pela idéia de progresso e aperfeiçoamento humano. O que acabou estruturando a mentalidade positivista de que o desenvolvimento do homem passava necessariamente pela racionalização da natureza biológica, política e social.

Esse pensamento cientificista pode ser visualizado no livro a Chave do Tamanho quando a personagem-protagonista Emília coloca em ação os métodos de investigação científica. Métodos diversos e variados, que se combinam entre si de modo a formar, no conjunto, um sistema filosófico eclético que mesmo assim não foge aos padrões de cientificidade da análise objetiva.

São várias as situações em que isto acontece, a começar pela cena na qual Emília, no Mundo das Chaves, procura a chave da guerra em meio a milhares de outras chaves.

“- A única solução é aplicar o método experimental que o Visconde usa em seu laboratório. É ir mexendo nas chaves, uma a uma, até dar com a da guerra.”[11]

Ou ainda quando instaura a dúvida sobre a dimensão real dos objetos, após acionar a chave do tamanho:

“E pôs-se a pensar mais forte ainda. - Só pode ser por uma coisa: por causa da descida da chave. Logo, aquela chave é a que regula o meu tamanho. Regula só o meu tamanho, ou regula o tamanho de todas as criaturas vivas? Regula o tamanho de todas criaturas vivas, ou só os das criaturas humanas? Quantos problemas, meu Deus!
(...) Pensou, pensou.
- Se todas as criaturas ficaram pequeninas como eu fiquei, então o mundo inteiro deve estar na maior atrapalhação e com as cabeças transtornadas quanto a minha...
(...) Pensou, pensou, pensou...
- A prova de que essa chave só regula o tamanho das criaturas vivas, está aqui nessa caixa de fósforos. Se esta caixa de fósforo também tivesse diminuído, estaria proporcional ao meu corpo, e não imensa como está.

A situação era tão nova que as suas velhas idéias não serviam mais. Emília compreendeu um ponto que Dona Benta havia explicado, que nossas idéias são filhas de nossa experiência.”[12]

Posto assim, não fica difícil perceber, nestas passagens, a presença de formas de investigação “objetiva”, próprias do pensamento ocidental, cuja preocupação maior é alcançar a certeza sobre os fenômenos que problematizá-los. Os métodos empirista, hipotético-dedutivo, lógico-formal são instrumentos epistemológicos forjados por um certo tipo de mentalidade que, embora tenha uma herança da filosofia clássica, deita raízes históricas no Renascimento e no Iluminismo se estendendo até os séculos XIX e XX.

Refiro-me a mentalidade fundante do racionalismo e do empirismo que, segundo Karl Popper, foram sugestionados pela atmosfera positiva do otimismo epistemológico, originária das grandes transformações históricas (crise do feudalismo e da tradição, ascensão da burguesia e do liberalismo etc.) que acabaram por libertar o homem para o saber.

Mas se o narrador e os personagens demonstram um fino trato com as questões do método científico, não menos exímios mestres serão em relação às grandes teorias no campo da biologia, da filosofia e da física clássica. É possível ver que boa parte da obra dedica-se a exposição e aplicação das idéias e conceitos fundamentais do evolucionismo, do determinismo, da entomologia e da mecânica newtoniana.

É o que se observa, por exemplo, no episódio em que Emília põe-se a pensar sobre a estrutura de funcionamento do sistema aerodinâmico do besouro voador. Aqui a postura didática, o método descritivo e a visão mecanicista são os elementos que organizam a exposição.

“O Visconde vivia estudando a vida daqueles animaizinhos. Explicou que se chamavam coleópteros por causa do sistema das asas dobráveis e guardáveis dentro dum estojo. Essas asas são membranosas, fininhas como papel de seda, mas não andam à mostra, como as das borboletas, aves e outros bichos menos aperfeiçoados. Só aparecem quando o coleóptero vai voar. O estojo é formado de dois élitros cascudos, duros como unha. São dois verdadeiros moldes côncavos ajustados à forma do corpo...

(...) O Visconde achava muita graça no sistema, que era o mais aperfeiçoado de todos, dizia ele... Se o sistema não fosse tão bom, a ordem dos coleópteros não se multiplicaria em tantas espécies. Quando um sistema não é aperfeiçoado os bichos que usam levam a breca, como aconteceu com aqueles grandes sáurios que o Walt Disney mostrou na Fantasia. Por que desapareceram tais monstros? Justamente porque o ‘sistema sáurio’ não prestava. E por que os besouros aumentaram? Porque os ‘sistema besouro’ é aqui da pontinha...”[13]

Em outros momentos da história, a alusão às teorias tradicionais também é recorrente. É interessante notar como elas se combinam e se complementam a ponto de perdermos de vista as fronteiras que as separam enquanto disciplinas específicas:

“- Que mundo é este, santo Deus! - murmurou, muito atenta a tudo quanto se passava em redor. É o tal ‘mundo biológico’ de que tanto o Visconde falava, bem diferente do ‘mundo humano’. Diz ele que aqui quem governa não é nenhum governo com soldados, juízes e cardeais. Quem governa é uma invisível Lei Natural. E que Lei Natural é essa? Simplesmente a Lei De Quem Pode Mais. Ninguém neste mundinho procura saber se o outro tem ou não tem razão. Não existe a palavra justiça. A Natureza só quer saber duma coisa: quem pode mais. O que pode mais tem o que quer, até o momento em que apareça outro que possa ainda mais e lhe tome tudo. E por que essa maldade? O Visconde diz que é por causa duma tal Seleção Natural, a coisa mais sem coração do mundo, mas que sempre acerta, pois obriga todas as criaturas a irem se aperfeiçoando. ‘Ah, você está parado, não se aperfeiçoa, não é?’ Diz a Seleção para um bichinho bobo. ‘Pois então leve a breca.’ E para não levar a breca, o bichinho trata de inventar toda sorte de defesa e astúcias.

(...) Tismo. Mi-me-tis-mo. Quer dizer imitação. Uns imitam a cor dos lugares onde moram. Se moram em pedra, imitam a cor da pedra...

Pois é. Estava Mimetizando um galho seco. Mimetismo é isso. Não conhece aquelas borboletas carijós que se sentam nas árvores musguentas e ficam ali quietinhas, tal qual um desses musgos cinzentos? Musgos, não. Líquen. Líquen! O Visconde não quer que a gente confunda musgo com líquen. Decore.”[14]

2.6. Visões de mundo, tempo e espaço

Finalizando, convém lembrar, apenas para reforçar a idéia do viés cientificista do livro A Chave do Tamanho, que a visão mecanicista newtoniana baseada na idéia de tempo e espaço absolutos de Euclides, atua também na maneira como Emília percebe o mundo antes e depois de suas viagens no tempo e no espaço, e da redução do seu tamanho. Numa e noutra situação, a sua visão continua a mesma - percebe o mundo sempre de um ponto de vista tridimensional e lógico-causal.

O mundo é concebido pela boneca como fixo e estático, passível de classificação e categorização (como já tivemos a oportunidade de ver em alguns trechos do livro analisados anteriormente), e detentor de leis precisas de funcionamento, que existem independente das experiências e da interferência do observador-participante.

Comprova isso, primeiro, o fato da narrativa se manter inalterada antes e depois da mudança de tamanho. Segundo, no fato de Emília e o narrador enxergarem o mundo da perspectiva do espaço geométrico linear (formas definidas e estanques) e a partir de pontos de referência fixos; embora admitam uma certa relatividade das coisas:

“Emília olhava em redor e ia compreendendo o mundo novo em que tinha de viver. À esquerda via uma aranha sugando um mosquito preso em sua teia invisível. À direita um bando de formigas atracadas a uma pobre minhoca, que se debatia como um ‘S’ vivo...

Emília firmou a vista. Quadrados enormes lá em cima: as janelas! A platibanda ficava tão alta que ela mal podia vê-la.
Um palacete, sim, muito maior que a casa de Dona Benta. Vai ser difícil acostumar-me ao novo tamanho das coisas; para as formiguinhas, no entanto, esse tamanhão das coisas é o natural, pois foi como sempre elas o tiveram. As formigas ruivas nem podem compreender o que é uma casa. Hão de ver as casas como partes do mundo, ou coisas que sempre foram, como os morros, as pedreiras, os rios, as árvores; e por isso passeiam sem medo pelas casas, sobem e descem pelas paredes, chegam até a fazer seus buraquinhos rente às calçadas. Quando vêem sair lá de dentro uma pessoa, com certeza nem compreendem o que é uma pessoa; acham que é apenas uma imensidade móvel, como os rios ou o mar. Para as formigas o mundo deve estar dividido em imensidades paradas e imensidades móveis. Uma casa ou um morro é uma imensidade parada; de dentro da casa saem imensidades móveis: gente, cachorro, gatos. E nos campos há imensidades com chifres, que nós chamamos vacas ou bois. Mas apesar de ter eu agora o tamanho duma saúva, possuo a mesma inteligência de antes - e sei. Sei que estas imensidades que estou vendo não passam de verdadeiras pulgas perto de outras coisas ainda maiores, como as montanhas não passam de pulgas perto de outra coisa maior, como a Terra; e a Terra é uma pulga perto do Sol é um espirro de pulga perto do infinito. Como sei coisas, meu Deus!”[15]

Como podemos observar, os elementos figurativos da narrativa, como “À esquerda”, “À direita”, “Quadrados”, “lá em cima”, “tão alta”, “sobem e descem”, indicam que o pensamento espacial da boneca não se alterou mesmo após a atomização do seu tamanho.

Continua a diferenciar o espaço e as dimensões das coisas em termos de longitude, latitude, lateralidade e meridianos; embora revelem também a relatividade do mundo de acordo o ponto de vista: “... para as formiguinhas, no entanto...”

Mas, como todo texto é máquina de produzir sentidos, penso que o enunciado acima seja o indício de outra leitura possível do livro A Chave do Tamanho.

3. Idéias Conclusivas

Tentou-se neste trabalho estabelecer uma relação entre discurso cientificista ou pensamento científico tradicional e o discurso da obra A Chave do Tamanho de Monteiro Lobato, procurando perceber o funcionamento do primeiro na estrutura e no conteúdo do segundo. Em outros termos procurou-se verificar a operacionalização de conceito, métodos e pensamentos da ciência clássica na estrutura narrativa do livro infantil de Lobato.

A análise demonstrou que esses fatores extra-literários funcionaram como fatores de composição da obra tanto no nível formal como no do conteúdo. Demonstrando assim que, nesse caso, Lobato operou muito bem a dialética da forma e do conteúdo ao transformar o externo, no caso a ciência moderna, em fator estético.

Não interessou aqui discutir como os sistemas filosóficos e conceitos científicos clássicos foram sistematizados e assimilados na e pela mente de Monteiro Lobato, de modo a refletir em sua obra; mesmo porque isto exigiria um esforço intelectual infinitamente maior do que o exigido pelo presente. A preocupação primeira foi evidenciar a mentalidade científica oitocentista no livro e sugerir que o zeitgeist também operou, no caso estudado, a comunicação entre literatura, ciência e história.

Bibliografia

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ROSA, J.G. Grande Sertão Veredas. 20 ed. Rio de Janeiro:Nova Fronteira, 1986.

Notas:

[1]Historiador formado pela Universidade Estadual Paulista – UNESP

Professor universitário, jornalista profissional
Coordenador do Cursinho Comunitário PARATODOS Zona Leste – São Paulo
2] Zeitgeist é um termo alemão, freqüentemente utilizado pelos historiadores da cultura e críticos literários, desde Burckhardt até Auerbach, que significa espírito de época. A acepção utilizada aqui tem uma dimensão histórica. Mais que um espírito ou abstração, zeitgeist é uma sensibilidade, uma prática cultural e intelectual, resultante da problematização do homem sobre experiências históricas significativas, como sugere Anatol Rosenfeld no ensaio Reflexões Sobre o Romance Moderno. In: Texto/Contexto. São Paulo, Perspectiva, 1973.
[3] É interessante notar que a assunção de tal ponto de vista ocorre no momento mesmo da irrupção de importantes acontecimentos no presente século, sobretudo a partir da década de 1950. O surgimento de novos centros de poder fora os EUA, a crise e o colapso do Estado Socialista Burocrático, a inserção deste no Capitalismo Mundial Integrado, o fim do conflito Leste/Oeste, o aquecimento do conflito Norte/Sul, a aceleração do refinamento e sofisticação técnico e tecnológico da vida em geral constituem algumas das experiências históricas diluvianas. Vale dizer ainda que um sem número de estudos transdisciplinares, aparecidos na forma de artigos, publicações, pesquisas universitárias, seminários, congressos científicos etc., está sendo constantemente na tentativa de avaliar o impacto destes acontecimentos na vida social e cotidiana do homem contemporâneo. É impressionante o vertiginoso crescimento da literatura sobre o assunto, tornando difícil uma referencialização bibliográfica completa num trabalho da dimensão deste.
[4] Para fins didáticos, entende-se por arte tradicional toda produção artística herdeira do Renascimento (Séc. XVI - Séc. XVIII), que se pretende perspectívica e mimética, ou seja, uma cópia fiel da realidade.
[5]Procedimento de negação e relativização da realidade que também tinha curso nas ciências fisio-químicas e biológicas, no nível temático e teórico.
[6] BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. 3 ed. São Paulo: Cultrix, 1986 p.183.
[7]LOBATO, Monteiro. A Chave do Tamanho. 32 ed. São Paulo: Brasiliense, 1989. p. 8.
[8]Id., ibid., p.16.
[9]ibid., p. 9.
[10] Ibid. p. 9.
[11]Ibid., p. 10.
[12]Ibid., p. 11.
13]Ibid., p.17.
14]Ibid., pp.18-35.

[15]Ibid., p. 14

Revista Digital Art& - ISSN 1806-2962 - Ano II - Número 01 - Abril de 2004 - Webmaster - Todos os Direitos Reservados

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