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Ofício de Pintor no Tempo de Leonardo da Vinci: Revisando o Cânone da Excentricidade
Autor: Alexander Martins Vianna[1] - alexvianna1974@hotmail.com

Resumo:

Este artigo pretende relacionar o universo social do pintor no contexto de Leonardo da Vinci e os usos práticos de seu trabalho, dando atenção especial a Leonardo e à sua busca de um novo tipo de reconhecimento social para a sua arte. Deste modo, poder-se-á questionar alguns cânones interpretativos a respeito tanto do fazer do pintor no Renascimento quanto possibilitar situar historicamente a idéia de “excentricidade” da própria figura de Leonardo.

Palavras-chave: Renascimento, Antigo Regime, Leonardo da Vinci.

Abstract:

This article intends to do relationship between the social world of painter in Leonardo context and the practical use of his work, particularly giving attention to Leonardo exemple of searching a new social distinction for his way of art. So we’ll can do questions about some interpretative canons concerning on the work of painter in Renaissance, and think the ‘excepcionallity’ of Leonardo according to his time.

Key-words: Renaissance, Ancient Regime, Leonardo da Vinci.
 

Breve Biografia de Leonardo da Vinci

Leonardo da Vinci nasceu em uma pequena localidade no noroeste da Península Itálica chamada Vinci, que fica entre Firenze, Lucca e Pisa, a 15 de maio de 1452. Morreu a 23 de abril de 1519 na França. Foi filho ilegítimo do notário Ser Piero e de Caterina, que nunca se casaram e formariam depois suas próprias famílias. Como era filho de um notário, que no nível das administrações locais era considerado um homem relativamente abastado, Leonardo pôde estudar nas escolas de gramática e cálculo – sorte geralmente reservada aos filhos de grandes mercadores. Por isso, começou a trabalhar relativamente tarde para os padrões da época: quando foi introduzido na oficina de Andrea Verrocchio (1435-1488) em 1469, Leonardo tinha de 16 para 17 anos, idade considerada alta no meio artesão, em que os aprendizes geralmente começavam com 11 ou 12 anos. Se considerarmos os valores da época sobre as diferenças e hierarquias sociais, Leonardo estaria “fora de seu nível”, visto que no meio artesão poderia ser considerado bem letrado. Por isso, como no caso de Michelangelo (1475-1564) – que era de família nobre –, buscaria posteriormente, como mestre, diferenciar o seu trabalho do universo dos artesãos, pretendendo demonstrar que suas pinturas eram resultado de um profundo trabalho intelectual, de um filosofar que se confundia com “saber ver”.

Como Leonardo cedo demonstrou aptidão para a pintura, Ser Piero alugaria uma casa em Florença na Via delle Prestanza (Via dei Gondi, hoje) e recomendaria seu filho para a oficina de Andrea di Micheli di Francesco de Cioni, conhecido como Andrea Verrocchio. Por ter formas corporais bem proporcionadas para os valores da época, Leonardo fora usado como modelo ao mesmo tempo que treinava a sua destreza na pintura. Trabalhou na oficina de Verrocchio por seis anos e, já em 1472, havia conseguido o título de mestre. Em 1476, Leonardo abandona a oficina de Verrocchio para instalar-se como mestre, mas não consegue se manter. Por volta de 1480, sob recomendação de seu pai, começa a trabalhar na oficina de Lorenzo de Médicis (1449-1492), o Magnífico, como escultor para restaurações e ornamentos.

Em 1481, receberia a encomenda do quadro “Adoração dos Reis Magos”, feito para os monges do mosteiro de São Donato de Scopeto, mas não chegaria a terminá-lo, restando dele vários estudos prévios que estão guardados na Galeria degli Uffizi.

 


Fig.1 - Adoração dos Reis Magos (ca. 1481-1482)

Óleo sobre madeira - 247 x 244 cm - Galeria degli Uffizi (Florença)

Entre a primavera e o verão de 1482, Leonardo chegou a Milão para atuar na corte de Ludovico Sforza(1452-1508), o Mouro, tendo sido recomendado por Lorenzo de Médicis. Leonardo se apresentou como engenheiro e inventor militar, embora Lorenzo dissesse que seria apto para a escultura (mármore, bronze e argila) e a pintura. No cotidiano da corte de Sforza, as atividades de Leonardo seriam muito mais variadas. Embora a situação de cortesão tolhesse um pouco a sua liberdade para criar, o fato de contar com a proteção política e material de Ludovico deu-lhe segurança para desenvolver estudos em arquitetura, geometria e anatomia, que influenciaram e foram influenciados ao mesmo tempo por sua percepção plástico-anímica da realidade.

Os longos estudos feitos por Leonardo para encontrar uma expressividade humoral e corporal adequada ao tema e à posição dos personagens fizeram com que merecesse o respeito e a admiração de uma geração posterior de pintores, que justamente tenderia a reivindicar que sua arte fosse entendida como trabalho intelectual – no mesmo patamar da filosofia e da poesia. No entanto, enquanto viveu, Leonardo não seria valorizado por aqueles que reclamavam de sua lentidão em entregar as encomendas e, por conta disso, muitos deixavam de pagar pelo seu trabalho – e, por isso, ele as abandonava inacabadas. Em sua época, o ofício de pintor ainda não havia conseguido uma valorização que o destacasse do universo dos artesãos e, por isso, para muitos de seus contemporâneos era incompreensível que Leonardo pretendesse dar às suas obras um status poético-filosófico.

Entre dezembro de 1499 e finais de janeiro de 1500 – ou seja, três meses após a capitulação do ducado de Milão sob as forças francesas –, Leonardo deixou a corte milanesa e pretendeu voltar para Florença. A corte de Milão passara para o domínio de Charles de Amboise, representando localmente a autoridade de Luís XII (1462-1515; reinado: 1498-1515). Detendo-se durante o mês de fevereiro em Mântua, Leonardo foi hóspede da Marquesa Isabella d’Este, para quem ensaiou um retrato. Finalmente, quando chega em Florença, Leonardo não mais encontraria a cidade que deixara: desde 1494, a família Médicis havia sido expulsa de Florença pelos republicanos florentinos, que foram apoiados por exércitos franceses. Além disso, Leonardo encontrara o seu pai casado pela quarta vez – desta vez, com Lucrezia di Guglielmo –, vindo a conhecer os seus 11 irmãos, tendo o mais velho 24 anos e o mais novo 2. Torna-se, então, hóspede dos servitas do Convento da Anunziata. Durante este período, teria recebido a encomenda do retrato da esposa de um mercador chamado Francesco Stefano del Giocondo, conhecida posteriormente como “Mona Lisa” ou “Gioconda”.

 


Fig.2 - Gioconda (ca. 1503-1507)

Óleo sobre madeira - 79 x 53 cm - Museu do Louvre (Paris)

No biênio 1502-1503, Leonardo encontraria o duque valentino César Bórgia (1475/6-1507), filho do papa Alexandre VI (1431-1503; pontificado: 1492-1503), ficando sob seu serviço como engenheiro militar. É provável que nesta época tenha conhecido Maquiavel (1469-1527).

Em 1503, Leonardo receberia com Michelangelo a encomenda de pintar uma das paredes do salão do Grande Conselho no Palazzo Vecchio. Os temas foram as batalhas vitoriosas dos florentinos e a ele coube o tema da Batalha de Anghiari (24 de junho de 1440) – trata-se de sua obra inacabada da qual mais se encontra estudos prévios. Os trabalhos se desenrolaram até 1505 e, sem terminá-los, Leonardo viajou em 1506 para Milão, a pedido de Charles de Amboise, que solicitara a licença à senhoria de Florença para ele poder trabalhar como pintor e arquiteto em sua corte, permanecendo a seu serviço até 1513.


Fig. 3 - Estudo para a Batalha de Anghiari (ca. 1503-1505)

Pena e tinta - 14,5 x 15,2 cm - Galleria dell’Accademia (Veneza)

Em 1507, Leonardo viajaria para Florença com o objetivo de resolver problemas de partilha de bens com seus irmãos a respeito da herança de seu tio Francesco, mas o direito aos seus bens lhe foi negado – tanto quanto os bens de seu pai em 1504 – sob a mesma alegação: era filho ilegítimo. Leonardo permaneceu por seis meses em Florença, voltando para Milão em começos de 1508. Em 1513, com os Médicis de volta ao poder, Leonardo se desloca para Roma e é acolhido por Giuliano de Médicis(1479-1516), irmão do Papa Leão X (1475-1521; pontificado: 1513-1521), que lhe concedeu uma casa do Vaticano em Belvedere, onde viveria por quase três anos.

Giuliano de Médicis governara Florença durante os tumultuados anos de 1512 e 1513, tendo desta vez recebido apoio do rei francês Luís XII para recuperar o governo perdido por seu irmão Piero di Lorenzo de Médicis (1472-1503) em 1494. Luís XII pretendia que seus velhos aliados florentinos superassem suas rivalidades internas para fortalecerem-se ao lado das tropas francesas contra a Santa Liga formada pelo Papa Julius II(1443-1513; pontificado: 1503-1513) e seus aliados Habsburgos. A submissão de Florença pelas tropas espanholas e o saque feito a Prato criou condições para o retorno do exílio da família de Giuliano, que entrou em Florença, sob sua liderança, em setembro de 1512, aplicando medidas duras para debelar conspirações, manter a unidade e expulsar as tropas da Liga. O seu então irmão mais velho, o Cardeal Giovanni (1475-1521), tornou-se o Papa Leão X. O próprio Giuliano, que era também cardeal, foi apontado como gonfalonier da Igreja Católica de Roma, juntando-se ao seu irmão no governo de Roma. Assim, entre 1513 e 1516, Giuliano pôde atuar como patrono de Leonardo em Roma.

Em março de 1516, com a morte de Giuliano, Leonardo voltou a ficar sem patrono e recebeu convite de trabalho de Francisco I(1494-1547; reinado:1515-1547), sucessor de Luís XII, viajando para a França em meados de 1516. Em 1517, Leonardo foi hospedado no Palacete de Cloux com seu amigo Melzi e alguns de seus discípulos, recebendo um pagamento anual de mil ducados em ouro. Neste mesmo ano, Leonardo, que era canhoto, sofrera uma paralisia na mão direita. Durante a sua estada na França, Leonardo desenvolveu projetos arquitetônicos e organizou festas para a corte, como fizera em Milão. Quando morreu em 1519, foi enterrado na Capela de São Florentino de Amboise, que em 1802 foi derrubada, dispersando os seus restos mortais. Os registros dos 25 últimos anos de atividade textual de Leonardo podem ser encontrados nas seguintes obras: no “Tratado de Pintura”, publicado inicialmente em 1651, que parece bastante influenciado por Leon Battista Alberti(1404-1472), cuja obra homônima foi originalmente publicada em 1435; em “Frammenti Litterari e Filosofici”, organizado por Edmundo Solmi em 1899; “Literacy of Leonardo”, de J.R. Richter (1883); Codex Tivulziano; Codex Arundel; Codex Atlanticus.

Ser Pintor no Renascimento

Quando se vê os livros de história da arte falando em “grandes gênios da pintura”, geralmente se ignora o que era o meio social de cada pintor em dada época, como era a sua aceitação social e como se inseria nas teias de relações de sua sociedade. Fala-se da genialidade do ponto de vista da técnica de pintura, dos temas “escolhidos” e de textos que tenham escrito. Entretanto, a imagem do pintor fechado em seu atelier ou migrando de uma cidade para outra em busca de novas inspirações e experiências sensitivas pode estar bastante longe da realidade dos pintores da época de Leonardo da Vinci. Nesta época, não há o pintor da inspiração arrebatadora que pretende concretizar a qualquer preço a sua visão interna. Tal perspectiva é romântica e só valeria para os pintores a partir do século XIX, quando efetivamente houve maior espaço para a expressão do indivíduo, tanto devido à definitiva retração do papel das corporações de pintura no fazer do pintor quanto devido à atenuação do papel modelizador das academias de pintura do século XVIII.

A sociedade em que Leonardo viveu era o que se costuma chamar de Antigo Regime. No Antigo Regime, a sociedade era ainda interpretada a partir de um modelo tripartite: “aqueles que guerreiam”, “aqueles que oram” e “aqueles que labutam”, respectivamente, bellatores, oratores e laboratores. No entanto, desde finais da Idade Média, a realidade social na Europa havia se diversificado e várias categorias de novos ofícios começaram a surgir, não encontrando um enquadramento perfeito em tal modelo de interpretação das hierarquias sociais. O caso dos pintores é um exemplo entre muitos outros: Seriam eles portadores de uma “arte mecânica” ou de uma “arte liberal”? Seriam “mão” ou “mente”?

Na configuração social de Antigo Regime na Europa Moderna, podemos observar uma flexibilização quanto ao modo de classificação social, embora fosse mantido o pano de fundo tripartite advindo da Idade Média. Assim, se o indivíduo era reconhecido a partir de sua situação de nascimento – que o enquadrava como fazendo parte da nobreza, do comércio, do artesanato, do campesinato, da igreja etc –, há agora maior mobilidade social e alguns indivíduos e famílias conseguiam mudar de estatuto. Os próprio Médicis são um exemplo evidente disso, pois, da Idade Média à Moderna, passaram de simples comerciantes à fornecedores de nomes para as principais famílias nobres e principescas da Europa. No entanto, o mais comum era que um indivíduo buscasse reconhecimento dentro de seu próprio grupo, que pretendesse ser respeitado, honrado e tomado como exemplo do que existia de melhor (sanior pars) de seu estamento (num sentido mais geral) ou de seu ofício (num sentido mais específico). Isso significava uma busca de glória ou distinção “conforme a posição”, ou seja, não se desafiava os padrões estamentais então existentes de hierarquização de poder e prestígio, mas sim se conformava a eles, criando-se variações em relação a leis e significados recebidos pela tradição.

Pintores e escultores como Leonardo da Vinci e Michelangelo – cuja origem familiar não advinha de um envolvimento tradicional com as “artes mecânicas” – acabaram por tensionar os hábitos então existentes de distinção para seu ofício, pelo simples fato de defenderem que o trabalho do pintor seria, antes de tudo, intelectual, ou seja, uma atividade do espírito que, em vez de mecanicamente imitar as formas produzidas pela natureza (natura naturata), tinha na verdade a natureza como exemplo, no sentido de capacidade de – a exemplo de Deus e do poeta – criar formas (natura naturans):
 

Se quiser [o pintor] ver belezas que o enamorem, é senhor para gerá-las; se quiser ver coisas monstruosas que causem espanto, ou grotescas que façam rir, ou então dignas de compaixão, é senhor e deus delas. E se quiser gerar terras cultivadas e desertos, lugares umbrosos e frescos em temporadas abafadiças, ou lugares quentes em épocas frias, poderá representá-los. Se quiser vales, se quiser dos altos cumes das montanhas descobrir vastas campinas, ou quiser ver além o horizonte do mar, poderá fazê-lo... E, com efeito, o que se acha no universo por essência, presença ou imaginação, ele o tem, primeiro na imaginação e, depois, nas mãos...
(Trattato della Pittura. Roma: Ed. Manzi, 1917. p.13)[2]


Até finais do século XVIII, qualquer indivíduo será sempre reconhecido socialmente a partir de sua posição em relação a um corpo estamental de pertencimento, pois isso definia o seu estatuto político-jurídico, a sua capacidade política e concedia-lhe certa proteção, que estava indissociada de uma hierarquia social de subordinação. Nesse sentido, o reconhecimento que Leonardo da Vinci buscava para si como pintor e a necessidade de se ver como um poeta ou filósofo não era, para ele, uma reivindicação individual, mas um apelo para que todos de seu grupo pudessem ser vistos desta forma – ou que todos do grupo almejassem ser reconhecidos por esta forma.
No entanto, na geração de Leonardo, tais declarações de fé por seu ofício não teriam ressonância até a geração seguinte de pintores – e, mais particularmente, com a relativa autonomia do pintor de corte do século XVII e com a consolidação social das academias de pintura no século XVIII. Dada a longevidade de Michelangelo, falecido em 1564, somente ele pudera perceber, em contraponto à sua juventude, uma mudança geral da postura dos pintores na segunda metade do século XVI e, consequentemente, uma maior tolerância da parte de seus patronos em relação às suas buscas de outras maneiras de experimentar os temas encomendados.

Se as reivindicações por um reconhecimento do trabalho de pintor como distinto das artes mecânicas não teve muito eco durante a vida de Leonardo, isso se deve ao fato de a grande maioria dos pintores se identificarem socialmente como artesão. Aliás, o termo “artista”, que hoje atribui destaque e genialidade a quem o usa, não era entendido com o mesmo sentido na época de Leonardo. “Artista” corresponderia ao termo latino “artifex”, ou seja, aquele que vive das artes mecânicas (trabalha com as mãos). Por isso, não é de surpreender que figuras como Leonardo e Michelangelo fossem tidas como excêntricas no meio artesão.

A própria origem familiar de ambos, como vimos, confirmava tal excentricidade: o primeiro era filho de notário, o que no vilarejo de Vinci eqüivalia a um dos maiores ganhos pecuniários em termos de administração local; o segundo era descendente da família nobre Buonarroti. Leonardo estudou tanto na escola de cálculo quanto na escola de gramática, o que lhe dava uma formação correspondente aos filhos dos grandes comerciantes. Quando entrou na oficina de mestre Verrocchio (1469), era considerado velho como aprendiz, mas em três anos conseguiu o título de mestre (1472) – coisa que muitos só conseguiriam com 5 a 7 anos de aprendizado. É justamente destas figuras excêntricas, ou seja, pessoas que ocupavam uma posição profissional abaixo da considerada normal devido à sua formação e origem familiar, que partiriam as principais inovações no campo da pintura e a busca de seu reconhecimento como uma atividade intelectual. Portanto, seria um erro considerar o universo dos pintores e pinturas do Renascimento somente a partir dos “excêntricos”.

Por trás dos “grandes nomes da pintura” que os séculos posteriores consagraram havia uma grande massa de pintores pobres que jamais conseguiram o título de mestre e, se o conseguiram, jamais puderam montar oficinas, trabalhando atrelados àquelas já reconhecidas e consolidadas no grêmio de pintores e com farta clientela. Por isso, não era raro encontrar pintores vivendo também como comerciantes de pequeno trato, como barbeiros, açougueiros ou boticários – neste último caso, a relação com a profissão de pintor era evidente, visto que tinham que conhecer ervas e saber combinar especiarias para a consolidação de tintas e tons. Nesse sentido, uma grande maioria de pintores estava mais dentro do universo “mecânico” do que “liberal” e, por isso, não surpreende que muitas das pessoas, irmandades e outras instituições que encomendavam os trabalhos de Leonardo ficassem particularmente irritadas com as demoras no cumprimento dos prazos de certas encomendas. A grande maioria dos “pintores menos excêntricos” cumpria os prazos dos contratos e temia os efeitos de multas atreladas a atrasos. Sabendo disso, caberia então indagar como se organizava o trabalho dos pintores nas cidades da época de Leonardo?

Como em quase todos os ofícios, o pintor começava a sua formação como aprendiz em uma oficina já consolidada pelo nome de um mestre ou de sua família. A oficina era registrada no grêmio de pintores de cada cidade, que tinha um estatuto que definia os deveres e direitos em relação ao ofício, estabelecendo cláusulas quanto ao material que se deveria usar, quanto à sua qualidade e como deveria ser estruturado o comércio e as encomendas entre as oficinas registradas. Os grêmios cuidavam também da segurança física e material dos membros associados, trazendo ajuda frente aos infortúnios que alguns viessem a sofrer, assim como sua viúva e filhos. Nos termos jurídico-políticos de Antigo Regime, os grêmios consolidavam um corpo de privilégio que tanto protegia quanto limitava as possibilidades de ações individuais de pintores e oficinas, regulando a competição.

Entretanto, na época de Leonardo, Florença constituía uma exceção em toda a Península Itálica: não era obrigatório que todos os pintores individuais e oficinas que exercessem a profissão fossem inscritos no grêmio de pintores, o que explica que tenha sido um dos principais centros de inovação em termos de pintura; outro detalhe interessante era que, como em Veneza, alguns patronos de Igrejas (tais como as lideranças políticas ou as confrarias) faziam concursos para saber qual oficina assumiria determinado encargo. Outra forma de escapar ao controle dos grêmios de pintores era se tornar pintor na corte de um poderoso local, como nos casos de pintores que foram protegidos na corte de Mântua por Isabella de Este, e de Leonardo nas cortes dos Sforza em Milão e de Francisco I na França.

Embora Florença possa ter constituído uma exceção quanto ao controle de manifestações mais individuais no campo da pintura, o próprio processo de aprendizagem no interior das oficinas ajudava constituir uma unidade de estilo: dentro de cada oficina havia uma série de modelos prontos dos quais os aprendizes partiam para cumprir uma encomenda, cujos temas, particularmente os religioso, eram estereotipados e repetitivos. Raramente uma pintura dentro de uma oficina ficava no encargo exclusivo do mestre, mesmo quando o contrato exigia que assim o fosse, sendo comum que dividisse entre os aprendizes as diferentes partes de sua execução. Aliás, era comum que muitos aprendizes sofressem processos de especializações técnicas quanto ao uso de ferramentas, ao tipo de encomenda e ao material usado na sua execução. No entanto, isso não significava um planejamento a priori das especializações, pois estas se davam nas práticas do cotidiano, conforme os talentos revelados por cada aprendiz no decorrer de seu processo de formação – geralmente iniciado entre 11 e 12 anos. Os produtos usados na pintura eram, dependendo da encomenda, muito caros e convinha não desperdiçar em treinamentos. Portanto, neste universo, nada lembra os ensaísmos diletantes do século XIX em diante.

Todas essas considerações demonstram o quanto é anacrônica a preocupação da crítica erudita de definir autorias individuais (no sentido da “mão do artista”) para muitos quadros do Renascimento: além de serem comumente copiados por várias oficinas quando agradavam a uma certa clientela, as “assinaturas” ou “firmas” que aparecem em muitos quadros não significavam uma autoria individual, mas sim a marca de uma oficina e/ou o nome da família a ela ligada.

Como se pôde observar, todo trabalho nas oficinas de pintura era necessariamente coletivo e cuidadosamente hierarquizado. Além disso, outros elementos demonstram o caráter gremial na execução de muitas pinturas e esculturas: em trabalhos de maior envergadura que excediam a capacidade de execução de uma única oficina – ou cujo material exigido pelo cliente tornava o trabalho mais caro –, os mestres deixavam claro nos contratos que usariam o trabalho de ajudantes e se comprometiam com os acabamentos principais e detalhes centrais. Estes “ajudantes” poderiam ser tanto os seus próprios aprendizes mais habilidosos e experientes quanto os mestres (com ou sem oficinas) que também não poderiam assumir sozinhos o encargo de determinada encomenda, dividindo entre si os custos materiais do trabalho e suas fases de execução.

Portanto, os registros que existem de encomendas recebidas por diferentes oficinas na época de Leonardo revelam uma larga diferenciação social entre os pintores: mesmo dividindo custos, recebia grandes encomendas quem pudesse arcar com todos os termos dos contratos, que não só estipulavam o tipo de material que deveria ser usado, mas também a garantia de durabilidade em face deste mesmo material. Alguns contratos chegavam a estabelecer garantias de dez anos para a sobrevivência do trabalho sem retoques. Caso o trabalho não tivesse tal durabilidade, a oficina deveria retocá-lo sem custo para o cliente. Este foi o caso do contrato de Leonardo da Vinci para organizar a execução de uma das versões da “Virgem dos Rochedos” para a Confraria da Imaculada Conceição da Igreja de São Francisco de Milão.


Fig.4 - Virgem dos Rochedos - (ca. 1483-1485)

Óleo sobre tela (originalmente madeira) - 198x123 cm - Museu do Louvre (Paris).

Para a grande maioria de pintores já mestres que tentavam sobreviver fora da órbita das oficinas consolidadas, restavam trabalhos de menor porte e durabilidade: pequenos retratos, painéis para festas, estandartes, pintura de selas de cavalos, de confessionários, de arcas de camas, mas somente quando tais encomendas não exigiam o uso de material muito caro. Esses pintores geralmente não conseguiam viver apenas da pintura, associando a ela, como vimos, outras atividades “mecânicas”. Tal quadro se agravou no decorrer do século XVI já que, como negócios familiares, as oficinas consolidadas de pintura e escultura tenderam a restringir junto às agremiações o reconhecimento de títulos de mestre para muitos novos pintores. As Pinturas: a encomenda, o tema e o usoA maioria dos clientes de pintores na época de Leonardo não buscavam grandes inovações ou excepcionalidades – e, menos ainda, estavam dispostos a esperar e pagar por elas caso se manifestassem durante o cumprimento de uma encomenda. A repetição de determinados temas inseria-se, portanto, num horizonte de expectativa marcado pela previsibilidade – particularmente no caso das encomendas feitas para efeitos de curto alcance. O pintor era fundamentalmente um artesão que produzia objetos úteis e recebia pagamentos tanto em moedas de ouro e prata quanto in natura. Portanto, com exceção de alguns poucos clientes que efetivamente estavam buscando novidade e davam certa autonomia para um pintor já renomado, quase sempre o comprador de um serviço de pintura estipulava o tema, como deveria ser feito e o material que deveria ser usado. Isso por si só já atenua a idéia contemporânea de autoria.

A escolha do material a ser usado na pintura ajuda a definir não só a durabilidade do trabalho (ou o desejo de sua posteridade), mas também o quanto o cliente estaria disposto a gastar com ele. Tudo dependia das posses do contratante e da finalidade que pretendia dar para determinada pintura. Um exemplo de contraste ajuda a ilustrar este argumento: um painel para figurar no teto da Capela Sistina não se compara a um pequeno retrato encomendado por um pai que deseja divulgar positivamente a imagem de uma filha casadoira entre pretendentes de terras distantes.

O papel do cliente na definição do tema de um quadro e dos pormenores na sua execução pode ser bem exemplificado por um dos quadros atualmente mais celebrados do Renascimento Italiano: a “Primavera”(ca.1470/80), cuja organização da execução é atribuída ao nome Sandro Botticelli(1445-1510). No entanto, a concepção do tema e de sua forma alegórica de expressão são de Lorenzo Pierfrancesco de Médicis, primo de Lorenzo o Magnífico. Botticelli estava muito mais imerso no universo social artesanal do que Leonardo, e não teria formação intelectual para desenvolver o tema da “Primavera” com tamanha riqueza alegórica sem as cuidadosas prescrições feitas pelo seu patrono, que efetivamente tinha conhecimento dos textos clássicos.

A maioria dos temas clássicos nas pinturas, assim como temas que demandavam uma maior sutileza teológica, só eram compreensíveis para uma minoria bem letrada e, para inspirar os pintores, era comum que os intermediários de alguns patronos ficassem com o encargo de contar para eles as histórias que envolviam os temas e os personagens a serem pintados, de modo a configurar a ação das mãos dos pintores em conformidade com os interesses expressivos de seus patronos. Alguns patronos chegavam a fazer esboços de próprio punho de seus projetos de quadros para ilustrar/controlar os efeitos do que queriam com a encomenda. De certo modo, todas essas práticas podem ser entendidas como formas possíveis de circulação de referentes simbólicos da cultura erudita humanista num meio social marcadamente sub-letrado. Infelizmente, nem sempre é possível identificar todos os contratos de pinturas da época de Leonardo, o que dificulta definir a rede configuradora da execução de muitos quadros, que inclui, dentre outras coisas, a posição social do cliente e a finalidade de sua encomenda. No entanto, isso não impede que levantemos alguns pressupostos que nos permitam escapar de alguns anacronismos.

Como o profano e o sagrado se misturam no universo cristão do Renascimento, seria equivocado considerar que todo quadro com tema religioso fosse destinado a Igrejas, que todos as pinturas que representam temas bíblicos ou litúrgicos fossem para um deleite público, ou que as igrejas ou irmandades religiosas apenas encomendassem temas religiosos. Indubitavelmente, os quadros com temas religiosos da época de Leonardo predominaram estatisticamente entre aqueles que sobreviveram até nós. Entretanto, não se deve ignorar o fato de que, se pensarmos em termos modelares, os quadros eram encomendados para as seguintes finalidades: prestígio ou glória; pedagogia para assuntos profanos ou religiosos; política; piedade religiosa, inspiração de virtudes e proteção mágica; deleite pessoal (contemplação intelectual ou puro erotismo); marco de memória para as famílias, como os nascimentos, casamentos, mortes ou feitos gloriosos. Todos estes fatores poderiam estar combinados em quadros com temas profanos e sagrados, com a predominância de um fator em face aos outros, mas nem sempre é possível estabelecer uma hierarquia de causas sem conhecer mais profundamente os termos contratuais que definiam a existência de determinado quadro, assim como os seus resultados práticos em relação aos pressupostos acordados para a encomenda.

Por isso, quando observamos os manuais contemporâneos de história da arte que tratam do tema da pintura, devemos sempre estar prevenidos se o que se afirma sobre determinado quadro ou pintor tem a plausibilidade de seu momento histórico, ou se simplesmente são especulações de uma visão formalista que projeta concepções sobre o “fazer do pintor” que não correspondem à sua época. Usarei o quadro “Gioconda” (ca. 1503-1507) para exemplificar como tema e forma na pintura podem ser tratados historicamente, levando-se em conta os limites materiais e indiciários que possam ajudar a caracterizá-lo como fonte de época.

A “Gioconda” é um retrato a óleo sobre madeira. Tal suporte para a sua figuração pressupõe uma intenção de durabilidade para o quadro. Atualmente, o retrato está coberto por camadas de poeira e verniz que disfarçam a sua delicadeza, transparência e luminosidade. A dama aparece em atitude repousada em frente a uma janela que se abre para uma paisagem esfumaçada. As suas mãos, postas cruzadas, parecem repousar-se sobre o braço de um cadeira, numa postura estereotipada de decoro e distinção social. O seu olhar e decoroso sorriso transpõem um semblante de íntima familiaridade para o espectador – o oposto simbólico disso são as “apresentações grotescas” de sorriso, ou seja, aquelas em que a boca está aberta com dentes à mostra, deformando a expressão e metaforizando animalidade. A dama veste uma roupa suntuosa condizente à sua posição, enquanto o seu cabelo está coberto por um véu fino e transparente (possivelmente seda), o que reforça a idéia de decoro e distinção social – um oposto simbólico disso, por exemplo, é o tema de “Leda”, em que o erotismo no cabelo se mostra pelo fato de estar solto, esvoaçante ou levemente desgrenhado.


Estudo de Leda Ajoelhada - (ca. 1503-1504)

Bico-de-pena sobre aguada - 16x14 cm - Coleção Devonshire (Fundação Chatsworth)

O tratamento da paisagem ao fundo é mantido em correspondência com a forma que se pretende apresentar o caracter da dama. A paisagem é um lugar brumoso em que a presença humana é apresentada de forma residual: a ponte na extrema esquerda da retratada e a estrada à sua direita. Como acontece em outros quadros associados ao nome Leonardo, o ambiente participa do espírito e do humor do tema central figurado: no caso da “Gioconda”, denota distinção, recato e isolamento(intimidade). Há neste quadro inovações técnicas já ensaiadas em obras anteriores configuradas por Leonardo: o pintor vai além da mera apresentação do espaço como um sistema visual ordenado e sólido, superando a concepção da figura marcada por linhas bem definidas e cores planas, que era a mesma praticada na oficina de Verrocchio. Agora, o elemento decisivo é a luz: a figuração é condicionada por uma iluminação que não é natural, posto que o seu objetivo é a perfeita inserção da dama num ambiente tingido de continuidade, esfumaçando os seus contornos para fundi-la parcialmente na paisagem, ratificando o seu caracter.

Sabe-se que este retrato foi pintado durante a segunda estada de Leonardo em Florença (1500-1506). Especulou-se bastante sobre a identidade da retratada. Foi identificada como Lisa Gherardini, nascida em 1479, que se casou em 1495 com o comerciante florentino Francesco Stefano del Giocondo. Segundo o relato de Giorgio Vasari (1511-1574), Leonardo teria pintado o retrato de Lisa a pedido de seu marido. No entanto, segundo Antonio de Beatis – secretário do cardeal Luís de Aragão –, que disse ter visto a pintura no palacete de Cloux em 1517, a figuração da dama teria sido feita para o amante de Lisa, Giuliano de Médicis (1479-1516). As discrepâncias de patrocínio e data deste quadro não podem ser resolvidas. Vasari sugere que o retrato de Lisa fora iniciado em 1503 e terminado em 1507, sendo incorporado ao patrimônio do rei Francisco I, depois da morte de Leonardo em 1519.

Não há como comprovar a ordem dos eventos em torno do quadro, porém, em 1625, foi identificado por Cassiano dal Pozzo no castelo de Fontainebleau, permanecendo como patrimônio real até a sua entrada na coleção do Louvre em 1805. No entanto, se forem minimamente fiáveis as referências que demonstram que o quadro é de Florença de inícios do século XVI, assim como o lugar social da retratada, há considerações historicamente pertinentes que se pode fazer sobre o quadro, que são indissociáveis da forma como o seu tema é figurado.

Se considerarmos a estrutura expressiva da retratada, não é Lisa enquanto sujeito psicológico que está ali. Os retratos não têm nessa época uma função de representar um “eu mais interno” de tipo romântico. Alguns traços de personalidade são configurados a partir de um repertório apriorístico (relativamente fixo) de “tipos humorais” que remontava ao mundo clássico. O domínio de tal repertório era fundamental para se caracterizar adequadamente a posição dos retratados. Portanto, nos termos das regras de distinção, honra e prestígio em uma sociedade de Antigo Regime, os retratos visavam realizar iconologicamente as idéias que definiam a posição dos retratados, devendo isso estar de acordo com as circunstâncias de uso definidas por aqueles que os encomendavam. Na solução expressiva escolhida para o retrato de Lisa, a sua figura combina um olhar discreto de intimidade com um pomposo recato. Podemos perceber em tal solução expressiva uma vontade configuradora da recepção que presume que o olhar de Lisa não é para “qualquer um”, mas sim para a vista bem distinta de “um”, ou seja, alguém que ratificasse – numa recíproca intimidade – a sua honra e prestígio social: o marido. Logo, qualquer tentativa de buscar no “olhar de Mona Lisa” uma “profundidade psicológica” – ou se buscar tal intenção em Leonardo – seria puro anacronismo.

Leonardo: O Pintor como Filósofo-Inventor

No geral, quando contempla uma obra de pintura atribuída a Leonardo da Vinci, a crítica erudita corre rapidamente para definir as “especificidades de estilo do autor”, as técnicas empregadas e a forma que tratou determinado tema. No entanto, deve-se considerar que apenas um núcleo bem restrito de pintores da época de Leonardo conseguiu impor a patronos e clientes a sua vontade configuradora sobre os temas, embora a execução de todas as obras não tenha saído diretamente de sua mãos. No caso específico de Leonardo, foram determinadas configurações de formas para o tratamento de alguns temas habituais e recorrentes nas encomendas de pintura que definiram uma maneira própria de fazer que, recebendo posteriormente reconhecimento e prestígio no mercado de pintura, passou a ser imitada por outros pintores. Entretanto, não se deve esquecer que, diferentemente de Leonardo, a grande maioria dos pintores não tiveram uma inserção social que lhes permitisse consolidar socialmente uma maneira própria de fazer e, de certa forma, impô-la à sua clientela. Quantos poderiam se dar ao luxo de não cumprirem os prazos e termos de contrato para experimentarem formas e, por conta disso, terem que pagar as multas vinculadas a isso?

Definitivamente, Leonardo não se identificava com o universo do artesão, com suas exigências pragmáticas de tempo e efeitos de contrato que dificilmente poderiam se coadunar com suas práticas de experimentação intelectual a cada projeto de pintura. Enquanto esteve na corte de Ludovico Sforza, Leonardo não poderia aceitar trabalhos de pintura de fora a não ser com a permissão de seu protetor, mesmo porque, quando se apresentou a Ludovico, colocou o seu ofício de pintor em último lugar, valorizando os aspectos relacionados à arquitetura e engenharia militar. Em todo caso, a proteção material da corte deu a Leonardo o tempo para a elaboração de uma série de estudos sobre geometria, proporção, anatomia, botânica, ou seja, atividades científicas que perfeitamente complementavam e eram completadas por sua percepção plástico-anímica da natureza.

No entanto, não se deve valorizar excessivamente o lado de homem de ciência ou da pintura e ignorar o fato de que Leonardo também teve que trabalhar em outras atividades na corte sforzesca que, frente ao olhar celebrativo de hoje, nada tinham de excepcional: desenho de vestidos para damas, pinturas em peças de mobília ou selas e arreios de cavalos, pintura de brasões e estandartes, decoração dos interiores para eventos específicos e organização de jogos de entretenimento – como revelam os seus aforismos, ensaios de novelas e adivinhações. Para muitas dessas ocasiões, as pinturas que fizera ou coordenara a execução eram para um deleite momentâneo, eram partes de um cenário sempre cambiante e, portanto, feitas para não durar. Do período em que Leonardo estivera na corte dos Sforza, restaram-nos muitos estudos em papéis, anotações e retratos inacabados.

Nos trabalhos especificamente intelectuais, particularmente em suas especulações sobre a natureza e a construção do saber, Leonardo repete uma forma de escrita (o aforismo) bastante comum aos filósofos que se contrapunham ao saber escolástico estabelecido nas universidades – cujos membros passaram a ser tratados por Leonardo como meros repetidores e glosadores dos autores antigos, pois não davam a devida importância à experiência ou às novas invenções. Assim, no Códice Atlântico, podemos observá-lo ironizar:

Mesmo que eu não soubesse...evocar o testemunho dos autores, citarei algo muito maior e mais digno, invocando o testemunho da experiência, mestra dos mestres. Estes andam envaidecidos e pomposos, vestidos e enfeitados, não com as suas própria fadigas, mas com a alheias, e não querem conceder as mesmas a mim mesmo. E se menosprezam a mim, inventor, quanto mais não poderiam ser censurados eles, que não são inventores, mas pregoeiros e recitadores das obras alheias”.
(Códice Atlântico, fl.117)[3]

Em outro lugar, afirmaria mais uma vez a importância do “saber ver”:

A experiência não falha nunca, mas tão somente nossos julgamentos, querendo dela mais do que está em seu poder. É sem razão que os homens lamentam-se da experiência..., acusando-a de falácia...[4]

 

Leonardo escreve seus aforismos em língua corrente, pois nunca esteve na universidade – destino de alguns filhos da nobreza, juristas e grandes comerciantes – e não conhecia o grego, tendo no máximo os rudimentos do latim da escola de gramática. Portanto, não dominava os símbolos que conferiam prestígio social à posição de poeta num universo cortesão. Daí, por mais que quisesse, não conseguiria equivalência, em distinção social, de seu fazer de pintor em relação ao fazer de poeta. Então, melhor seria buscar uma nova forma de dignificar o seu ofício de pintor, identificando-o à posição de inventor. Como Leonardo era um “prático” que valorizava o aperfeiçoamento dos juízos em face da abertura do olhar para novas experiências, acabou por expressar, em sua busca de novo critério de distinção social para a sua arte, a ambigüidade social de quem pretendeu dar à sua posição de pintor (um “ofício mecânico”) uma nova dignidade social, aquela de filósofo-inventor, em contraponto à figura do filósofo contemplativo das universidades de sua época.

Efetivamente, as principais inovações em conhecimento científico da época de Leonardo vieram dos “práticos” de fora das universidades, cujas descobertas seriam incorporadas e discutidas no meio universitário apenas posteriormente – marcadamente no século XVIII. Desta forma, pode-se afirmar que há uma correspondência conjuntural entre a busca de uma distinção do trabalho da pintura como atividade intelectual e a busca de um estatuto diferenciado para o conhecimento, calcado na experiência. Isso significava um afastamento das glosas universitárias e uma maior aproximação ao campo do saber prático do universo artesanal.

Leonardo fora um curioso dos mistérios da natureza, da fecundidade e do organismo humano, fazendo sobre isso uma exploração metódica, que estabilizara na forma de desenhos. Para ele, tais desenhos serviam como artifícios para interpretações sobre os mecanismos dos corpos e da matéria. Isso é bem evidente quando fala, em tom auto-adulador, da relação entre desenhar e dissecar:

E tu que dizes ser melhor ver fazer a anatomia do que tais desenhos, dissestes bem se fosse possível ver todas essas coisas que em tais desenhos se mostram em uma só figura, na qual, com todo o teu engenho, não verás e não terás a informação senão de poucas veias, das quais eu, para ter a verdadeira e plena informação, decompus mais de dez corpos humanos, dissecando cada membro... E um único corpo não bastava a tanto tempo, sendo necessário proceder em tantos corpos até que alcançasse inteiro conhecimento...E se tu tiveres atração por tal coisa, talvez sejas impedido pelo estômago; e se isso não te impedir, talvez te impeça o medo de permanecer nas horas noturnas na companhia de tais mortos esquartejados, dilacerados e espantosos de ver; e se isso não te impedir, talvez te faltará o bom desenho e não será acompanhado pela perspectiva; e se fores acompanhado por ela, talvez te faltará a ordem das demonstrações geométricas e a ordem do cálculo das forças e valimento dos músculos; ou talvez te faltará a paciência, não sendo diligente. Se todas essas coisas estão em mim ou não, os cento e vinte livros por mim compostos darão sentença do sim ou do não, que não foram impedidos por avareza ou negligência, mas tão somente pelo tempo.”[5]


O desenho, como um artifício, converge várias experiências para a configuração de uma forma eficiente de interpretação de uma coisa ou fenômeno. Afinal, se o mundo é uma prosa que contém sinais que podem ser lidos, qualquer mente mais ou menos ajuizada pode lê-los a partir de diferentes formas. Nesse sentido, para conhecer melhor os mistérios das coisas e fenômenos, o filósofo-inventor deverá multiplicar os pontos de onde partem as experiências do olhar, sabendo, ao final, convergi-las de modo a criar uma forma eficiente de interpretação e ação. Ora, o modo como Leonardo pensa o campo de seu fazer artístico é análogo ao modo do fazer do mago, do alquimista ou do príncipe de Maquiavel. Neste último caso, o tema da perspectiva (como um ângulo de convergência de experiências) aparece metaforicamente na carta de recomendação dirigida a Lorenzo de Piero de Médicis(1492-1519; governante de Florença entre 1513 e 1519), o que serviu para justificar e tornar decoroso que um homem de baixa extração social pudesse arvorar-se em bom conselheiro de um príncipe:

 

“...Desejando eu oferecer à Vossa Magnificência um testemunho qualquer de minha obrigação, não achei, entre os meus cabedais, coisa que me seja mais cara ou que tanto estime quanto o conhecimento das ações dos grandes homens apreendido por uma longa experiência das coisas modernas e uma contínua lição das antigas; as quais, tendo eu, com grande diligência, longamente cogitado, examinando-as, agora mando à Vossa Magnificência, reduzida a um pequeno volume... [Não] quero que se repute presunção o fato de um homem de baixo e ínfimo estado discorrer e regular sobre o governo dos príncipes; pois os que desenham os contornos dos países se colocam na planície para considerar a natureza dos montes, e para considerar a natureza das planícies ascendem aos montes, assim também para conhecer bem a natureza dos povos é necessário ser príncipe, e para conhecer a natureza dos príncipes é necessário ser do povo...E se Vossa Magnificência, do ápice de sua altura, alguma vez volver os olhos para baixo, saberá quão sem razão suporto uma grande e contínua má sorte”.[6]

Embora possa parecer incomum estabelecer este tipo de correspondência entre Leonardo e Maquiavel, o nosso estranhamento se deve ao fato de estarmos habituados a um tipo de especialização dos saberes que não havia na época de Leonardo e, por isso, tratamos os autores a partir de cânones disciplinares que não correspondem à sua época de enunciação. Ao final do século XV, a própria idéia de artifício era uma imagem-conceito que misturava o universo do artesão com aquele do jurista, que é o lugar de fala de Maquiavel. Ora, se pensarmos que artifício é a forma constituída, a partir da convergência de meios adequados, para uma ação circunstancialmente eficiente no mundo, não há porque pensá-lo como uma categoria específica desta ou daquela área de saber. Além disso, como já ficou claro, tal noção pressupõe uma abertura do olhar para o mundo das experiências e, portanto, diferentemente dos escolásticos nas universidades, o filósofo-inventor não apenas teoriza mas também precisa agir para teorizar, testar se, em face de um novo ângulo de experiência, leu a “prosa do mundo” com o melhor juízo. Isso porque “a nossa razão...

...não julga as coisas feitas em várias distâncias de tempo em sua devida e própria distância, visto que muitas coisas já ocorridas há anos parecem familiares e próximas do presente, e muitas coisas próximas parecem antigas junto à antigüidade de nossa juventude. E assim faz o olho com as coisas distantes que, por estarem iluminadas pelo Sol, parecem próximas ao olhar, e muitas coisas próximas parecem distantes
”.[7]

Leonardo não encara a atmosfera como algo transparente ao olhar, pois considera que o ar forma ‘escudos’ que, conforme o referente de distância (espaço), criam efeitos perceptuais que o pintor não pode ignorar em sua obra. Na prática da pintura, isso significa a valorização técnica do sfumato em contraponto ao desenho escultural. Entretanto, no trecho citado, as implicações de seu vocabulário analítico são mais abrangentes do que parece à primeira vista, pois, em vários de seus escritos, Leonardo afirmou inúmeras vezes que toda matéria está em movimento e sujeita às transformações advindas com o tempo, que é outro referente de distância citado no trecho acima. Ora, em suas causas, o tempo é incontrolável pela vontade humana. No entanto, segundo Leonardo, o contrapondo ao tempo é a natureza, que é cheia de vontades e é mais rápida em sua capacidade de criar formas do que o tempo em destruí-las. É nesse sentido que um artista deve saber imitar a infinita capacidade da natureza de criar formas que ajudem a vencer os efeitos negativos do tempo nas obras humanas. Ora, tendo a natureza infinitas razões, não poderá ser possuída definitivamente por uma única e derradeira experiência. Isto significa que o filósofo(como inventor), tanto quanto o pintor, jamais poderá dizer que possui uma experiência definitiva sobre as coisas, ao contrário dos limites auto-impostos pelos “pregoeiros e recitadores das obras alheias”.

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Notas:

[1] Professor de História Moderna e Contemporânea do Departamento de História da FEUDUC(RJ); Doutorando em História Social pelo Programa de Pós-Graduação em História Social da UFRJ.
[2]Apud: NOGARE, Pedro della. Humanismos e Anti-Humanismos: Introdução à Antropologia Filosófica. Petrópolis: Vozes, 1994. p.67.
[3]Apud: NOGARE, Pedro della. Humanismos e Anti-Humanismos: Introdução à Antropologia Filosófica. Petrópolis: Vozes, 1994. p.68.
[4]DA VINCI, Leonardo. Obras literárias, filosóficas e morais. São Paulo: Hucitec, 1997. p.44.
[5]DA VINCI, Leonardo. Obras literárias, filosóficas e morais. São Paulo: Hucitec, 1997.p.178.
[6]MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Abril Cutural, 1973.pp.9-10.
[7]DA VINCI, Leonardo. Aforismi, novelle e profezie. Milano: Tascabili Economici Newton, 1993. p.29.

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