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Percepção, Arte e Educação
Autora: Anna Rita Ferreira de Araújo[1] - annaritaaraujo@yahoo.com.br

Resumo:

Este artigo é parte do corpo da Dissertação “Encruzilhadas o olhar no ensino da arte: um estudo de percepções iniciais da imagem artística”. A proposta é elaborar uma reflexão para o(a) professor(a) de arte onde são abordadas algumas questões relativas à percepção, apreciação, leitura visual e suas relações com o ensino de arte, o professor e o aluno. O artigo parte inicialmente da discussão entre as concepções de Kant, Osborne e Merleau-Ponty sobre a apreciação estética. Destaca a desmistificação do conceito do “gênio” e da experiência estética como um privilégio dos “cultos”. Segue ressaltando que, através do crescente e eficiente trabalho de arte-educação dos Centros Culturais e Museus de São Paulo (que ecoa pelo Brasil), o acesso e a compreensão das obras de arte por parte de crianças, jovens e adultos vêm quebrando as enormes barreiras sociais, políticas, culturais e financeiras entre o conhecimento da arte, a apreciação estética e as pessoas em nosso país. À frente deste trabalho estão arte-educadores(as) de grande valor e persistência. Por outro lado, os desafios e obstáculos são enormes e o artigo se propõe a levantar alguns e, por sua vez, propor caminhos alternativos que se fundamentam na compreensão da existência através da concepção fenomenológica.

Palavras-chave: Apreciação, Experiência estética, Percepção visual, Arte-educação e Fenomenologia.

Abstract:

This work is part of “Encruzilhadas do olhar no ensino da arte: um estudo de percepções iniciais da imagem artística”. It proposes a reflection to the arts teacher at perception, appreciation, visual reading and its relation to the arts teaching, the teachers and students. The work starts from the discussion between the conception of Kant, Osborne and Merleau-Ponty about appreciation, shows the demystification of the concept of “genius” and the esthetic experience as a privilege of the” intellectuals”. Through the efficient work of art education of the cultural centers and museums of São Paulo (that echoes through Brazil), the access and comprehension of the works of art from children, young people and adults broke the social, political, cultural and financial barriers between the knowledge of art appreciation and the people in our country. The ones in charge of this work are the art educators of the great value and persistence. On the other hand the obstacles re enormous and this work points out some of them and shows pathways that are based in the understanding of the existence into the phenomenological conception.

Key words: Appreciation, Esthetic experience, Visual perception, Art education, and phenomenology.

A percepção constitui-se num fundamento da prática e reflexão artística. O artista materializa seu trabalho, seja em cores, formas, som ou movimento, justamente porque exercita uma percepção acerca do universo. Estou falando em universo, no sentido de abarcar não só os objetos do mundo, mas todo e qualquer aspecto de natureza física e espiritual.

Antônio Vivaldi, ao compor “As quatro estações”, não partiu apenas da percepção dos aspectos físicos, como clima, cores, formas e sons da natureza. Ele impregnou, na sua música, as impressões, comportamentos e sentimentos dos seres vivos (incluindo a si próprio) que habitam esta natureza. Pablo Picasso, ao retratar a “Mulher chorando”, revela o corpo e a alma desta mulher que chora. A sua percepção se entranha na força das mãos, nas cores do rosto, na textura do lenço, no volume das lágrimas, na profundidade do olhar e na intensidade da dor. Ele nos surpreende com tamanha eloqüência. No ato de percebermos o quadro, vemos, além da mulher que chora e dos aspectos formais de composição, vemos ali os conceitos de choro, de dor, de mulher e de cubismo.

Esta relação ser-percepção-obra é indissociável no processo de criação e realização de um trabalho artístico, como também o é em relação ao fruidor. Uma obra nos revela sentimentos e pensamentos na medida em que a percepção nos permite vivenciar e relacionar as experiências estéticas com as experiências do cotidiano. Ela nos ancora ao mundo e à obra. Podemos então, dizer que uma obra artística sensorial, visual ou musical nos emociona, e ou nos é nostálgica, e ou ativa nossa mente, e ou nos revela algo inédito em nossa experiência.

Mas, seriam todas estas experiências passíveis de chamarmos de experiência estética?

Ou mesmo, seria um primeiro olhar, um primeiro instante de relação sujeito-obra, uma experiência estética?[1]

Para refletirmos sobre estas questões, farei um breve relato.

Existe uma música que desde a sua primeira audição, acontecida na minha infância, me toca a sensibilidade. É a música “Canon” de Albinoni. Sempre que a ouço, me sinto emocionada, é como se as ondas sonoras percorressem meu corpo, se entranhassem em minhas vísceras e preenchessem minha alma numa sensação de êxtase. Por vezes, as lágrimas transbordam. Foram inúmeros os momentos em que ouvi tal música, seja por reprodução fonográfica ou ao vivo. Seriam estas reações sensíveis e passionais experiências estéticas? Poucos anos atrás, em uma destas audições propiciadas por CD, vivi uma experiência inédita, até então.

Ao cerrar os olhos, me vi transportada para Roma dentro da Igreja de Santa Maria della Vitória. A exuberância barroca do conjunto arquitetônico, escultórico e pictórico de tal igreja da autoria de Bernini, inundou minha mente. É claro que estas imagens emergiram com tamanho realismo porque fisicamente já estive lá, em agosto de 1995. À medida que as ondas sonoras percorriam meu corpo, meus olhos percorriam o interior da igreja. Eles tateavam as paredes e colunas de mármore com filetes de ouro em direção ao afresco do teto que se fundia às paredes, como se o céu, em nuvens e anjos jubilosos, ali mesmo começasse. Um espetáculo ilusório de luzes, cores e formas representando o espaço infinito e intocável do Céu. À minha esquerda, em um nicho monumental, o conjunto escultórico de Santa Teresa e o anjo, uma visão que me arrebatava de corpo e alma. Santa Teresa de Ávila, uma das grandes santas da Contra-Reforma, contara que um anjo lhe trespassara o coração com uma seta de ouro flamejante: “A dor foi tão intensa que gritei; mas ao mesmo tempo, senti uma tão infinita doçura que desejei que a dor jamais acabasse. Não foi uma dor física, mas mental, embora afectasse também, de alguma maneira o corpo. Foi a mais doce carícia da alma por Deus.”(Janson,1989, pp.513-514)

Bernini em sua genialidade impregnou em cada batida de seu cinzel as palavras de Santa Tereza.  A esta altura, com meu corpo totalmente entregue à experiência, percebi, em cada som expresso pelos violinos, violas, baixos e contra-baixos, a sensualidade e a espiritualidade, a dinâmica e o contraponto do barroco: dor e êxtase, luz e trevas, vida e morte. Era como se estes sons percorressem as dobras em mármore das vestes da santa se revelando a mim. Cada frase sonora pronunciada pelos instrumentos des-velavam a fluidez tensa da leveza dramática do Barroco. Reconheci, naquele momento, teorias estéticas sobre o Barroco que há tempos vinha estudando para as aulas sobre luz da disciplina de desenho que, nesta época, ministrava. Visualizei as palavras de Wöfflin(1989):
 


O Barroco evita sistematicamente suscitar a impressão de que o quadro tenha sido composto para ser visto e de que possa ser totalmente apreendido pela visão... A verdadeira obscuridade é antiartística. Mas existe, paradoxalmente, uma clareza do obscuro. A arte continua a ser arte mesmo quando renuncia ao ideal da perfeita clareza objetiva. O séc. XVII encontrou uma beleza na obscuridade que dilui a consistência da forma. (1989, pp.217-218)

Nesta vivência, fui arrebatada e surpreendida como nunca tinha sido até então. Foram momentos que jamais esquecerei, tanto é que posso relatá-los depois de anos[2].

Este, podemos assim chamar, é o relato de uma experiência visível e vidente onde, ao conhecermos, nos reconhecemos. Esta idéia de um corpo que vê e assim penetra nos objetos do mundo guarda um conceito básico na teoria de Merleau-Ponty(In: 1984), apresentada no texto “O olho e o espírito” que é a idéia de “vidente” e “visível”. Sinteticamente: o visível é o corpo que olha o mundo e o vidente é o corpo que olha para si. O corpo é visível e vidente e ao se aproximar das coisas pelo olhar[3], o mundo se abre como conhecimento e “re-conhecimento”, como sentir e sentir-se.

Meu corpo é ao mesmo tempo vidente e visível. Ele, que olha todas as coisas, também pode olhar a si e reconhecer no que está vendo então o ‘outro lado’ do seu poder vidente. Ele se vê vidente, toca-se tateante, é visível e sensível por si mesmo. É um si, não por transparência, como o pensamento, que só pensa o que quer que seja assimilando-o, constituindo-o, transformando-o em pensamento - mas um si por confusão, por narcisismo, por inerência daquele que vê naquilo que ele vê, daquele que toca naquilo que ele toca, do senciente no sentido - , um si, portanto que é tomado entre  coisas, que tem uma face e um dorso, um passado e um futuro...
(1984, pp. 88-89).

Através do jogo de velamentos e desvelamentos de luzes, cores e sons, na vivência relatada, foi possível transitar da experiência sensível para uma experiência estética que se prolongou além do momento e criou uma inter-relação de vivências emocionais e racionais. Não penso aqui no sentido da estética de Kant, onde o prazer da apreciação advém da ação intensificada de nossas capacidades mentais e o prazer sensual, segundo sua Crítica do Juízo, não é constitutivo da apreciação estética. Estamos falando da experiência no sentido do corpo fenomenológico que é emoção e razão “presentificadas” na apreciação.  Osborne(1978) coloca que:

As obras de arte podem, nos seus melhores momentos, levar as faculdades perceptivas à plenitude sem saciedade e, por assim dizer, exigir cada vez maior vivacidade mental e inteligência para alcançá-las. Pode-se pensar que isto é, de qualquer maneira, uma parte importante do que se pretendeu dizer quando os filósofos e os críticos, falaram da qualidade “de enaltecer a vida” da apreciação da arte. Anos de estudo e experiência, e uma familiaridade crescente que se estenda pela metade da vida, podem contribuir para a plena apreciação de uma grande obra de arte: a experiência mesma está sempre acompanhada de um sentimento de elevada vitalidade; ficamos mais despertos, mais alertas do que habitualmente, as faculdades trabalham mais sob pressão, com mais eficácia e com maior liberdade do que em outras oportunidades, e o descobrimento de novas introvisões é seu constante galardão.
(1978, p.42)

O autor enfatiza neste trecho do livro “Apreciação da arte” a qualidade de “percipiência”[4] da apreciação, onde o nosso campo de atenção se estreita e o objeto estético nos mantém absortos e em estado de alerta mental. Diferentemente da concepção kantiana, Osborne não nega o sensual na ação apreciativa, mas coloca que “à medida que a apreciação amadurece e se torna apreensão mais rica e mais luminosa, o prazer sensual recua da parte da frente para o perímetro da percepção”(ibid., p.51). Este amadurecimento das qualidades apreciativas se dá à medida que o fruidor se envolve e se dedica qualitativamente à ação de apreciar a obra. Sem esta dedicação a relação obra-expectador não ultrapassará a condição de apreciação sensual e se esgotará rapidamente.

Sem desconsiderar a colocação de Osborne, mas na concepção que procuro trabalhar, não penso que as faculdades mentais devam suplantar as sensíveis para que haja uma apreciação estética. Concebo que a condição sensível e intelectual co-habitam o apreciar estético e não interessa hierarquizar importâncias. Acredito que quanto mais somos presentes, somos carne (na concepção de Merleau-Ponty[5]), mais intensa e verdadeira será a apreciação e mais “presentificada” ela estará em nossa existência. Não digo que não tenha havido verdade e apreciação estética nas vezes anteriores em que apenas me emocionava ao ouvir a música de Albinoni. O que houve foi uma variação de qualidade na apreciação. Talvez, se não houvesse um primeiro instante perceptivo grávido em significações, não seria possível, em segundos, terceiros ou seguintes momentos perceptivos, uma experiência tão intensa. E isto não dá garantias que num próximo momento aconteça algo mais intenso. Estes momentos são únicos e inéditos a cada experiência. São carregados das experiências (encruzilhadas) anteriores, mas são novos momentos.

Importante pensarmos que não somos nós que escolhemos a obra que nos arrebata e nem seria da obra a autoria desta escolha. É na encruzilhada sujeito-arte-mundo que o encontro estético significativo se dá. É no encontro com o outro que me encontro e, ao me encontrar, encontro o mundo. As imagens que me arrebataram no instante da fruição de Cannon, não surgiram do nada. Elas estavam lá, dentro do meu ser. Esquecidas ou não, naquele instante elas emergiram e naquele instante me descobri conhecedora de algo.

No entanto, esta situação de reconhecimento muitas vezes não se dá. É comum vivenciarmos situações onde estamos diante da arte e não acontece a encruzilhada sujeito-arte-mundo. Isto talvez ocorra justamente porque nos colocamos diante dela e não com ela. Existe uma grande diferença em “estar diante” e “estar com”. O “com” sugere uma reciprocidade. E quais seriam os momentos em que a experiência estética não ocorre?

Exemplificando, é comum vermos em museus pessoas passando ligeiramente o olhar pelas obras. Quando param e ficam mais atentas, normalmente, é diante de uma obra reconhecidamente famosa. Quem já teve a oportunidade de visitar o Musée du Louvre em Paris, com certeza viveu a situação de “rush em frente à Mona Lisa de Da Vinci. Exemplo brasileiro observa-se nas grandes filas nas salas especiais das Bienais de São Paulo, onde se encontram as obras mais “valiosas e renomadas”. Nestes casos, a dedicação do espectador se dá, via a curiosidade, e não devido ao prazer estético. Muito mais pela mística gerada pelos “famosos”. Vide o sucesso de publicações dedicadas a estes, indiferentemente de área de atuação.

Em museus tradicionais, onde predominam as obras puramente visuais, as pessoas também se detêm diante de algo que lhes surpreenda o olhar, que pode ser pela beleza, pelo apuro técnico ou mesmo pelo tema ou simbologia da obra. Em mostras modernas e contemporâneas, além do aspecto visual (que carrega as possibilidades da beleza, da feiúra, do escândalo, da denúncia, etc.), as obras ampliam o espectro de ação para os sentidos auditivos, táteis, olfativos e até gustativos. Estas qualidades sensoriais de algumas obras atraem a atenção do espectador que se entrega a elas como quem vai ao parque de diversões. Obras que possuem este aspecto lúdico, mesmo que apenas em aparência, são as preferidas e mais disputadas pelo público.  Seja pela mera curiosidade ou pelo sensório, as experiências vivenciadas por estas pessoas não constituem experiências estéticas de apreciação e ficam limitadas ao campo das sensações físicas. Não podemos, porém, aí negar uma experiência ou mesmo uma pré-experiência estética.

Neste ponto, poderíamos indagar o porquê das pessoas, em sua grande maioria, não serem capazes de transpor o campo das relações perceptivas do corpo físico para as possibilidades da apreciação estética do corpo reflexivo. Sobre isto, poderíamos elencar motivos de ordem social, cultural, econômica, educacional e pessoal entre outros.

As faculdades estéticas ou seu pleno cultivo em certo sentido não se integram na corrente da vida prática na sociedade organizada, e a inclinação para transformá-las em aptidões pode ser entorpecida por influências educacionais dos primeiros anos de vida, pelo ambiente familiar ou por um modo de vida rigidamente circunscrito pela preocupação com o utilitário
(ibd., p.10).

Nesta colocação, Osborne toca em pontos cruciais no que diz respeito ao modo de vida e valores de nossa sociedade ocidental que não preparam o indivíduo para as questões da arte, da cultura e principalmente da estética e focam seus interesses basicamente nos aspectos pragmáticos. Atualmente vivemos a era do entretenimento e consumo em detrimento da cultura e sua produção. Se pensarmos esta questão em relação ao nosso país, isto se torna mais evidente, mas este é um problema global. Basta fazermos um levantamento do enfoque da programação das televisões abertas e, em boa parte, das fechadas. A grande maioria das imagens veiculadas pela tv e pelos meios de comunicação é, basicamente, voltada para o entretenimento e o consumo.

As crianças de hoje estão aprendendo novos códigos visuais, mas, ao mesmo tempo, estão cercadas de imagens do cotidiano que criam visões virtuais de uma vida boa, baseada no consumo. Eles vão precisar aprender como determinar se esta mídia representa ou não a realidade, e se estão lhes dizendo a verdade.
(Efland, 1998)

Esta é uma questão muito séria, mas neste momento o que pretendemos destacar na colocação de Osborne é a palavra “aptidão”[6]. O autor dedica o primeiro capitulo do livro à apreciação como uma aptidão e, aptidões não são “dons”, são capacidades adquiridas e desenvolvidas.

A aptidão é um conceito de potencialidade. É uma qualidade fundada em pendores, ou é uma constelação de qualidades. É uma faculdade que uma pessoa tem sempre, mesmo quando não a revela em sua conduta atual, em qualquer momento dado. As aptidões tendem a atrofiar-se a menos que sejam exercitadas, embora algumas – como saber nadar, andar de bicicleta, ou falar uma língua – possam permanecer latentes ou sem uso durante longos períodos sem desaparecer totalmente. De um modo geral, uma vez adquirida uma aptidão pode ser recuperada, após um período sem uso, com mais rapidez e facilidade do que se tiver que ser adquirida do nada por alguém que nunca a cultivou.
(1978, p. 9)

Esta concepção altera em muito a visão sobre a arte e as possibilidades da sua compreensão e do seu fazer. Ela torna possível a acessibilidade à arte, por qualquer sujeito. Ainda é comum (em nosso tempo contemporâneo de arte tecnológica, conceitual e experimental) algumas pessoas entenderem os produtos da arte como resultado de ações de “gênios”. O filosofo Kant empregou este conceito às belas artes e afirmava que:

Embora um autor deva um produto ao seu gênio, não sabe como entraram em sua cabeça, as idéias necessárias para criá-lo, nem está em seu poder inventar outros semelhantes à vontade, ou metodicamente, e comunicá-los a outrem em preceitos que o colocariam em condições de criar produtos similares
(apud, Osborne, 1978, p. 18).

Chamava-lhe a “originalidade exemplar (meisterhafte originalität) dos dotes naturais do indivíduo”.  O “gênio” foi destruído há mais de um século pelos modernistas em suas pesquisas e manifestos, que revelam processos de criação da obra e aproximam o espectador das estruturas da linguagem artística. Mas ainda existem alguns que acreditam no artista como um ser especial que cria as coisas a partir de lâmpadas, que se acendem sobre suas cabeças ou mesmo raios que descem vertiginosamente sobre elas. Que seus produtos, devido à sua origem extraterrena, são inteligíveis aos “pobres mortais”. Esta metáfora pode parecer cômica ou até inapropriada, mas são alegorias, de um senso comum, presentes nas pessoas em geral e até em alguns artistas e educadores que, pelo seu envolvimento com a arte e o conhecimento, deveriam repudiar tal visão. Jamais, dela, comungar. “O Museu faz-nos os pintores tão misteriosos quanto polvos ou lagostas. Essas obras que nasceram no calor de uma vida, transforma-as em prodígio de um outro mundo.”(Merleau-Ponty, 1980, p.159)

A arte quando destrói seu pedestal de inteligibilidade, se revela obra de criação não genial, mas sim de processos sensíveis, culturais, técnicos, históricos, tecnológicos e cognitivos. Na medida em que estes processos de criação se constroem no projeto do artista, o fruidor, por sua vez, pode ter acesso a este universo que se revela, se desdobra, se esconde e se amplia na obra via a apreciação. Assim, a partir do entendimento da capacidade de apreciação estética não mais como um “Dom” e sim como aptidão ou potencial, como também, da percepção de uma nova realidade que pede um sujeito apto para as novas questões da arte, os paradigmas da educação vêm se alterando em nossa contemporaneidade.

Os professores, dentro desta concepção, devem passar da mera condição de facilitadores ou orientadores da expressão artística, para agentes e mediadores do processo de aprendizagem da linguagem da arte e das vivências estéticas. Além do fazer, o indivíduo deve ser preparado para ler, compreender, refletir e criticar a arte em seus conteúdos, produtos e história. Esta possibilidade, além de desenvolver uma pessoa mais hábil e apta dentro deste mundo contemporâneo (que exige competências no campo da criatividade, crítica e sensibilidade), amplia os possíveis momentos de encruzilhadas sujeito-arte-mundo. “A arte contemporânea exige e convoca não somente as pessoas, mas os corpos em suas inteiridades, complexidades e sociabilidades” (Frange, 1998, p.8). Partindo deste novo olhar, por exemplo, vemos crescentemente a implantação dos serviços educativos em museus e fundações culturais. Tais serviços propiciam ao espectador formas de mediação entre ele e a obra. As mediações no processo de fruição auxiliam-no ultrapassar as fronteiras das percepções superficiais.

Vivenciando técnicas, estratégias e exercícios propostos pelos mecanismos de mediação, que vão muito além da informação, a pessoa se detém, se envolve e se dedica à apreciação obra. Nesta relação, vai desenvolvendo suas potencialidades cognitivas, sensíveis e estéticas. Para ilustrar o tema que esboço acima e avançarmos nesta discussão, cito parte da matéria publicada pela Folha de São Paulo, em 23 de julho de 2002, no Caderno “Ilustrada”: 

 

Artes Plásticas – Campeã de Audiência
Arte-educação faz o público aumentar e torna-se fator essencial para o sucesso das grandes exposições
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FABIO CYPRIANO DA REPORTAGEM LOCAL

Na semana passada 8.500 estudantes da rede municipal de ensino começaram a visitar a mostra "500 Anos de Arte Russa", em cartaz na Oca, no parque Ibirapuera, num convênio entre a associação BrasilConnects e a Prefeitura de São Paulo.

O número pode ser modesto, mas sinaliza um fator comum a todas as grandes mostras em cartaz nos últimos anos na capital paulista: a visita expressiva de estudantes como fator para inflacionar os números finais da visitação. "Se a década passada foi a época dos curadores, agora é a vez dos arte-educadores", diz o curador Ivo Mesquita.

Eles são os responsáveis pela organização de visitas em grupos, de estudantes ou turmas específicas. O Brasil tem tradição na área. Desde a 8ª Bienal de São Paulo, de 1965, há registro de monitores acompanhando visitantes. Esse serviço acabou se tornando um importante centro de formação de críticos, curadores e até mesmo artistas.

No entanto, a participação do arte-educador como elemento catalisador de público teve início em 2000, quando dos mais de 1,8 milhão de visitantes da Mostra do Redescobrimento, cerca de 30%, ou seja, 600 mil estudantes, participaram do evento. O fenômeno ampliou-se na 25ª Bienal de São Paulo, encerrada em maio passado, quando o desempenho foi superado: dos 668 mil visitantes, mais da metade (350 mil), entrou via arte-educação.

Por trás desses números, está a arte-educadora Mirian Celeste Martins, uma versão paulistana do flautista de Hamelin, só que em vez de ratos, são alunos que ela agrega, utilizando não o instrumento de sopro, mas máquinas de fax e a internet.

Foi com tais ferramentas que, no início deste ano, ela conseguiu programar, em apenas duas semanas, a visita-recorde dos estudantes à Bienal. "Mandei alguns e-mails e faxes e o retorno foi muito rápido, a bienal é o único evento que tem continuidade e a mídia ajuda a criar grande expectativa", afirma.

Antes, ela já havia coordenado a área de arte-educação da Mostra do Redescobrimento (2000), "50 Anos de Televisão", "Parade" e "Bienal, 50 Anos" (2001). Todas com grande sucesso de público.

Segundo Martins, do ponto de vista conceitual, as visitas devem ser organizadas com dois fundamentos: o de mediação, segundo o qual "o objetivo é provocar encontros estéticos e não apenas fornecer informações"; o segundo é o de rizoma: "tudo está conectado, e os próprios alunos devem estar capacitados a realizar essas conexões".

Do ponto de vista geral, "não pensamos na visita dos alunos como uma excursão, mas sim como uma expedição na qual eles estejam envolvidos", diz a arte-educadora à Folha, em uma sala do Espaço Pedagógico, no Brooklyn, instituição para formação de educadores, na qual presta assessoria.

Para organizar as visitas, ela busca atingir três grupos específicos: monitores, professores e os estudantes, fornecendo material didático a todos eles. "O mais adequado é que sempre que um aluno entre numa mostra, ele já tenha discutido o tema com o professor, que por sua vez já recebeu um treinamento com monitores", afirma Martins.

Nem sempre tem sido assim. Na última bienal, por exemplo, "não houve material produzido para atender a demanda tão grande", segundo a pedagoga. Com isso, "comprometeu-se" o valor da visita. "A memória de uma exposição continua na escola por meio da arte-educação. Se não há material de apoio, perde-se em qualidade", afirma.

O acesso à última bienal foi organizado em dois segmentos: o de escolas particulares, atendido por 94 monitores, e o projeto Jovem Protagonista, voltado a 200 mil estudantes da rede estadual de ensino. Estes assistiam a apenas a um vídeo de 20 minutos com questões sobre o evento, que era apresentado logo na entrada. "Não é a maneira mais adequada, mas foi a única possível para tal demanda", diz Martins.

Foi na própria bienal, aliás, que ela iniciou sua vinculação à arte. Martins foi monitora da 10ª Bienal, em 1969. Depois formou-se em artes plásticas, e doutorou-se em arte-educação na Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo. Atualmente, ela é professora no Instituto de Artes da Unesp e assessora a ação educativa no Santos Cultural.

O seu trabalho com grandes levas de estudantes teve início com a Mostra do Redescobrimento. "Foi a primeira experiência, coordenei um grupo de 250 monitores, produzimos um material de apoio de qualidade e nas itinerâncias tivemos muito sucesso", afirma (veja os totais de público no quadro abaixo). Com os altos orçamentos que atualmente são dedicados às grandes mostras – a bienal saiu por R$ 14 milhões, por exemplo-, Martins defende que uma parte desses valores seja dedicada à arte-educação: "se existe um investimento ínfimo, o retorno é imenso; é importante que produtores culturais levem mais a sério essa área".

Apesar de ter trabalhado até agora apenas com grandes exposições, Martins considera que são os museus os responsáveis mais diretos na formação de público. "Não quero deixar de lado os museus. Muitas vezes eles preparam visitas apenas para mostras temporárias, mas é preciso valorizar os acervos, e são poucas as instituições que têm essa preocupação".

Nem todos os especialistas da área consideram que esses números expressivos
de visitações representem um bom aproveitamento dos estudantes nas exposições (leia texto abaixo). Mesmo assim, Martins acredita que a visita sempre vale a pena: "sempre há uma contaminação, mesmo que para alguns, o passeio ou a paquera sejam o fato mais importante no evento. É como um vírus, alguém sempre está sujeito a recebê-lo. Além do mais, mesmo em sala de aula, o rendimento entre os alunos nunca é o mesmo".

Boa visitação pode ser "faca de dois gumes"

DA REPORTAGEM LOCAL

Segundo a diretora do Museu Lasar Segall, Denise Grinspum, a grande participação de estudantes nas exposições "é uma faca de dois gumes". "Há pesquisas que mostram que essas visitas podem ser traumáticas. Às vezes, os estudantes lembram-se do trajeto do ônibus, quem sentou-se ao seu lado, o que comeu, mas não se recordam da exposição", afirma a diretora. No entanto, Grinspun também acredita que há um lado positivo e cita sua própria história como exemplo: "foi numa dessas excursões que visitei o Masp [Museu de Arte de São Paulo" e vi uma obra do [Rubens" Gerchman; foi uma
porta para mim", recorda-se.

Grinspum é um dos mais bem-sucedidos casos de arte-educadora. Durante 17 anos ela coordenou a área educativa do museu Lasar Segall. No início deste ano, ela assumiu a direção da instituição, substituindo Marcelo Araujo, que tornou-se diretor da Pinacoteca do Estado.

"Aqui no museu realizamos um contraponto às grandes mostras, buscando uma atitude exemplar baseada em três pontos: visitas e material de qualidade, além de cursos de capacitação", afirma.
 

 No mês passado, ela inaugurou um novo serviço de educação aos visitantes do museu. Palmtops são entregues ao público, que ao visitar a exposição pode apontar para as telas da exposição "Lasar Segall: Síntese de um Percurso" e receber informações contextualizadas sobre as obras.

O Lasar Segall e o Museu de Arte Contemporânea (MAC) da USP são as instituições que, de forma contínua, há mais tempo trabalham com arte-educação.

Já a arte-educadora e professora da USP Ana Mae Barbosa acredita que há uma contradição quando organizadores de exposições contam com as escolas para aumentar o público de seus eventos: "há uma enorme distância entre a organização das mostras e os setores de arte-educação. As publicações voltadas aos estudantes são, em geral, as menos bonitas e não há uma
integração com a produção das mostras".

Para Barbosa, a arte-educação deve ser encarada como mediação cultural. "Por isso, os curadores deveriam trabalhar em conjunto com os arte-educadores". Mesmo assim, ela afirma que "todo esforço para facilitar a compreensão é válido; o importante é que haja continuidade". 

Fundamental, diz Barbosa, "é que sempre o professor tenha uma preparação e receba material para trabalhar na escola; apenas após esse passo é que os alunos devem ser levados às exposições". (cont.)
 

Fonte: Fabio Cypriano. Caderno Ilustrada, jornal Folha de São Paulo, 23/07/2002, p. E6.

O registro desta reportagem me traz aspectos muito significativos para pensar. Primeiramente o crescimento da importância dada aos serviços educativos em espaços dedicados à arte. Estas ações transformam a visita em experiências de fruição, ou seja, aproximam e estabelecem relações significativas entre sujeito-obra. Despertam o interesse das pessoas pelas mostras de artes visuais, que passam a vê-las como formas estimulantes de vivenciar e conhecer arte. “Dever-se-ia ir ao Museu como os pintores, na sóbria alegria do trabalho, e não como é de costume, com uma reverência cujo tom é meio forçado”(Merleau-Ponty, 1980, p158-159). Ir a uma exposição deixou de ser algo enfadonho e intelectualizado se tornando algo divertido e agradável. Um bom passeio de final-de-semana. Nestas mostras, devido ao trabalho educativo, as pessoas exercitam muito mais suas capacidades intelectuais e sensíveis do que anteriormente, mas isto não se torna enfadonho e sim agradável, justamente porque a mediação educativa consegue construir “pontes sensíveis” entre os espectadores e as obras. Há poucos anos atrás, as mostras de artes visuais ficavam restritas ao público ligado às artes, à cultura e a uma elite intelectualizada. Atualmente, além destes, vemos as grandes mostras e museus como um espaço democrático onde grande parte da população tem acesso e, principalmente, se sente integrada a estes.

Mas isso se tornou possível em função do trabalho árduo, sério e competente de arte-educadoras(es) de grande valor e conhecimento dos processos de educação através da arte, como as que vemos nesta reportagem. Educadoras(es) que vislumbram a importância das encruzilhadas. Por outro lado, elas mesmas alertam para as limitações das ações educativas em museus e mostras, e ressalvam a importância do trabalho das professoras(es) de arte nas escolas para um bom aproveitamento do trabalho feito nos museus. Ou seja, o aluno que chega ao museu com um trabalho prévio em sala de aula e com vivências anteriores, tem um expressivo ganho qualitativo na fruição das obras.

Aqui, esbarramos num ponto muito sério, que é o trabalho de artes desenvolvido nas escolas. Creio que, neste artigo, não preciso explicitar os problemas e desencontros do ensino de arte nas escolas brasileiras, pois tenho a certeza que cada professor de arte que ler, o saberá por experiência própria.

Infelizmente, a realidade do ensino de arte brasileiro está a milhas de distância do trabalho educativo desenvolvido em mostras e museus, como os citados na reportagem. Tanto conceitualmente como fisicamente.  Quantas são as cidades brasileiras que possuem museus de arte e mostras com qualidade artística que se aproximem do que temos na cidade de São Paulo? E, dentre os museus de arte e fundações culturais, pelo Brasil, quantos possuem um serviço educativo como estes? Só estas questões já dariam uma boa pesquisa a ser realizada.

Trabalhos como os desenvolvidos pela Fundação Bienal, MAC, Lasar Segal e outros, são ícones “quase” inatingíveis pela grande maioria das instituições educacionais e culturais brasileiras. São, porém, fundamentais para mostrar à sociedade o papel da arte-educação na construção da cidadania, da democratização da arte, da cultura e, principalmente, no desenvolvimento de indivíduos sensíveis e mais reflexivos. Um bom e raro exemplo foi o trabalho educativo realizado pela arte-educadora Maria Christina Rizzi, na exposição Labirinto da Moda[7], montada em São Paulo, Santos, Bauru, São Carlos (SP) e Salvador (BA). Um projeto de mediação educativa de grande qualidade, que teve a oportunidade de ir para diferentes cidades e regiões.

Aos poucos, estas ações estão transformando a concepção da sociedade sobre a arte e a cultura e isso é quase uma revolução. Minha esperança é que essa revolução atinja os pontos mais distantes e carentes do país. Não dá para descrever a felicidade que sinto, ao ver exposições de arte lotadas de estudantes de escolas públicas e famílias, pais com suas crianças, vivenciando a arte com os olhos brilhando, sorriso nos lábios e questionamentos em suas almas.  Este é um lado da moeda.

Mas, do outro, está a tristeza em ver o descuido e a desinformação que ainda imperam em grande parte das salas de arte por este país. Professores, escolas e políticas educacionais que não dão, não querem ou não conseguem dar, devido às limitações de vivências e concepções estéticas, valor a arte e a cultura. Assim, se restringem às práticas artísticas desconectadas de significações e vivencias qualitativas/quantitativas. Impondo, dessa forma, limitações às comunidades. Não pretendo discutir os motivos pelos quais nos encontramos em tal situação, que são históricos, políticos, culturais e conjunturais. Contudo, também deixo o alerta para o professor de arte pensar e procurar conhecer os motivos. Mas também é certo que vem surgindo, nos mais variados cantos do Brasil, experiências sérias e de qualidade no campo da arte e que precisam ser ressaltadas, terem maior visibilidade e apoio.

Um outro aspecto sobre a educação do olhar é o acesso às teorias que a fundamentam. Atualmente, encontramos nesta área importantes trabalhos publicados por arte-educadores e arte-educadoras brasileiros(as). O professor de arte deve sempre buscar estas leituras e não ficar preso aos modelos e receitas facilmente encontrados nas publicações direcionadas para “facilitar a vida do professor”. Tais publicações acabam comprometendo todo o processo de ensino-aprendizagem em arte e, em específico, da educação do olhar. Infelizmente, em geral os professores não têm acesso aos livros de arte-educação que trazem em seu conteúdo, não as receitas, mas sim as reflexões sobre o ensino de arte. Não temos no Brasil uma bibliografia extensa como gostaríamos, mas ela é de boa qualidade e basicamente produzida por nossos pesquisadores e pesquisadoras. Muitas obras de qualidade ainda estão nas bibliotecas de Universidades (em forma de Dissertações de Mestrado e Teses de Doutorado) e não encontram, por parte das instituições governamentais e privadas, incentivos para sua publicação. Mesmo na reportagem, Ana Mae Barbosa critica a menor importância dada, nas grandes mostras, ao material impresso relativo ao serviço educativo. Outro problema grave se torna a tradução e a publicação de títulos estrangeiros.

Praticamente toda a base teórica da Proposta triangular e dos PCNs não se encontra traduzida para o português. Existem professores que falam de “Proposta triangular”, por exemplo, e não têm a menor idéia de onde isso surgiu. Os livros de autores (estrangeiros) contemporâneos da arte/educação como Feldman, Efland, Parsosns, Housen, Eisner, Ott e outros, fundamentalmente importantes para a compreensão do trabalho educacional de leitura de imagens de arte (tanto em escolas quanto em espaços museológicos, sociais e culturais) estão praticamente inacessíveis aos nossos arte-educadores e arte-educadoras. Tem-se parcialmente a leitura destes através do olhar de educadores(as) brasileiros(as), que desenvolvem pesquisa em arte/educação. E é graças ao trabalho destes bravos e bravas pesquisadores(as) que alguns professores(as) podem conhecer propostas de leitura de imagens como a de Feldman, O “image Wacthing” (observando imagens) de Ott, as pesquisas de Abgail Housen e M. Parsons sobre o desenvolvimento de compreensão de imagens e outros que são, em sua estrutura, as bases que norteiam os trabalhos desenvolvidos pelos serviços educativos citados na reportagem. Contudo, ainda desconhecidos da grande maioria dos arte-educadores e arte-educadoras brasileiros(as). Por exemplo, o livro de Parsons “A compreensão da Arte”, um dos únicos traduzidos para a língua portuguesa deste grupo de autores, foi editado em Portugal e para consegui-lo ainda é necessário importar ou pagar um preço elevado nas livrarias dos grandes centros urbanos.

O acesso aos livros de qualidade sobre ensino de arte se constitui quase num abismo entre a produção escrita das universidades (nacionais e estrangeiras) e os professores e professoras do ensino infantil, fundamental e médio.  Esta é uma questão para refletirmos em conjunto. A democratização do conhecimento científico em ensino de arte ainda se constitui em uma utopia e cabe a nós, educadores(as) e pesquisadores(as), pensarmos e buscarmos os meios de transformação desta realidade.

Entretanto, também observamos em uma parcela da realidade, nas escolas brasileiras e entre professores(as) de arte, belíssimos exemplos de superação prática da limitação de acesso ao conhecimento acadêmico na área. Afinal, nem tudo é abismo e pontes virtuais também podem ser construídas. Como participante de várias comunidades virtuais e dentre elas o Arte-Educar[8], onde temos o contato com mais de 200 professores de arte de todo o país, vejo nos depoimentos inúmeras ações bem sucedidas. O Arte-Educar, que de uma lista de discussão passou a ser uma “comunidade web-based, com um website de apoio, a partir do qual são oferecidos diversos serviços de apoio ao aperfeiçoamento profissional: biblioteca, webmail, fórum, dicas e projetos, cursos de atualização profissional, além da lista de discussão em si”(ARAÚJO, et. al., 2002), se configura num espaço de troca de experiências. A lista se tornou uma ferramenta e um espaço para professores refletirem sobre nosso multiculturalismo e encontrarem, em suas realidades culturais e locais, possíveis meios de levar seus alunos a vivenciarem a arte e aprenderem sobre ela de forma positiva e significativa, mesmo estando longe de centros culturais de excelência, museus e livros de qualidade. Hamlyn (apud, ARAÚJO, e.t al, idem) coloca que “o aprendizado intercultural funciona melhor quando experiências, pessoas e os sentimentos são compartilhados.”

Estes(as) professores(as) que, infelizmente, ainda são uma pequena parcela dentro do universo do ensino de arte no Brasil, estão buscando dentro de suas próprias vivências e da sua comunidade as saídas dignas para exercerem o ofício de educar. Criando ações arte-educadoras que se aproximam das concepções contemporâneas da arte/educação, que inter-relacionam o fazer artístico, a leitura de imagens, os contextos e as culturas. Independente de conhecerem ou não as teorias sobre o ensino de arte, eles(as) estão vivenciando a arte e a educação com seus alunos e trocando essas experiências com outros colegas, através da rede mundial de computadores. Mas o que também constato (considero isso fundamental) é que ao entrarem de “corpo” neste fazer, estes educadores(as) estão cada vez mais buscando o conhecimento em arte, que está além de sua experiência prática e sensível. Estão buscando os fundamentos teóricos de sua prática pelo meio que lhes é possível e um destes meios é a internet. Ela vem democratizando e tornando possível o acesso à informação e à formação. E este é o espírito de um educador: um ser em eterna busca de fundamentos e aprimoramento de sua “práxis”, ou seja, um pesquisador. Não o pesquisador de gabinete, mas o pesquisador de campo que se vale do mundo real e todas as suas possibilidades.

Um(a) educador(a) jamais deve se esquecer de sua origem e de sua história, pois é nelas que ele vai encontrar o solo fecundo do conhecimento vivido. Da mesma maneira, nunca fechar os olhos para seus alunos e alunas e aquilo que eles trazem enquanto experiência-conhecimento. É preciso conceber-se e conceber o outro como um ser singular, sensível, histórico, político, cultural e social. Mas o(a) educador(a), em momento algum, deve se contentar e se justificar em si próprio e em sua prática. É preciso conhecer e compreender os fundamentos conceituais e históricos do seu objeto de trabalho. Este movimento primordial, de conhecimento e reconhecimento de si (professor), do outro (alunos e alunas) e do mundo (conceitos e história), levam à realização do que defendo como um significativo processo de ensino-aprendizagem. Uma possibilidade de superação dos sérios problemas e obstáculos que encontramos em nossa Educação. Temos que ficar atentos e aprender a dar valor às experiências/vivencias artísticas e estéticas do cotidiano. Compreender que ali também existe um conhecimento sensível, artístico e porque não dizer estético. Partir desse ponto para se alcançar níveis mais elevados de ensino-aprendizagem. Buscar o conhecimento instituído sem nunca se esquecer do conhecimento sensível e vice-versa...

Falando sobre o professor(a) de arte, este(a) deve compreender que o seu objeto de fundamentação é a própria Arte. É ela que ele deve procurar compreender em seus conceitos, produção, significação e história, sem nunca negar para si e para o outro sua dimensão de encantamento.

O que defendo é que o professor(a) de arte deve partir da tríade “eu-outro-mundo” (Ponty, 1996), no caso, pensarmos como professor-alunos-arte, para construir sua prática. No que concerne à arte, deve compreendê-la como resultado da vivência humana de processos históricos, culturais, sensíveis e intelectuais. Assim, pensar o Ensino de Arte como sendo uma inter-relação dos processos realizados na vivência professor-aluno-arte.

Quando esta inter-relação não está “presentificada” na sala de aula, não há arte, nem educadores e muito menos aprendizes. Não importando o método, a proposta, a estratégia e muito menos o conteúdo. Será um ensino estéril e sem significação. Por isso, vemos os equívocos das aplicações de teorias de ensino de arte em toda à parte. Excelentes propostas e estudos sendo destruídos e distorcidos por ações vazias de inter-subjetividades, da  ausência da tríade professor-aluno-arte. Como diz Ana Mãe Barbosa(2001), apenas um “recorte e colagem” de propostas e receitas metodológicas.

O caminho para se desenvolver uma significativa prática pedagógica em arte e que propicie o aprendizado estético (o aprendizado do olhar) é longo e sem fim, não há o ponto de chegada, apenas os de partida. Pensando num destes pontos de partida é que escrevi este artigo. Minha intenção é chamar a atenção para aquilo que a educação e o educador(a) muitas vezes se esquecem, ou seja, o instante inicial onde olhares se cruzam num “entre” tempo e espaço vivencial.

Não importa se aqui estamos falando de professor(a)-alunos(as), alunos(as)-arte, arte-professor(a). São todos estes e muitos outros que se multiplicam nesta encruzilhada, onde subjetividades se cruzam e dali para frente, não mais serão as mesmas.

A minha experiência do outro é sempre, uma experiência com o outro, para melhor ou para pior. Eu não estou, simplesmente, jogando palavras ao vento pelas quais o outro pode, de alguma maneira, extrair um significado. Enquanto eu falo, escrevo ou gesticulo, eu não escolho minhas palavras ou movimentos separadamente um do outro, uma vez que somos a mesma carne. (...). Minhas palavras são sempre interação imediata; minha expressão nunca é somente minha.
(Davis, 1991, p.35)

Ter esta percepção ata o meu destino, pois a partir do momento em que optei pelo ofício de professora-artista-pesquisadora, jamais poderei desprezar os movimentos provocados em mim, no outro e no mundo, pelo meu olhar.

Bibliografia

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________,SAMPAIO RALHA, Jurema L. F., SANTOS, Itamar A L. e SCHULTZE, Ana Maria. A comunidade virtual na internet como ferramenta na transformação da ação educacional em artes: Projeto Arte-educar. Anais do Congresso Educação e Transformação Social. Santos: SESC, 2002.
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WOFFLINN, Heinrich. Conceitos Fundamentais da História da Arte. São Paulo: Perspectiva, 1989.

Notas:

[1]Professora da Faculdade de Educação – UFG. Goiânia/GO.

[1] Busquei respostas para essa pergunta nos últimos oito anos. As reflexões e conclusões, até este momento, estão na dissertação “Encruzilhadas o olhar no ensino da arte: um estudo de percepções iniciais da imagem artística”, que defendi em abril de 2003 na Escola de Comunicações e Artes da USP e que, ora, apresento uma pequena parte neste artigo.

[2]Na verdade, logo que isto aconteceu, eu fiz o registro escrito e agora pude resgatá-lo com a riqueza de detalhes.
[3] Podemos estender este conceito aos outros sentidos humanos.
[4] Palavra empregada pelo tradutor Santos em, OSBORNE,1978,  p.22.
[5]O autor, em “O visível e o invisível”,  fala que existe a carne do mundo e a carne do corpo e que estas se imbricam numa relação de percepção mútua. “A carne é fenômeno de espelho e o espelho é extensão da minha relação com meu corpo” (Merleau-Ponty, 2000, p.231). É a possibilidade de ambos (corpo e mundo) terem uma carne que os faz reconhecíveis um para o outro, que nos faz capazes de, percebendo o mundo, refletirmos sobre este e sobre nós mesmos.
[6] Palavra empregada pelo tradutor.
[7] O trabalho está relatado e discutido na Tese de Doutorado de Rizzi, Olho vivo: arte-educação na exposição. Labirinto da moda: uma aventura infantil. São Paulo : Universidade de São Paulo, 1999.
[8] Lista de discussão sobre arte-educação situada no www.yahoogrupos.com.br/arte-educar.

 

Revista Digital Art& - ISSN 1806-2962 - Ano II - Número 02 - Outubro de 2004 - Webmaster - Todos os Direitos Reservados

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