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Lona Celestial e Transparente
Autor: Cesário Augusto Pimentel de Alencar[1] - cesarioaugusto@yahoo.com.br

“[...] eu me transformei em inimiga implacável do seu romantismo, do meu romantismo, e qualquer espécie de romantismo – do Romantismo!”
Carolina Xavier de Novaes ‘Carola’.

Difícil encontrar dramaturgia arvorada em ser o que é: precípua e exclusivamente escrita, sem indicações de cena, puro material de investigação a ser manipulado pelas associações do encenador. Texto dramático deleita quem o lê e, por conseguinte, possui-o, na mais empolgante das estratégias desconstrucionistas dos Roland Barthes e Jacques Derrida da vida.

Via de regra, contudo, para o infortúnio do(a) leitor(a), a autoria pede supremacia oculta naquilo somente sabido, no momento da criação, pelo(a) escritor(a), sem ao menos levar em conta o respeito ao discernimento de quem lê; tem-se, portanto, a ditadura de dramaturgos(as) impondo figurinos, cenários, atmosferas, músicas de fundo e outras perfumarias vindos sob a famigerada nomeação de rubrica. Quem pediu rubrica, a propósito?

Exemplo célebre desse autoritarismo fora ralho do escritor Anthon Checkov (1860-1904) ao diretor, ator e teórico Constantin Stanislavski (1863-1938), o qual criara o papel de Astrov em Tio Vânia: “Astrov ruge e não esbraveja... Stanislavski estragou meu texto. Que fique Stanislavski à mercê de Deus!” E o Deus de Checkov, ingênuo czarista, relevou tamanha mesquinharia, deixando de lambuja, para toda citação ao legado de Stanislavski, os textos dramáticos da prima dona Anthon Checov. Ou seja, cita-se Checkov sempre quando o nome de Stanislavski é levantado, malgrado o reverso não aconteça. Hoje, monta-se não Checkov, mas Tio Vânia, O Jardim das Cerejeiras e As Três Irmãs, obras por ele escritas. Dane-se então a autoria? Dane-se. Checkov está morto. Ainda mais, texto dramático convida à leitura, ação por si criativa e associativa, sendo um, apenas um componente do texto performático, entre atuantes, cenário, figurino, iluminação, música e outros elementos ao redor do eixo da encenação. Por maior que seja o desejo do(a) escritor(a) em dirigir, o texto performático (e me refiro a este como teatro, ou performance) é de quem o cria na interpretação soberana. Fique a autoria literária em seu lugar, permitindo ao leitor associações enriquecedoras do signo lido e da lida com o significado.

Mas quão transparente é Céu de Lona, de Décio Pignatari! Décio está defunto na obra, deixando a sua leitura um procedimento de criação cognitiva. Por si, o texto constitui elemento de um livro exímio na diagramação, conteúdo e sagacidade do autor em não dirigir o pensamento do leitor. Décio proseia, sem rubricas autoritárias, chegando a ponto de, pela ficção, friccionar a púbis e falos de Carolina e Machadinho em nosso rosto, dando gosto de letras trepadas, envolvidas em gozo intermitente. Generoso texto dramático, onde a sensualidade não é vomitada por indicações de supostas cenas, mas, de outra feita, o erotismo se permite calibrar qualquer solidão, legando o prazer de ler a vários atos onanistas e siriricos do(a) leitor(a). Interpretai a obra de Décio “como gostais”, prezado(a) amigo(a), como Como Gostais, de Shakespeare (1564-1616), traz tudo no dizer de personagens, sem preguiça. E vamos montando, Décio, na sua prosa rica em espaços para desconstrução, para o jogo livre de significados preconizado por Derrida na terracota da morte do autor-deus prenunciada por Barthes. Precisa-se de você não, Décio: o texto Céu de Lona, para ser a exuberância que é, depende tão somente leitor(a)-genitor(a) para ter vida própria... e às favas com você! Puderam os textos dramáticos ser assim convidativos para um jogo aberto, sem estigmatizar subestimar a nós leitores, diretores(a) e atuantes.

Céu de Lona depõe a ficção pela verossimilhança das atitudes vindas de personagens desconhecidos até que sejam lidos: Quintino Bocaiúva, Machado de Assis, Carolina Novaes, Visconde de Mauá, Castro Alves, José de Alencar e outros meio-lá-meio-cá, na gangorra romântico-realista. Vivam todos em nossas imaginações, e que cada lida os inventem! Vivam as quatorze páginas em branco do livro! Vivam as pinturas de Maria Ângela Biscaia e os desenhos de Lyria Palombini distribuídos pelo texto! Viva o negrume das folhas-de-rosto!

Décio, obrigado por tratar seus leitores(as) com respeito e magnificência!

Bibliografia

PIGNATARI, D. Céu de Lona. São Paulo: Travessa dos Editores, 2004. 70 p. ISBN 8589485072

Notas:

[1] Cesário é ator e professor, além de conselheiro desta revista.

Revista Digital Art& - ISSN 1806-2962 - Ano II - Número 02 - Outubro de 2004 - Webmaster - Todos os Direitos Reservados

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