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Por uma fenomenologia do tempo...
Autora: Gabriela Balaguer[i] - gabriela_balaguer@yahoo.com.br


O presente artigo pretende apresentar as concepções filosóficas de Maurice Merleau-Ponty acerca do problema do tempo, tomando como ponto de partida e apoio duas obras de arte: uma escultura de Nelson Félix e uma poesia de Carlos Drummond de Andrade. As duas obras servem como exercício para a reflexão de problemas filosóficos ligados ao tempo como: o que é e como se sente sua passagem, como o espaço colabora na constituição do sentimento e de seu enraizamento.

Palavras-chave: filosofia; fenomenologia; arte

Abstract:

This article aims to present Maurice Merleau-Ponty philosophical conceptions about the time from two pieces of art: one Nelson Félix’s sculpture and one Drummond’s poem.

Key-words: philosophy, phenomenology; art

Ainda que sem razão Nelson Felix, artista plástico contemporâneo, tem sua obra reconhecida por alguns críticos no terreno da arte conceitual. Das narrativas que nos chegam, quando não, com sorte, por imagens fotográficas, sua obra, o Grande Bhuda, é a que mais fortemente nos marcou: à força de lança. No terreno distante das grandes cidades, dos museus, dos espaços urbanizados, para lá Nelson Félix nos leva com sua obra: o interior da floresta do Acre, ali escondida e perdida entre as árvores. Ela caminha em direção a uma natureza intocável, como que virgem e desconhecida, bem na contramão dos espaços institucionalizados e na correlativa institucionalização da arte, é verdade. Contudo nos afigura essa fuga para a natureza como portando sentido outro, diferente daquele inaugurado pelo gesto de artistas como Marcel Duchamp, ao introduzir no espaço do museu seus ready-mades, abrindo lugar para a pergunta “o que é arte”. Félix vai atrás justamente do instante mítico, do gesto inaugural, isto é, das experiências que de tão no limite do humano e inumano exigem narrativas míticas para serem contadas.

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Nelson Felix - Grande Bhuda - www.canalcontemporaneo.art.br

Sua escultura em estado de espera depende em tudo da força resignada dessa natureza. Um mogno vivo e, ao redor de seu tronco, garras de ferro em formato de L presas ao chão e prontas a se encarnarem na árvore. Uma proposição inicial de confronto e de encontro das duas matérias, orgânica e inorgânica, ou de duas naturezas sensíveis: o ferro liso e agudo, elemento da natureza já moldado ao gosto e à intenção do artista em singular oposição à natureza virgem e bruta da árvore, com sua vitalidade dirigida ao seu crescimento “iluminado”, à sua perpetuação. Nelson Felix anuncia um encontro das duas naturezas, cujo empenho dependerá da visada da matéria orgânica. Curiosamente, essa intencionalidade da árvore em direção às garras é marcada por uma não-intencionalidade. Sua condição de sujeito funda-se numa condição de não se saber objeto. A árvore cresce, deseja crescer até em direção à luz, mas, para tanto, terá de enfrentar aquilo que lhe impõe resistência e sacrifício; ser capaz de superar o confronto, o trauma produzido pelas garras de outra natureza. Trauma aqui desde sua acepção médica e também na sua apropriação conceitual feita por uma certa psicanálise que pensa, para além da força ativa das pulsões e de suas vicissitudes, que não podemos deixar de lado aquilo que é exterior ao organismo. Ambos dizem respeito a fenômenos de ferimentos, danos, avarias ou “ferida provocada por agente externo”[ii]; evidente que se para o primeiro os agentes exteriores deixam um rastro físico no corpo – escoriações nos órgãos e ossos, ou na matéria física da árvore (perfurações, rasgos que deixam sua seiva esvair-se) – é de outra natureza o impacto catastrófico deixado pelo segundo. Em resumo, se tratam de experiências com o que vem de fora, com o exterior, qualitativa e quantitativamente intensas, que impõem ao organismo vivo, em situação de passividade, uma sobrecarga psíquica (ou física) dramaticamente maior àquela suportada. Vivências impactantes provenientes do exterior e que criam dado sua potência avassaladora verdadeiros enclaves no interior.[iii] É dessa ordem de experiências que Félix pretende nos falar em o Grande Bhuda: encontro traumático de duas matérias tão sensivelmente diferentes, sendo que uma é passivamente assujeitada pela outra. Ora, nas palavras de Figueiredo, “o traumático corresponde a um momento privilegiado da exposição do sujeito da vontade a um objeto cujo dinamismo o coloca na posição passiva, ‘infantil e feminina’, conforme os valores de nossa época moderna.”[iv] Concretamente, para permanecer sujeito desejante de crescimento, a árvore deverá incorporar, introjetar seus obstáculos, amalgamar-se à matéria inorgânica, incorporar uma outra natureza sensível que lhe impõe resistências e imolações, em suma sobreviver passivamente ao trauma produzido pelo corpo escavado pela lança. Como no psiquismo, o traumático forma aqui um enclave, uma cisão, um quisto, um corpo estranho na árvore.

Assim, os dois elementos, a matéria orgânica e a matéria inorgânica, essas duas dimensões da vida que aparecem de partida isoladas, sendo em si, têm pela via do tempo acesso de um a outro, transformação e incorporação. É o curso do tempo que põe em andamento essa imagem mítica expressa no Grande Budha de uma separação originária absoluta entre natureza e cultura, entre sujeito e objeto, entre espírito e coisa. De parte a parte, notamos fronteiras nítidas que aos poucos vão sendo desfeitas. Os limites dos corpos, das matérias no estado original da obra oferecem horizontes de fusão, dissolução de fronteiras em que já não se sabe bem quem é sujeito e quem é objeto, quem é a vítima e quem é o algoz. Os pares antitéticos, de oposições e separações inicialmente absolutas – orgânico e inorgânico, bruto e liso, interior e exterior, natureza e cultura, vida e morte – evocam o fronteiriço ou bem o limiar das coisas e sua decorrente dissolução.[v] Esse limite entre o que se constitui como fruto de uma experiência e o que se destrói nessa potência. Ora, não seriam as garras, a expressão dessa violência dos homens em direção à natureza, dessa tentativa de contenção e dominação, para a vida e para a morte, da natureza, momento constituinte de um mito traumático na origem, ou ainda, forças inorgânicas que nos atravessam de maneira impactante, figuração de um quase instante constituinte e destruidor, agora sim, do humano?

Vejamos que há por toda parte nessa obra sinais da porosidade à alteridade imposta pelo curso do tempo. Não a porosidade própria do inacabado mas do que permanece aberto perpetuamente ao tempo e ao porvir. A despeito de sua intenção e idéia original que imprimiram uma espécie de “espírito na coisa”, como comenta Rodrigo Naves, acompanharemos a mobilização da árvore, nem que seja só na imaginação. Ainda que nesse terreno, o suplemento da obra virá de movimento desconhecido. Ainda que a obra esteja na idéia, muito mais que na fabricação das garras que, certamente devem ter sido feitas por mãos alheias, mas dirigidas pelo artista, o movimento da matéria orgânica por ele antevisto é da ordem do imprevisível. Nesse sentido que a árvore reescreve a proposição inicial em aberto, ainda que passivamente, ou por efeito da força da outra matéria.

Porém, subitamente damo-nos conta que a escultura foi apenas anunciada aí: toda a experiência estética de onde retiramos a fusão, o fim das fronteiras de sujeitos e objetos, de formas orgânicas e inorgânicas, ainda não ocorreu. Como já dissemos, o artista apenas aproximou garras ao tronco vivo do mogno, mas não as fez penetrar ainda. O encontro das duas matérias está previsto, mas não visto. Daí a constatação de que antecipamos o encontro, pois ao vermos as fotos da obra ou ouvirmos a “estória” imediatamente imaginamos as garras já incorporadas ao mogno vivo. Sentimo-nos compelidos a acabar a obra imaginariamente fazendo o tempo correr. Diante da notícia do confronto anunciado, instantaneamente somos lançados aos horizontes do presente, isto é, ao passado e ao futuro. Sendo obra aberta é sobretudo por força dos horizontes desse agora mítico que de ponta a ponta percorremos a floresta e imaginamos uma natureza intacta, sem nenhum vestígio ou traço da presença humana, uma natureza pura, anterior à aparição das garras que sinalizam a presença humana e simultaneamente a encarnação das garras no corpo da árvore, as perfurações, o encontro violento e por que não a floresta devastada pelo homem. O caráter de obra aberta, por assim dizer, penetrável ao tempo, cria uma atmosfera de coexistência de passado, presente e futuro; simultaneamente todos os tempos parecem estar projetados ali naquela lenda ou naquela imagem como num zootrópio girando incessantemente, cujos desenhos isolados fundem-se na fabricação do movimento. O inesperado é que a força artística dessa obra é retirada em boa parte da apresentação das múltiplas dimensões temporais - também limiares uma vez que quase que se sobrepõem os tempos - que remetem e exigem uma narrativa imaginária de valor mítico permanente. Do mesmo modo que comentávamos a incorporação da matéria orgânica e inorgânica no porvir para o qual a obra dirigia-se, sua existência “esquecida” em meio a uma floresta, sua invisibilidade em nosso mundo dirige nossas atenções a um passado lendário. Podemos contar a alguém sobre a existência do Grande Bhuda, dessa proposição traumática do artista, utilizando-nos de recursos próprios do narrador[vi] que põe os acontecimentos na indeterminação: “era uma vez”, “conta-se”. Essa indeterminação temporal à qual nos arrasta a obra cria seu horizonte lendário, mítico em muito semelhante à epopéia onírica. Seu título é mais uma expressão da importância da fabulação e de seu caráter de apreensão de uma relação temporal cosmológica e mística onde de novo a noção de sacrifício e iluminação, isto é, do fronteiriço entre o carnal e o espiritual, ou entre a vida e a morte, convocam nossa presença como espectador.

O que nos interessa aqui nessa obra é propriamente a apresentação das dimensões temporais. Ainda que certos críticos de arte insistam na dimensão espacial de sua obra - toda a rede de significações místicas na sua posição dada por referências a escalas universais, tais como latitudes e longitudes - a relação com o espaço é também de ordem temporal. Mesmo quando o artista comenta a importância do espaço, configura-se mais propriamente uma relação com o tempo.

O espaço não é só que se olha, tem um dado muito maior. A percepção do espaço não passa pelo olho. Existe uma série de coisas que acontecem simultaneamente e que geram um espaço simultâneo. Nós, ocidentais, somos da causa e do efeito, já a concepção de situações simultâneas é chinesa. O livro das mutações, o I Ching, por exemplo, é relacionado à simultaneidade. E o espaço é dessa natureza.[vii]

Simultâneo é o que se faz ou se realiza ao mesmo tempo (ou quase) que outra coisa. Portanto, quando sinaliza as dimensões não presentes na percepção, no olhar do espaço, Felix parece estar se referindo sim a dimensões espaciais que estão lançadas no tempo simultâneo. Passado, presente e futuro não são lineares em sua obra, bem como as separações entre as matérias, o espaço interior e exterior perde seus limites. A dessubstancialização, a perda de territórios e tempos nítidos, a maneira como tempo e espaço aparecem correlacionados são a matéria do diálogo franco que pretendemos por ora fazer com a fenomenologia de Merleau-Ponty.

A relação com o passado, a capacidade de evocá-lo e transmiti-lo a outros talvez seja o que melhor caracterize e diferencie os homens dos outros seres da natureza. A linguagem verbal é decisiva na capacidade expressiva dos homens, no seu talento em comunicar-se com seus antepassados e com as gerações futuras. São muitas as modalidades de relacionamento dos homens com o passado. Da solidão do sujeito que evoca o passado por meio de suas lembranças, passando pela experiência de uma memória coletiva partilhada por membros de uma família ou de uma comunidade e chegando por fim à escrita da história, o tempo perdido próprio ao passado procurará ser reencontrado. Que o passado compareça em modalidades introspectivas e pessoais assim como nas suas feições coletivas ou sociais, isso em nada impede          que a memória faça emergir em toda as suas manifestações uma experiência da alteridade. Ao lembrar, deparo-me com aquilo que não é mais, com o que se foi e isso me põe em registro de uma presença da ausência, de um encontro distanciado. Será por isso que quem se lembra sente-se impelido ao mundo e aos outros, necessita do reconhecimento por vezes objetivo do outro e do mundo que venha lhe assegurar aquelas lembranças? Em um poema declaradamente evocativo da vida da infância em Itabira que guarda, até mesmo em seu título, a idéia de que a passagem à outrora em muito se assemelha a uma viagem e, portanto, a um deslocamento espacial, Carlos Drummond de Andrade diz a certa altura: “Aqui havia uma casa. A montanha era maior”.

A evocação da lembrança metaforizada como uma viagem seja ela em direção à infância, em direção à família, em direção à Itabira conta com uma percepção que se dá no presente. O sujeito poético põe-se a caminhar, a flanar por Itabira, a movimentar-se no agora e essa percepção lhe reenvia a um tempo que se mostra outro pelas coordenadas espaciais. O deslocamento espacial e a decorrente constatação da passagem do tempo modificando as dimensões e os objetos naquele espaço tornam espaço e tempo indissociáveis. O deslocamento temporal depende estreitamente do deslocamento espacial. O sujeito poético só pode saber da casa que havia, quando ela dali desapareceu; só pode saber das outras dimensões da montanha, a partir das dimensões presentes da montanha. Portanto, é por meio de uma referência ao presente que a temporalidade desse espaço pode se presentificar. A evocação da lembrança convocada pela materialidade espacial permite que ali onde não há mais uma casa, possa simultaneamente trazer a casa de outro tempo de volta. Nesse sentido, o poema retoma a compreensão do artista Nelson Felix acerca de sua obra, o Grande Budha, como portando espaços simultâneos. Pois no poema são os espaços simultâneos condição e fruto da experiência do tempo.

Quando dizíamos que a memória era uma experiência de alteridade e que, portanto, clamava pelo reconhecimento dos outros e do mundo, falávamos da necessidade de que o tempo se enraizasse em alguma perspectiva. Ao chamar os outros para completarem, confirmarem ou reconhecerem minhas lembranças, é porque necessito de uma outra perspectiva que me dê sustentação nas evocações do passado. O mesmo vale quando exijo do espaço a sua participação em minhas lembranças, quando mesmo não podendo mais vê-lo objetivamente, estou sempre procurando nas minhas lembranças como quem tateia um objeto até finalmente poder acertadamente nomeá-lo. Quem se lembra quer objetividade quer alcançar o mundo e isso o põe desde o início na dimensão espacial. De novo, enfrentamos o desafio de pensar as relações do espaço com o tempo e a menção feita por Nelson Félix de um espaço simultâneo não pode mais ser resolvida chamando-a unicamente de uma temporalidade pensada como simultaneidade. Mas o que no espaço presente teria feito evocar o passado e criado essa dimensão sobreposta de acontecimentos presentes e memória? Se a viagem no poema de Drummond é metáfora dessa relação de raízes profundas entre espaço e tempo, devemos também julgar diferentes as evocações do passado que partem de um espaço objetivamente percebido - e evidentemente, em eterna comparação e conflito com as lembranças- daquelas evocações de lembranças que não contam mais com uma percepção atual para confrontar com as lembranças? Qual a qualidade da vivência do passado produzida pelo passeio de Drummond à Itabira? Haveria diferença com uma evocação que não contasse com essa viagem peripatética? Bem, vejamos se as formulações de Merleau-Ponty acerca do tempo e de suas relações com o espaço podem nos oferecer pistas para a resposta dessa pergunta.

2. Na companhia de Merleau Ponty

As impressões que tiramos de ambas as produções artísticas, o “Grande Budha” e “Viagem na Família”, acerca de uma fenomenologia do tempo, da memória e da imaginação trouxeram a baila inquietações pertinentes que se sobrepõem: 1) como se sente a passagem do tempo? 2) como se apresentam os horizontes do agora? 3) como o espaço colabora na constituição do sentimento e enraizamento do tempo? 4) o tempo oferece uma vivência da alteridade? Vejamos como Merleau-Ponty pôde tratá-las.

Na Fenomenologia da Percepção, Merleau-Ponty dedica um capítulo exclusivo ao problema do tempo, onde traça considerações importantes partindo de uma metáfora conhecida do tempo como um rio que segue seu curso. Se compararmos um rio que corre em um certo sentido - deixa a nascente e prossegue adiante, passando pelos obstáculos naturais oferecidos pela geografia do terreno - ao problema do tempo, chegaremos facilmente à conclusão que para que haja passagem do tempo ou sentimento do tempo, é necessário um observador, um sujeito que veja o rio de uma certa perspectiva. O rio em si vive numa continuidade que não divide seus momentos em passado, presente e futuro. As águas da nascente são as mesmas águas que deságuam na foz. A natureza ou as coisas do mundo são em si indivisíveis. Não teríamos o testemunho da passagem do tempo na árvore do Grande Budha, se ali onde a natureza prosseguia seu curso contínuo, não tivesse o artista introduzido nossos olhos e corpos como as garras no interior da floresta e no interior da árvore. Assim como um observador presente na margem do rio que vê chegando da nascente um tronco que se arrasta com dificuldade pelas águas e segue a correnteza até que o observador o perca de vista, a árvore é atravessada pelo tempo quando as garras lhe são apontadas: nossa imaginação nos dá o passado e o futuro desse acontecimento. Imaginamos o que era aquela árvore antes tanto quanto o devir das perfurações no seu tronco. (Até mesmo a fantasia de uma natureza intocável repousa em um certo sentimento de que ali não houve passagem do tempo.) Nas palavras de Merleau-Ponty

Os acontecimentos são recortados, por um observador finito, na totalidade espaço-temporal do mundo objetivo. Mas, se considero este próprio mundo, só há um único ser indivisível e que não muda. A mudança supõe um certo posto onde eu me coloco e de onde vejo as coisas desfilarem; não há acontecimento sem alguém a quem eles advenham, e do qual a perspectiva finita funda sua individualidade. O tempo supõe uma visão sobre o tempo.[viii]

Ao circunscrever que o tempo depende de um observador que recorte o acontecimento, Merleau-Ponty insiste em utilizar palavras que digam respeito a dimensão espacial. Desde limites espaciais, referências à finitudes, posições, coordenadas e perspectivas há toda uma diferença na consideração do tempo, dependendo da localização espacial do observador. Portanto, só se vive o tempo quando um observador reparte espacialmente o mundo, bota distância onde só havia continuidade espacial, enfim, quando cria pela sua presença a idéia de um outro ponto. Por isso, ao explorar a metáfora do rio, Merleau-Ponty brinca com as posições do observador em relação ao rio. Ora posicionando-o na margem, ora no leito do rio, seguindo do interior seu próprio curso, ele demonstra como as dimensões de passado, presente e futuro podem variar conforme a relação do observador com a paisagem que se desenrola. O tempo não está no interior do rio, nem no interior da árvore; não está no interior das coisas do mundo.

Portanto, o tempo não é um processo real, uma sucessão efetiva que eu me limitaria a registrar. Ele nasce da minha relação com as coisas. Nas próprias coisas o porvir e o passado estão em uma espécie de preexistência e sobrevivência eternas; a água que passará amanhã está neste momento em sua nascente, a água que acaba de passar está agora um pouco mais embaixo, no vale.[ix]

Mas, afinal, por que é necessária a presença de um observador, a presença de um sujeito para recortar os acontecimentos do mundo em uma ordem temporal? Para Merleau-Ponty, o mundo está suficientemente preenchido de passado e futuro e só tende a formar uma totalidade que constitui propriamente a sensação de eternidade. Imaginemos sítios onde a natureza repousa isolada da ação humana, inteiramente preservada e encerrada em si mesma. Nessa fantasia própria a uma concepção romântica do mundo, há apenas comunhão entre os seres e os processos naturais. Uma mata nativa vive em nossa ficção imaginária uma espécie de indistinção temporal e espacial. Os corpos que lá habitam apresentam-se em continuidade uns com os outros, numa espécie de amálgama originário. O mesmo vale para o tempo. A árvore que tomba com a chuva, alimenta o solo e dá origem a novas árvores. Somente um observador alheio aos processos da natureza poderia conceber a separação desses corpos tal como a separação dos eventos: a queda da árvore, seu apodrecimento e sua incorporação pelo solo. O mundo é uma totalidade de tempo encerrada em si mesma, e, que, por isso depende do sujeito para introduzir ruptura onde só há continuidade. Melhor dizendo, o mundo carece de não-ser e é isto o que o sujeito tem a lhe oferecer.

O passado e o porvir existem em demasia no mundo, eles existem no presente, e aquilo que falta ao próprio ser para ser temporal é o não ser de alhures, do outrora e do amanhã. O mundo objetivo é excessivamente pleno para que nele haja tempo.

....

Se separamos o mundo objetivo das perspectivas finitas que dão acesso a ele e o pomos em si, em todas as suas partes só podemos encontrar “agoras”.[x]

Bem, mas se o tempo não está nas coisas do mundo e sim na minha relação com as coisas, na relação dos sujeitos com as coisas, estará ele inteiramente do lado do sujeito? Será o tempo efeito da minha consciência sobre o mundo? Onde estarão passado, presente e futuro no sujeito? Invertendo a exploração do fenômeno do tempo, o interior do sujeito deve ser vasculhado como outrora foi o interior do rio. Será o passado causado pela série de traços fisiológicos ou psíquicos registrados na memória? Quando pensamos em traços psíquicos ou fisiológicos imaginamos que uma percepção atual é registrada e conservada constituindo em somatória nossa memória. Mas como esses registros de uma percepção antiga serão em si memória? Merleau-Ponty utiliza-se de uma analogia interessante que desmascara a inviabilidade de considerar o registro ou traço mnêmico, o responsável pelo fenômeno da memória. Comparando os traços deixados por percepções antigas à traços deixados em uma mesa, ele diz:

Esta mesa traz traços de minha vida passada, inscrevi nela as minhas iniciais, nela fiz manchas de tinta. Mas por si mesmos estes traços não remetem ao passado: eles são presentes; e, se encontro ali signos de algum acontecimento “anterior”, é porque tenho, por outras vias, o sentido do passado, é porque trago em mim essa significação.[xi]

Ora, os traços inscritos na mesa por mim em outros tempos não podem por si significar o passado, bem como os traços mnêmicos deixados pela percepção passada da mesa sendo inscrita por mim, não são suficientes para me dar o sentido do passado. O passado não está apenas nos traços deixados na mesa ou no meu sistema nervoso, uma vez que essas marcas estão conservadas como presentes.

(...) uma percepção conservada é uma percepção, ela continua a existir, ela está sempre no presente, ela não abre atrás de nós essa dimensão de fuga e ausência que é o passado.

[...]

A reprodução pressupõe a recognição, ela só pode ser compreendida enquanto tal se primeiramente tenho uma espécie de contato direto com o passado em seu lugar.[xii]

Quando apresentamos o poema de Drummond em que o sujeito poético passeia pelas ruas de sua cidade da infância, podemos dizer que o passado é conseqüência de traços mnêmicos de percepções conservadas e evocadas pela percepção presente? A meu ver, não. O passado ali transpira por todos os poros: ele é sentido na realidade fugidia da aparição de uma casa que não existe mais, da montanha grande que se foi e que sinaliza a perda das dimensões do corpo infantil do sujeito poético. Consciência e mundo são esticados e profundamente alterados, vividos nas dimensões sobrepostas de ser e não ser. Os traços mnêmicos são apenas chamados a participar de uma intencionalidade própria do sujeito ao mundo.

Todavia, se o passado não está encerrado nos conteúdos mnêmicos da consciência, que dirá o futuro, uma vez que não há nenhum traço que possa já ser o futuro. Poderá o futuro ser antecipado e previsto a partir do que já foi visto? Onde está o futuro?

(...) para projetar o porvir diante de nós, primeiramente é preciso que tenhamos o sentido do porvir. Se a prospeção é uma retrospecção, em todo caso ela é uma retrospecção antecipada, e como poderíamos antecipar se não tivéssemos o sentido do porvir?[xiii]

Do futuro e do passado é necessário que se tenha um sentido. Eles não são conteúdos da minha consciência prestes a se presentificarem. O passado e o futuro me escapam, são exteriores a mim para que eu possa visá-los. À plenitude do ser do mundo oferece o sujeito quando se posiciona em um ponto, uma alteridade encarnada no tempo e no espaço. Do mesmo modo, é preciso para o sujeito uma certa distância de si, um sentimento de não-ser para viver a passagem do tempo.

É preciso portanto, correlativamente, que o próprio sujeito não esteja ali situado, para que ele possa, em intenção, estar presente ao passado assim como ao porvir. Não digamos mais que o tempo é um dado da consciência, digamos, mais precisamente, que a consciência desdobra ou constitui o tempo.[xiv]

Aqui um outro problema surge a vista. Está certo, a consciência desdobra ou constitui o tempo o que significa dizer que a consciência vive numa espécie de eternidade pois há entre ela e o tempo uma relação tão plena quanto àquela do mundo objetivo. Se passado, presente e futuro podem ser desdobrados como a água do rio que é a mesma na nascente e na foz, onde está o tempo? Ele parece ter se perdido na consciência tanto quanto no mundo. Há pouco havíamos falado em sentido do passado e sentido do futuro. Sim, é verdade que não são os conteúdos da minha consciência responsáveis pelo sentimento da passagem do tempo, muito menos que o tempo seja um objeto no qual a consciência se desdobra igualmente.

Só pode haver tempo se ele não está completamente desdobrado, se passado, presente e porvir não são no mesmo sentido. É essencial ao tempo fazer-se e não ser, nunca estar completamente constituído. O tempo constituído, a série de relações possíveis segundo o antes e o depois não é o próprio tempo, é seu registro final, é o resultado de sua passagem que o pensamento objetivo sempre pressupõe e não consegue apreender. Ele é espaço, já que seus momentos coexistem diante do pensamento, é presente, já que a consciência é contemporânea de todos os tempos. Ele é um ambiente distinto de mim e imóvel em que nada passa e nada se passa. Deve haver um outro tempo, o verdadeiro, em que eu apreenda aquilo que é a passagem ou o próprio trânsito.

Essas últimas considerações acerca do tempo abrem um clarão e também um abismo para nós. Ora, é imprescindível ao tempo que ele não esteja plenamente constituído, que reste uma porção de não ser, de fazer-se. Em nada isso impede ou invalida que o tempo transcorrido seja apreendido ou registrado em uma seqüência de antes e depois como numa linha ordenada de acontecimentos. Porém, esse tempo constituído registrado segundo um antes e um depois nada mais tem a ver com o tempo vivido ao qual Merleau-Ponty está se reportando como o verdadeiro tempo. O que nos intriga é que ele chame esse tempo constituído de espaço. Qual a diferença entre esse tempo constituído e o tempo verdadeiro ao qual Merleau-Ponty pretende prosseguir desvendando? Curiosamente nós vínhamos até aqui falando de referências temporais que se davam no espaço: espaço simultâneo, perspectiva, posição, finitude e por aí vai. Serão essas citações ao espaço da mesma ordem que a espacialização própria ao tempo constituído? Para tanto, parece que devemos examinar em mais detalhe de que se trata esse tempo constituído.

O tempo constituído para Merleau-Ponty é um não tempo, um tempo não verdadeiro, é mais um espaço, pois o tempo nunca está inteiramente constituído; embora haja alguma síntese temporal, ela nunca pode estar completada e, por isso, está sempre recomeçando. Um tempo constituído pressupõe uma síntese aparentemente completa pois me situo exterior àqueles eventos imutáveis. Não por acaso o autor fala em registro final. A história ou a memória podem apresentar-se nessa modalidade de registro temporal; podem ser exteriores aos sujeitos de tal modo que parecem não contar com a sua participação presente. Apresentam séries de eventos ordenados em um espaço e tempo objetivados e já postos como terminados, plenamente constituídos. Algumas concepções historiográficas partem dessa idéia de um tempo constituído. São concepções que em geral fazem do passado uma espécie de antiquário que o historiador visitará e fará o registro sem conceber que aquelas peças mantenham comunicação com o presente e com o futuro. Aí o passado vale pelo passado e a história pela história.[xv] Aos nossos olhos Merleau-Ponty parece estar certo de dizer que o tempo se perde quando aparece totalmente constituído, pois quando tratamos o passado como um museu ou antiquário que visitamos, encerramos aqueles acontecimentos em um espaço delimitado que não mais se comunica com a vida. Quando escrevo a história para querer apenas registrá-la e guardá-la em uma gaveta que valor posso tirar do passado? Vivo o tempo senão como gavetas de guardados, separadas, estanques, sem me dar conta que o tempo está nas passagens do futuro ao presente e do presente ao passado.[xvi] Mas não portará o registro do tempo como tempo constituído uma concepção sobre o tempo? Nesse sentido, não será tão enganoso conceber o tempo como constituído quanto considerar que o registro do tempo se dê nessa chave? Em que medida os registros feitos do tempo podem corresponder de fato ao modo como o sujeito vive o tempo? Questões como essas só podem ser respondidas à medida que tivermos acesso àquilo que o autor vem chamando de “tempo verdadeiro”, de “vivência primordial do ser”, “dimensão do ser”. Uma diferença importante: o tempo verdadeiro a que o autor se porta é um tempo que não é objeto de nosso saber e sim uma dimensão do nosso ser; ao contrário, o registro do tempo constituído toma o tempo como um objeto e por isso é exterior ao ser.

É usando a idéia de campo de presença que o autor irá enraizar a experiência do tempo e apontar o seu caráter de comunicação com o passado mais distante e o porvir de seu presente.

É em meu “campo de presença” no sentido amplo - neste momento em que passo a trabalhar tendo, atrás dele, o horizonte da jornada transcorrida e, diante dele, o horizonte da tarde e da noite - que tomo contato com o tempo, que apreendo a conhecer o curso do tempo. O passado mais distante tem, ele também, sua ordem temporal e uma posição temporal em relação ao meu presente, mas enquanto ele mesmo foi presente, enquanto “em seu tempo” ele foi atravessado por minha vida, e enquanto ela prosseguiu até agora. Quando evoco um passado distante, eu reabro o tempo, me recoloco em um momento em que ele ainda comportava um horizonte de porvir hoje fechado, um horizonte de passado próximo hoje distante. Portanto, tudo me reenvia ao campo de presença como à experiência originária em que o tempo e suas dimensões aparecem em pessoa, sem distância interposta e em uma evidência última. É ali que vemos um porvir deslizar no presente e no passado.[xvii]

Vejamos o que essas belas palavras podem nos dizer sobre o tempo. A experiência do tempo é constituída de passado, presente e futuro e apresenta-se sempre como campo de presença. Esse campo de presença está aberto aos seus horizontes: um passado próximo ou mais distante, um futuro de alhures ou do pretérito. A evocação de um certo passado não me traz apenas conteúdos -  representações ou traços mnêmicos - que portariam o passado; a evocação reabre o tempo e me leva ao momento em que o passado era presente. Reabrir o tempo é como abrir suas entranhas, o material de que é feito. Se o tempo é feito de passagens de passado ao presente e de presente ao futuro, passagens ao não ser, àquilo que está fora do Si, quando eu o reabro e evoco o passado, situo-me nos horizontes daquele campo de presença, a saber: do passado que ficou mais para trás do passado que evoco como presente e do futuro do passado. Os tempos verbais podem ajudar a compreensão do que Merleau-Ponty chamou de campo de presença. Quando o eu lírico do poema de Drummond passeia pela cidade e por meio de suas percepções presentes tem seu passado longínquo da infância evocado, somos tal como ele remetidos ao campo de presença daquele passado. É o passado em pessoa que ressurge no seu passeio. A casa que não mais existe pode ser “avistada” por nós e com ela todos os seus horizontes: o passado que ficou mais atrás, talvez o tempo em que o terreno restara vazio assim como os horizontes do futuro preterido a casa permanecia lá onde hoje, na percepção presente, não resta mais nada. Deve haver em todas as línguas tempos verbais próprios para situar o pretérito-mais-que perfeito como o passado que está no horizonte do campo de presença de um pretérito perfeito tal como um futuro do pretérito está no seu horizonte de porvir. Esse campo de presença faz do tempo uma experiência de movimento, de sínteses sempre inconclusas uma vez que estão abertas a horizontes. Da mesma forma, o futuro é vivido como campo de presença, pois ele já se anuncia nas linhas do presente “como o verso de uma casa da qual vejo a fachada, ou como o fundo sob a figura.” O futuro não é de todo imprevisível ainda que como Merleau-Ponty tenha dito “embora nos esperemos sempre, e sem dúvida até a morte, ver aparecer outra coisa.

O próprio presente (no sentido estrito) não é posto. O papel, minha caneta, eles estão ali para mim, mas eu não os percebo explicitamente, eu antes conto com uma circunvizinhança do que percebo objetos, eu antes me dedico à minha tarefa do que estou diante dela.[xviii]

Portanto, até mesmo o presente aparece espremido entre os horizontes dessa circunvizinhança. O tempo é vivido não como uma linha contínua mas como um círculo de posições móveis, uma espécie de dança de roda em que seus elementos presente, passado e futuro bailam e tomam uns as posições dos outros. Essa abertura conquistada pela consideração do tempo como campo de presença faz com que a passagem do tempo seja feita com um só movimento. Os instantes não estão numa linha sucessiva mas são elementos que se diferenciam uns dos outros, cuja passagem permite que apresentem uma relação de estranheza e exterioridade, um ek-stase.

O tempo é o meio, oferecido a tudo aquilo que será, de ser a fim de não ser mais. Ele não é outra coisa senão uma fuga geral para fora do SI, a lei única desses movimentos centrífugos, ou ainda, como diz Heidegger, um ek-stase.[xix]

Restava-nos para concluir essa apresentação das teses de Merleau-Ponty sobre o tempo apresentar essa última idéia que já havia sido sugerida desde o início quando falávamos da alteridade sentida pela passagem do tempo. O tempo é o meio onde se desenvolve o ser e o não, o ser e a vivência da alteridade. Se cada momento é um campo de presença em que se anunciam horizontes de não-ser mais ou de será, a cada movimento alterando o tempo de uma vez, vive-se cada momento como um não-ser, um fora de si. Mas se fosse apenas a experiência de passagem de ser a não ser, viveríamos em um perpétuo sentimento de dissolução, de perda de identidade pela ausência de sínteses. Por isso, contamos como uma síntese de transição e não de identificação, ou seja, uma síntese feita também de passagens, de dissoluções e não uma síntese que fixaria o ser em algum ponto do tempo. As sínteses de transição fazem com que na passagem de um tempo a outro algo do tempo que virá, portanto do não-ser já estivesse anunciado no ser. Como dissemos há pouco, o futuro não é imprevisível; suas linhas pontilhadas são como a face do cubo que não vejo, mas que estão anunciadas. Assim é que a dissolução de um tempo em outro, empresta partes do tempo anterior; o tempo anterior sobrevive passando.

Em suma, como no tempo ser e passar são sinônimos, tornando-se passado o acontecimento não deixa de ser. A origem do tempo objetivo, com suas localizações fixas sob nosso olhar, não deve ser procurada em uma síntese eterna, mas no acordo e na recuperação do passado e do porvir através do presente, na própria passagem do tempo. O tempo conserva aquilo que fez ser no próprio momento em que o expulsa do ser, porque o novo ser era anunciado pelo precedente como devendo ser e porque para este era a mesma coisa tornar-se presente e ser destinado a passar.

[...]

A temporalidade se temporaliza como porvir-que-vai-para-o-passado-vindo-para-o-presente.[xx]

Tudo o que falamos a respeito do tempo parece ser inteiramente válido para a compreensão da subjetividade. A subjetividade não é feita de tempo e o tempo não é subjetividade?

Este ek-stase, esta projeção de uma potência indivisa em um termo que lhe está presente, é a subjetividade.

....

A subjetividade não é a identidade imóvel consigo: para ser subjetividade, é-lhe essencial, assim como ao tempo, abrir-se a um Outro e sair de si.[xxi]

Ao fim e ao cabo da apresentação de algumas compreensões de Merleau-Ponty acerca do tempo devemos retomar as indagações acerca do espaço e tempo postas por nossas duas obras de arte. Não parece que a relação espacial de que falávamos é a mesma que Merleau-Ponty aponta quando se dedica a separar a vivência da passagem do tempo, isto é, o tempo verdadeiro, do registro final do tempo, experiência espacial do tempo. Quando seguimos os passos de Nelson Felix ao falar em espaços simultâneos, estamos vivendo a passagem do tempo ou apenas fazendo registro de sua passagem? No poema de Drummond parece se tratar de vivência do tempo pois o eu lírico é tomado pela passagem do tempo, de seu ser, pelo estado de não ser das coisas do mundo: a casa de antes não existe mais e a montanha de outrora era outra montanha, o sujeito poético também já não é o mesmo, nem será alhures. O tempo é reaberto à nossa  frente, não estamos diante de um registro apenas. O mesmo parece indicar o Grande Budha. Os espaços simultâneos que surgem não são tempos tomados em extensão, tal como poderíamos supor um deslocamento de um ponto a outro como a idéia de tempo. Os espaços simultâneos são aparições do mundo projetadas simultaneamente como em Viagem na Família ao ver a montanha de hoje sobreponho e vivo a montanha de outrora e de alhures. O tempo não foi espacializado, mas ele depende do mundo e consequentemente do mundo espacializado para ser notado. O sujeito encerrado em si mesmo sem notar os estados de mudança do mundo poderia sentir a passagem do tempo? Não é curioso que numa cela os homens façam qualquer registro dos dias para não transformarem os dias em eternidades, uma vez que o mundo, os estímulos espaciais que lhe são ofertados são sempre os mesmos? Portanto, quando dissemos que o eu lírico precisa flanar por Itabira, precisa longamente caminhar para que o passado nesse deslocamento aflore, não dissemos que a passagem do tempo está no seu deslocamento espacial, mas que é preciso ver o mundo, espacializar-se para que seu passado surja. Nesse sentido, se o mundo excessivamente pleno de tempo e falta a ele não ser, nós também dependemos inteiramente dele para sentir a passagem do tempo. Não há como falar do tempo sem encarná-lo em um mundo e, consequentemente, no espaço.

No mais, restam questões sem respostas como: que contribuições para pensar o registro da passagem do tempo feito pela história podem nos dar essa fenomenologia do tempo em Merleau-Ponty? Podemos fazer da história sínteses de transição do tempo, deixando-a aberta aos seus horizontes sempre inacabados? Poderia ser a história uma escultura em espera tal como o Grande Budha?

Referência Bibliográfica

ANDRADE, Carlos Drummond de. Antologia Poética. Rio de Janeiro: Record, 2002.

BENJAMIN, Walter. “O narrador”: considerações sobre a obra de Nicolai Leskov. Em: Obras Escolhidas, vol. I: magia e técnica , arte e política. São Paulo: Brasiliense, 198?

FELIX, Nelson. Nelson Felix/ textos Glória Ferreira, Sônia Salztein e Nelson Brissac; versão para o inglês, Steve Berg. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2001
FIGUEIREDO, Luís Cláudio. Psicanálise: elementos para a clínica contemporânea. São Paulo: Escuta, 2003.

HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
KARR, Edward Hallet. Que é história? Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.

MARX, Karl. O 18 Brumário e Cartas a Kugelmann. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1969.

MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da Percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1994.

Viagem na Família
A Rodrigo M. F. de Andrade.

No deserto de Itabira,
a sombra de meu pai
tomou-me pela mão.
Tanto tempo perdido.
Porém nada dizia.
Não era dia nem noite

Suspiro? Vôo de pássaro?
Porém nada dizia.
Longamente caminhamos.
Aqui havia uma casa.
A montanha era maior.
Tantos mortos amontoados,
o tempo roendo os mortos.
E nas casas em ruína
desprezo frio, umidade.
Porém nada dizia.
A rua que atravessava
a cavalo, de galope.
Seu relógio.
Sua roupa.
Seus papéis de circunstância.
Suas história de amor.
A um abrir de baús
e de lembranças violentas.
Porém nada dizia.
No deserto de Itabira
as coisas voltam a existir,
irrespiráveis e súbitas.
O mercado de desejos
expõe seus tristes tesouros;
Me o anseio de fugir;
mulheres nus; remorso.
Porém nada dizia.
Pisando livros e cartas,
viajamos na família.
Casamentos; hipotecas;
os primos tuberculosos;
a tia louca; minha avó
traída com as escravas
rangendo sedas na alcova.
Porém nada dizia.
Que cruel, obscuro instinto
movia sua mão pálida
sutilmente nos empurrando
pelo tempo e pelos lugares
defendidos?
Olhei-o nos olhos brancos.
Gritei-lhe:
Fala! Minha voz
vibrou no ar um momento
bateu nas pedras. A sombra
prosseguia devagar
aquela viagem patética
através do reino perdido.
Porém nada dizia.
Vi mágoa, incompreensão
e mais de uma velha revolta
a dividir-nos no escuro.
A mão que eu não quis beijar,
o prato que me negaram,
recusa em pedir perdão.
Orgulho. Terror noturno.
Porém nada dizia.
Fala fala fala fala
Puxava pelo casaco
que se desfazia em barro.
Pelas mãos, pelas botinas
prendia a sombra severa
e a sombra se desprendia
sem fuga nem reação.
Porém ficava calada.
E eram distintos silêncios
que se entranhavam no seu.
Era meu avô surdo
querendo escutar as aves
pintadas no céu da Igreja;
a minha falta de amigos;
a sua falta de beijos;
eram nossas difíceis vidas
e uma grande separação
na pequena área do quarto.
A pequena área da vida
me aperta contra seu vulto,
e nesse abraço diáfano
é como se eu me queimasse
todo, de pungente amor.
Só hoje nos conhecermos?
Óculos, memórias, retratos
fluem no rio do sangue.
As águas já não permitem
distinguir seu rosto longe,
para lá de setenta anos...
Senti que me perdoava
Porém nada dizia.
As águas cobrem o bigode,
a família, Itabira, tudo.[xxii]

Notas:

[i] Psicóloga, mestranda pelo departamento de Psicologia Experimental do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Bolsista da CAPES.
[ii] HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, p. 2757.
[iii] FIGUEIREDO, Luís Cláudio. Psicanálise: elementos para a clínica ocntemporânea. São Paulo: Escuta, 2003, p. 16 e 17.
[iv]Id., ibid., p. 17.
[v] Curiosamente a noção de trauma para a psicanálise é de grande serventia na clínica de pacientes, casos, ou situações limites (borderline). Cf. FIGUEIREDO, Luís Cláudio. Opus Cit., p. 78.
[vi] Impossível não lembrarmos de W. Benjamin, quando diz que o narrador permite que o ouvinte complete a história ao seu próprio modo, dado o relato oral e ausência de um final, de uma síntese, mas a presença de um encaminhamento da história, uma direção. BENJAMIN, Walter. “O narrador”: considerações sobre a obra de Nicolai Leskov. Obras Escolhidas vol. I: magia e técnica , arte e política, São Paulo: Brasiliense, ?
[vii] Felix, Nelson. Nelson Felix/ textos Glória Ferreira, Sônia Salztein e Nelson Brissac; versão para o inglês, Steve Berg. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2001, p. 16.
[viii] Merleau-Ponty, Maurice. Fenomenologia da Percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1994, 551.
[ix] Id, ibid.
[x]Id., ibid., p. 552.
[xi]Id., ibid., p. 553.
[xii]Id., ibid., p. 554.
[xiii]Id., ibid., p. 555.
[xiv]Id., ibid.
[xv] KARR, Edward Hallet. Que é história? Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.
[xvi] Em 18 Brumário de Luís Bonaparte, Marx conta a história dos acontecimentos da Primavera dos povos em 1848, relembrando que a evocação do passado dos personagens que animaram a Revolução Francesa funciona não como forma de glorificar a nova luta, e “ encontrar novamente o espírito de revolução”, mas sim de “fazer o seu espectro caminhar outra vez.” MARX, Karl. O 18 Brumário e Cartas a Kugelmann. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1969, p. 19.
[xvii]Id., ibid., p. 557.
[xviii]Id., ibid., p. 558.
[xix]Id., ibid., p. 562.
[xx]Id., ibid., p. 563.
[xxi] Idem, ibidem, p. 571.

[xxii] ANDRADE, Carlos Drummond de. “Antologia Poética”. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1962, p. 66.

Revista Digital Art& - ISSN 1806-2962 - Ano II - Número 02 - Outubro de 2004 - Webmaster - Todos os Direitos Reservados

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