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OCUPAÇÃO NA OCUPAÇÃO: Arte Contemporânea no Movimento dos Sem Teto do Centro.
Autora: Fabiane Borges[i]catadores@uol.com.br

Aos Aliados

No centro da cidade de São Paulo, em dezembro de 2003, houve três semanas de um ritual de interferência e celebração à vida. Eu, Maria do Sul[ii], quero contar-lhes o que se passou no Encontro de Arte Contemporânea[iii], junto ao Movimento dos Sem Teto do Centro de São Paulo.

O MSTC[iv] junta atualmente cerca de 50 mil pessoas advindas de movimentos por moradia das favelas e dos cortiços. Caracteriza-se como movimento radical que ocupa prédios ociosos do centro da cidade de São Paulo; sua ação interfere no mapeamento comum da cidade que lhes remete sempre as zonas periféricas, onde não existe infraestrutura para uma “vida digna” (saúde, escolas, lazer, etc). Foi num desses prédios ocupados - Ocupação Prestes Maia - que fizemos o encontro denominado ACMSTC.

O prédio é impressionante! Nos anos 50 era uma enorme fábrica de tecidos; trinta e cinco andares de galpões abandonados durante vinte anos por dívidas (4 milhões de IPTU), agora são ocupados por dois mil sem tetos (coordenado só por mulheres), que criaram no interior desses espaços suas pequenas casas: verdadeiras instalações construídas a partir do que é catado no caminho, no entulho e também nas Casas Bahia.

Estranheza! Cento e vinte artistas cheios de instalações, objetos conceituais e símbolos, encontrando uma ocupação do Movimento dos Sem Teto: quatrocentas e setenta famílias subsistentes, em tensão na luta por moradia, cujo cotidiano é um estado de sítio permeado por vigílias, reuniões, assembléias, votações, passeatas e negociações ininterruptas com as várias instâncias político-administrativas do país. Como poderia não ser estranho? Como movimentos tão alheios poderiam encontrar-se?

É comum pensar em arte junto ao movimento social como caridade criativa, chamarisco introdutório para discussões mais sérias, oficinas educacionais, mas nesse caso não se tratava de nada disso. A única proposta era o Encontro com a diferença e a Criação: “Entrar na ocupação, conhecer os moradores e o movimento e a partir desse encontro, se for possível, se colocar em obra[v]”.

Quanta confusão gerou essa simples demanda! Teve artista que desistiu; outros acharam que arte não tinha sentido; uns se perdiam por não haver curadoria, alguns se misturaram de tal modo com o movimento que passaram a participar das reuniões de coordenação de andar do prédio, dando opiniões e exigindo direito a voto. Teve quem saiu de lá querendo fazer sindicato dos artistas contemporâneos paulistanos. Foi como um incêndio no cotidiano de todos – como um ritual do fogo: Agrupa, Aquece e também Consome e Destrói.

Equiparar o Encontro com um ritual de fogo está para além de uma metáfora propícia, pois o fogo para esta ocupação é signo especial. Quatro andares das paredes que abrigavam tantos Sem Tetos incendiaram no dia sete de setembro de 2003, três meses antes do nosso encontro; dezenas deles assistiram, impotentes, suas casas instaladas, seus cachorros e uma de suas filhas, em chamas! Diante dessa fatalidade tiveram que reinventar espaços, agregar famílias, criar mutirões de colaboração e produzir novos agrupamentos dentro do prédio. Este evento aconteceu de forma explosiva por ter sido nessa Ocupação incendiada, onde as pessoas experimentaram a necessidade e a urgência da ação coletiva nos contaminando com sua premência radical.

A maioria dos artistas que participaram refletem um fenômeno contemporâneo denominado por alguns de “arte pública”, por outros de “urgência do real”. Trata-se da necessidade de ampliar os espaços de atuação da arte, se integrar ao campo social, interferir nos espaços públicos-urbanos-políticos. Vários trabalhos desse tipo têm sido feitos, individuais ou coletivamente: alguns grupos se dedicam a trabalhar especificamente com mídia alternativa, criando zonas de interferências nas ruas com cartazes, colagens (cifras $ nos outdoors), rádios piratas em locais institucionalizados da Arte, pichações com mensagens inusitadas, ocupações de hackers em sites oficiais e em celulares; outros desenvolvem formas mais artesanais como passear com uma galinha no shopping Morumbi, viver uma semana como camelô, fazer performance com moradores de rua; tudo evidentemente filmado, editado e apresentado em espaços como bares, raves, escolas, universidades, galerias. A idéia é interferir no ordinário; amplificar as conexões complexas e intrincadas das redes de relações humanas, políticas e sociais da contemporaneidade; é a necessidade de intervir e inscrever o imaginário no campo coletivo.

A singularidade do Evento na Ocupação é que nunca tínhamos feito uma intervenção com tantos artistas reunidos dentro de um movimento social radical, que por si só já interfere constantemente nos espaços públicos, urbanos e políticos. Foi o encontro dos filhos das lutas de classes operárias (MSTC) com os herdeiros dos movimentos culturais do século XX (artistas). Historicamente, este encontro (arte e política) sempre foi conflituoso, já que ou a arte era submissa às monarquias e ao poder do capital, ou ela era cooptada pelo Estado, ou ela era qualificada como movimento anárquico que se contrapunha a tudo isso... entre outras coisas, evidentemente. O Encontro na Ocupação foi uma experiência arriscada, subjetiva, assimétrica e política.

Os vários segmentos artísticos foram misturados: teve pichação, grafitagem, teatro, performance, artes plásticas, música, foto, vídeo, cartaz, escultura, instalação, texto, poema; os moradores do prédio reivindicaram que também eram artistas e pintaram as paredes, fizeram feiras de artesanato, roupas, desfile de moda, comidas regionais típicas, apresentação de grupos de axé, hip-hop, etc.

Foi um encontro de mudar a vida, como pode mudar a vida um ritual de fogo. O ritual tem poder de alterar a realidade, ampliar os estados ordinários de tempo e espaço, promover conexões com outras modalidades de existência, e conforme a intensidade tem poder de enlouquecer, sacrificar e destruir. São muitas forças que entram em ação quando se joga com a experimentação radical. Esse encontro indubitavelmente foi radical! Havia um abismo social implicado nessa experimentação. A maior parte dos artistas era branca, intelectualizada, tecnologizada, de certa forma incluída no sistema de consumo e produção material e cultural, correspondendo perfeitamente aos padrões da elite, não fossem os anseios por outro tipo de sociedade; já a ocupação era constituída de uma maioria mestiça, sem recursos de educação formal, desprovida de qualquer tecnologia, empobrecida, que carrega o sonho da casa própria como sentido da vida. As forças “linha-dura” vinham de todos os lados em forma de preconceitos, prepotências, caridades, insuficiências, impotências e incompreensões, mesmo que a demanda persistisse: O ENCONTRO. “Não é melhor dar cestas básicas do que fazer arte?”, perguntou-nos a Folha de São Paulo. Como convencer esse povo pacato, que observa de longe nossa atuação, de que o que fazíamos tinha sentido? “Qual a sustentabilidade desse projeto?”, perguntaram alguns ongueiros, acostumados a palavras de ordens, também observando de longe. Eram questionamentos jogados no campo de força, que impetuosamente exigiam respostas. Mas não havia respostas, nem controle de nada! O Encontro estava feito e todos teriam que se haver com isso, quem tivesse vontade de permanecer, que o fizesse. As portas da ocupação estavam abertas, permanecer ou não era projeto de cada um. Que cada um amplificasse essa experiência conforme suas conexões: amizades, oficinas, cooperativas, projetos.

Para terminar, confesso que ainda estou aturdida, não sei bem o que aconteceu. Parece-me que tudo continua vibrando. Nas paredes da antiga tecelagem ainda ressoam os conchavos de greve das mulheres operárias dos anos 50, confundidos com os gritos de guerra das matilhas ferozes femininas que coordenam o movimento sem teto. Quadros, pinturas e instalações ainda estão grudadas nessas mesmas paredes. Muitos dos artistas se encontram regularmente e projetam outras intervenções coletivas, afirmando sua urgência. Disso tudo, esse artigo é só mais um eco.

Sua tresloucada Maria do Sul.
 

Notas:

[i] Coordenadora do Encontro “ACMSTC” junto a Túlio Tavares do coletivo Nova Pasta. Mestranda em psicologia Puc-SP, núcleo: Subjetividades Contemporâneas. Do coletivo Catadores de Histórias.
[ii] Personagem desviante, andarilha, profética, vidente, esquizofrênica, pobre, poderosa, ritualística, criada em outro contexto por Fabiane Borges e Janaina Bechler.
[iii]Site do Encontro de Arte na Ocupação do MSTC - www.ocupacao.tk (Em construção)

[v] Demanda da coordenação do evento no primeiro dia de reunião com os artistas no prédio.

Revista Digital Art& - ISSN 1806-2962 - Ano II - Número 02 - Outubro de 2004 - Webmaster - Todos os Direitos Reservados

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