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Educação multicultural pela arte: ações educativas a partir de uma exposição de trabalhos inspirados nos grafismos indígenas brasileiros
Autora: Vera Lucia Pletitsch[1] - veralpz@uenf.br

Resumo:

Este trabalho relata a experiência de ações educativas pela arte com um grupo de alunos do Programa de Aceleração da Aprendizagem, realizadas por uma artista plástica e arte-educadora e a professora responsável pelo grupo, através da exposição de trabalhos inspirados nos grafismos indígenas brasileiros dessa artista.

Palavras-chave: arte-educação, grafismo indígena brasileiro, mediação.

Abstract:

This work reports the experience of art educational actions with a group of students of the Learning Acceleration Program, carried out by a plastic artist and art educator and the teacher responsible for the group, by exhibition of works inspired in brazilian indian´s graphic art of that artist.

Key words: art education, brazilian indian’s graphic art, mediation

Introdução

As ações aqui descritas se referem a uma experiência de trabalho educativo em arte com abordagem multicultural, e foram desenvolvidas no município de Campos dos Goytacazes, estado do Rio de Janeiro, nos meses de abril e maio de 2004.

Freqüentemente no Brasil o Dia do Índio, 19 de abril, é comemorado nas escolas com atividades das mais variadas, e os professores necessitam realizar pesquisas diversas para conseguirem as informações que desejam, se não quiserem trabalhar com seus alunos representações estereotipadas, folclóricas e bizarras. Citando BARBOSA (2000) “A cultura indígena só é tolerada na escola sob a forma de folclore, de curiosidade e esoterismo; sempre como uma cultura de segunda categoria”.

Na página da FUNAI[2], encontramos que o Brasil possui uma imensa diversidade étnica e lingüística, estando entre as maiores do mundo. São 215 sociedades indígenas, mais de cerca de 55 grupos sobre os quais ainda não há informações objetivas. Aproximadamente 180 línguas são faladas pelos membros destas sociedades, as quais pertencem a mais de 30 famílias lingüísticas diferentes.

Segundo Ribeiro (1987), cada povo ou grupo étnico indígena tem desenvolvido tendências próprias, objetos e técnicas totalmente distintas de outros grupos, na interação com seu meio ambiente, construindo através de sua unidade política, econômica e religiosa, bem como sua língua e forma de sociabilidade, a sua especificidade, o que o torna único e diferente dos demais. Isso pode ser constatado na produção de variados objetos da cultura material, sejam ferramentas, instrumentos, utensílios ou ornamentos, assim como na pintura corporal.

Para VIDAL (2000) as diversas culturas indígenas ordenam e expressam sua percepção do mundo e de si mesmos por imagens veiculadas por sua arte gráfica, que envolve todo um sistema de significados simbólicos culturalmente elaborados compartilhados pelo grupo, possibilitando sua comunicação. A experiência cotidiana e os valores mais tradicionais aparecem nas formas gráficas. Os significados culturais expressos podem dizer respeito à vida em sociedade, ao modo como indivíduos são classificados e como devem ou podem se relacionar entre si, com a natureza e com o cosmo, constituindo também registro da memória social do grupo.

Ferreira (1999) considera que os artefatos culturais são mediadores das interações do homem com o mundo, e que podem ser dimensionados na educação como instrumentos de conhecimento, porém tal característica não está explícita em suas materialidades, necessitando de um desvelamento mediado.

Tamanha riqueza e diversidade ainda são pouco difundidas e trabalhadas no ensino, e é fundamental que a educação forneça conhecimentos sobre a cultura de vários grupos que caracterizam a nação, considerando-se que as culturas indígenas são formadoras de nossa identidade nacional e patrimônio cultural. Essa diversidade cultural presume o reconhecimento de diferentes códigos, classes, grupos étnicos, crenças e sexos, mas se deve levar em consideração a dificuldade de acesso a informações precisas e atualizadas, normalmente apenas disponíveis em publicações cientificas.

Desenvolvimento das ações

Interessada na linguagem gráfica dos índios brasileiros pesquisei o assunto em bibliografia especializada[3], e me detive particularmente, por preferência pessoal, na produção dos Asurini do Xingu, Karajá, Kayabí, Kayapó-Xicrin, e Waiãpi. Respeitando seus princípios estéticos confeccionei vinte trabalhos utilizando argila em pó, fios de algodão, madeira e pedras, apresentados na exposição intitulada Kwatsiarapara, realizada no foyer do Teatro Municipal Trianon, localizado na área central do município, entre os dias 15 de abril e 16 de maio de 2004.

Com o objetivo de demonstrar que o conhecimento é uma propriedade comum a todos os povos, e que há tantos tipos de arte quanto há culturas, me propus a divulgar, como arte-educadora, através da exposição dos trabalhos, essa herança cultural e estética tão desconhecida, oferecendo visitas guiadas para grupos.

O presente relato descreve o trabalho educativo realizado antes, durante e depois da visita, com um dos grupos participantes, e seus desdobramentos, e só foi possível graças ao relatório manuscrito e fotografias que me foram cedidas pela professora responsável, Maria Dolores Lorenz Peralva[4], com quem trabalhei integradamente, fornecendo informações, material, fotografias de trabalhos, e discutindo propostas de ação.

Este grupo que compõe uma classe do Programa de Aceleração da Aprendizagem da Escola Estadual Julião Nogueira, localizada em Campos dos Goytacazes, é composto de doze alunos do sexo masculino com idades entre 10 e 16 anos, que apresentam déficit na aprendizagem, acarretando defasagem série/idade. O objetivo deste Programa é estimular as potencialidades dos alunos para que resgatem sua auto-estima e superem os possíveis obstáculos que limitam seus avanços na aprendizagem. As ações desenvolvidas na escola durante o primeiro bimestre do ano de 2004, segundo a professora, foram centradas na questão da cidadania e o indivíduo – o respeito à diferença, seja étnica, social, cultural, religiosa, econômica ou sexual.

Partindo das notícias sobre o conflito entre garimpeiros e índios ocorrido no norte do país, veiculadas nos meios de comunicação nesse período, a referida professora já havia trabalhado com os alunos os mapas comparativos dos territórios indígenas na época da descoberta do Brasil e nos dias atuais, as conseqüências do contato dos povos indígenas com a civilização, seu processo de aculturação, e suas condições recentes de vida, quando soube da exposição e da possibilidade de participarem da visita guiada.
Durante a visita realizada no dia 20 de abril de 2004, foi apresentado primeiramente quais eram os povos que serviram de inspiração, onde foram obtidas as informações para estudá-los, local onde vivem e ramo lingüístico a que pertencem, como escolhem e utilizam as matérias-primas disponíveis ao desenvolvimento da técnica adequada de manufatura, o que são os grafismos, as condições determinantes de sua utilização, suas características e significados - onde estão presentes elementos de ordem simbólica, ligados às concepções religiosas, estéticas e filosóficas do grupo - a utilidade e finalidade prática dos objetos e instrumentos produzidos, bem como da pintura corporal, salientando as diferenças e especificidades de cada povo em relação a esse modo de expressão.

Em seguida os trabalhos foram sendo apresentados um a um, com explicações sobre sua confecção, técnica e materiais utilizados, características de composição, e seus significados e usos para cada cultura em particular. Esta apresentação foi sendo determinada pelas perguntas e comentários dos participantes.


Figura 1: Alunos e professoras visitando a exposição Kwatsiarapara com a artista.


A presença de amostras da argila utilizada na confecção dos trabalhos despertou a curiosidade sobre a origem do material, que é retirado das margens de uma lagoa da região, suscitando discussões sobre a importância da preservação ambiental, e sobre as possibilidades de utilização de materiais não convencionais em trabalhos artísticos.
Partindo de perguntas dos participantes, se discorreu ainda sobre a obra de arte como produto de trabalho e pesquisa, e sobre as características da cultura material dos índios Goytacazes, grupo extinto que habitou a região (daí o nome do município).

No artigo de FERREIRA (1999), é dito que a pluralidade cultural enfocada pelas práticas artísticas desenvolvidas na escola possibilitam o conhecimento da relação existente entre a cultura do aluno e as demais, e que é importante mobilizar a curiosidade deles sobre contrastes, contradições, desigualdades e peculiaridades que integram as formações culturais em constante transformação, por meio da escolha de trabalhos artísticos que expressem tais características.



Nos dias subseqüentes, na escola, os alunos confeccionaram a maquete de uma aldeia indígena Goitacá com material colhido por eles próprios; produziram também trabalhos de “releitura” daqueles vistos na exposição, desenhando em papelão e em jarras de cerâmica. O material utilizado foi papelão reaproveitado de caixas obtidas no comércio local, giz de cera, e tinta pva.


Figura 2: Alunos confeccionando a maquete.

Na culminância do projeto o grupo realizou, na própria escola, exposição de seus desenhos, jarras, e maquete, e de acordo com o depoimento da professora, sentiram-se verdadeiros artistas, orgulhosos e felizes ao perceberem o quanto são capazes desde que lhes sejam dadas oportunidades adequadas de expressão.

 


Figura 3: Exposição dos trabalhos dos alunos.

Considerações finais

Apresentei aqui uma experiência de mediação entre obras de arte e um grupo de alunos, considerando que a diversidade cultural deve ser apresentada e transmitida para que aprendam a reconhecer como importantes as várias etnias, e aceitá-las na sociedade, promovendo o desenvolvimento de valores humanos e aumentando a tolerância e o respeito entre os diferentes grupos, através da decodificação de outra cultura, dando-lhes também os meios para melhor perceber a sua própria.

Estas ações integraram o fazer artístico, a informação história e a apreciação estética, como proposto por BARBOSA (1991), e só foram possíveis graças ao trabalho colaborativo espontâneo entre a professora do grupo e a artista-arte-educadora.

Consideramos que os objetivos propostos foram alcançados, e que o trabalho desenvolvido através das atividades artísticas foi decisivo para a consecução dos resultados obtidos além dos esperados, observando-se o interesse, o envolvimento e a desenvoltura dos alunos na execução tanto das tarefas propostas pela professora como as sugeridas por eles mesmos, podendo ser verificado também nas fotografias apresentadas.

Agradeço a colaboração, o interesse e o compromisso de Maria Dolores Lorenz Peralva, sem a qual estas ações não teriam sido realizadas com tanto êxito.

Bibliografia

BARBOSA, A.M. Arte, Educação e Cultura. Textos do Brasil. Brasília, n.7, p.23-27, 2000.

________. A imagem no ensino da arte. 4 ed., São Paulo: Editora Perspectiva, 1991.
FERREIRA, S. Arte e escola: interação de espaços plurais. Pro-Posições, São Paulo, v. 10, n. 3 (30), p.20-29, novembro 1999.
FUNARTE e Ministério da Cultura. Arte e Corpo: pintura sobre a pele e adornos de povos indígenas brasileiros. Rio de Janeiro, 1985. 103 p. Catálogo que acompanhou uma seção da exposição Arte e seus materiais, sala especial do 8º Salão Nacional de Belas Artes.
ÍNDIOS do Brasil. Apresenta textos sobre os índios brasileiros. Disponível em: <http://www.funai.gov.br>.  Acesso em: 02 de março de 2004.
MASON, R. Arte educação multicultural e reforma global. Pro-Posições, São Paulo, v. 10, n. 3 (30), p.07-20, novembro 1999.
PHILIPPE, A.D. Gardner e Vygotsky: reflexões sobre a arte e o ensino artístico. Poiésis, Tubarão, v.2, n.4, p.79-88, julho-dezembro 2000.
REYS, M.M.C. Manuscritos de Manoel Martins do Couto Reys – 1785 – Descripção Geographica, Pulitica e Cronographica do Districto dos Campos Goitacaz, Rio de Janeiro: Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, 1997.
RIBEIRO, B.G. (org.) Suma Etnológica Brasileira – Volume 3 Arte Índia. 2 ed. Petrópolis: Vozes – FINEP, 1987.
RICHTER, I.M. A multiculturalidade no ensino de arte e sua influencia na leitura dos códigos estéticos. Pro-Posições, São Paulo, v. 10, n. 3 (30), p.30-36, novembro 1999
VIDAL, L. (org.) Grafismo Indígena – estudos de antropologia estética. 2 ed., São Paulo: Studio Nobel/FAPESP/EDUSP, 2000.

Notas:

[1]Assistente técnico-administrativo na Casa de Cultura Villa Maria da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro - UENF, e aluna do Programa de Mestrado em Cognição e Linguagem na mesma Universidade.

[3] RIBEIRO, Berta G. (org.) Suma Etnológica Brasileira – Volume 3 Arte Índia. 2 ed. Petrópolis: Vozes – FINEP, 1987;  VIDAL, Lux (org.) Grafismo Indígena – estudos de antropologia estética. 2 ed., São Paulo: Studio Nobel/FAPESP/EDUSP, 2000; FUNARTE e Ministério da Cultura. Arte e Corpo: pintura sobre a pele e adornos de povos indígenas brasileiros. Rio de Janeiro, 1985. 103 p. Catálogo que acompanhou uma seção da exposição Arte e seus materiais, sala especial do 8º Salão Nacional de Belas Artes.
[4] Maria Dolores Lorenz Peralva é professora de ensino fundamental na Escola Estadual Julião Nogueira, e foi responsável por uma grupo de alunos do Programa de Aceleração da Aprendizagem durante o primeiro semestre de 2004.

Revista Digital Art& - ISSN 1806-2962 - Ano II - Número 02 - Outubro de 2004 - Webmaster - Todos os Direitos Reservados

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