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A Pertinência do Patrimônio Cultural Brasileiro por meio de Conteúdos Significativos no Ensino da Arte
Autor: Luciano Buchmann[1]lbuch@onda.com.br

Resumo:

Este texto apresenta questões referentes à construção do conhecimento por meio do ensino das artes visuais na escola, partindo da utilização do Patrimônio Cultural local como conteúdo significativo na apropriação deste patrimônio, visando a cidadania cultural e o respeito à diversidade cultural. Relata duas experiências relacionadas à questão, fundamentando-a no ensino da arte e na pedagogia crítico-social dos conteúdos.

Palavras-chave: Ensino da Arte; Educação patrimonial - Brasil; Ensino da Arte – Conteúdos significativos.

Abstract:

The text presents issues related to the construction of knowledge through art teaching at schools valuing local cultural heritage as meaningful content in the student’s apropriation of this heritage, aiming at cultural citizenship and respect towards cultural diversity. It describes two experiences related to this point, basing it on art teaching and critical-social pedagogy of contents.

Key-words: Art teaching ; Heritage education – Brazil; Art teaching - Meaningful contents.

Foi em uma tarde em que passeava pelo centro da cidade, com os passos parecendo dirigir-me, quando um menino contando com 10 anos possivelmente, aproximou-se. Depois da oferta das balas caríssimas que vendia, o menino disse:

— Eu conheço você! Você é aquele cara que levou a gente no museu!

urpresa. O passado tinha me encontrado. Sentei em uma lanchonete com o menino e com o refrigerante em uma das mãos, ele respondia a meu inquérito descrevendo com minúcias o que havia visto, obras, como era e onde fica o museu, quais as atividades artísticas que fizemos, o que ele gostou, o que achou chato ou feio. Meu interesse foi aumentando e ele respondia naturalmente. Sua última frase, não era resposta, foi voluntária, e transformou muito do que penso sobre o ensino da arte fazendo-me reavaliar tudo. Disse-me o menino sobre o museu:

— Eu vou sempre lá.


Contei essa história para falar de ensino da arte, das escolhas que a escola pode fazer tendo o patimônio, quer no Museu ou na cidade como parceiros. Pois o problema em que a área do ensino da arte vive e promove é grande.

São cinquenta minutos para fazer, conhecer e exprimir. Quem é capaz de tal proeza? Pensar nas muitas dificuldades da realidade do ensino da arte, paralisa qualquer iniciativa. Neste tempo curto, com mais de trinta crianças, em uma sala que precisa ser mantida em ordem, em silêncio e limpa, com a falta do material de apoio e até do material de produção, o que há para se fazer? O que se pode fazer? O que é possível ser ensinado e apreendido em arte? Para que ensinar e o que ensinar em arte nas escolas? Se no passado o professor de arte era um síndico do salão de festas, encarregado dos murais, da decoração e dos cartões comemorativos de datas nada importantes para crianças mas muito ao comércio, como o dia dos pais e das mães, hoje esta realidade deveria ter mudado. Mudou no papel.

A nova Lei de Diretrizes e Bases (LDB 9394/96) ergueu a arte ao estatuto de área de conhecimento, derrubou a dita polivalência na graduação, entendendo cada área artística com sua área de conhecimentos específicos, exigindo professores especificos para a dança, o teatro, a música e as artes visuais.A arte está ao lado das ciências e das línguas. Por enquanto, na escola pública, ela continua como era. Não há profissionais com formação, não há sala específica com possibilidade de atender às necessidades da disciplina, não há o material, quanto mais os professores com formação. A lista dos “não tem” prossegue, chegando drasticamente ao salário do professor que precisa dedicar-se a duas escolas, para defender a ração. Realmente o quadro é o de um cataclisma, falando das capitais sem considerar a realidade do interior do país, muito mais grave como é conhecimento de todos. Não há a possibilidade de aplicar, até este momento na maioria dos estados brasileiros a nova lei. A realidade do ensino da arte no país, ainda exige um Super- Artista - Professor. Artista por ele ter que criar do nada e se virar para dar conta das linguagens artísticas que não domina. Frágil, muito frágil. O que fazer?

Não se pode defender a formação aleijada do antigo professor de Educação Artística, a dita Polivalência. Foi um erro. Não há sujeito capaz de dominar tamanho conhecimento teórico e prático. Gênio universal foi chamado Leonardo da Vinci e nunca li que ele representasse ou dançasse. É necessária a luta pelo cumprimento da lei, pela manutenção da arte como área de conhecimento. E isto só ocorrerá com uma prática docente efetiva e reflexiva.

Tentando minorar este sofrimento por catalepsia, vale refletir sobre coisas apontadas no passado e de grande coerência: os conteúdos significativos. Este ponto foi muito recorrente na pedagogia nos anos 90. Um de seus defensores, José Carlos Libâneo, afirma que:

O qualificativo “dos conteúdos” é empregado para acentuar a função primordial da escola: a transmissão do saber e sua apropriação pelos alunos. O saber escolar é entendido como o conjunto dos conhecimentos selecionados entre os tantos bens culturais disponíveis, enquanto patrimônio coletivo da sociedade, em função de seus efeitos formativos e instrumentais. Longe de ser caracterizado como o conjunto de informações a serem depositadas na cabeça do aluno, o saber escolar constitui-se em elemento de elavação cultural, base para a inserção crítica do aluno na prática social de vida.

(LIBÂNEO, 1990, p.13).

Muitas das coisas que nos despejaram na escola como conteúdos, de que nos servem? De que importa saber, por exemplo, sobre o intestino do caracol Helixp? Lembro-me bem, de ter-me feito esta pergunta quando estudante no antigo segundo grau, hoje ensino médio. Certo, pode cair no Vestibular, aquela máquina de exclusão social das Universidades Públicas. Nobre função do intestino do caracol!

Ao falar de ensino da arte, o quadro é parecido. De que pode valer colar, recortar, modelar, imprimir, desenhar? Isto pode ser um meio para se refletir sobre algum ponto, pode ser um brincar e, assim, um meio eficaz de ensino. Mas a arte pode mais. Se o objetivo for ensinar estas operações, que conteúdo elas trazem? De que pode importar estas coisas para serem repetidas na educação infantil, no ensino básico, no médio, perseguindo o aluno na sua vida escolar, pois pouquíssimos são aqueles que desejam saber técnicas artísticas. Com os poucos recursos que as escolas dispõem, muitas e muitas vezes o professor recorre a isto. Estas atividades muitas vezes, na maioria delas, são aplicadas repetidamente sem a promoção de qualquer informação, apenas por um fazer oco e inútil, repetido, repetido e repetido. O planejamento de arte precisa ser muito pensado, pois o crescimento e amadurecimento do estudante ao longo de sua vida escolar, requer novos desafios e uma escala de conteúdos que o acompanhe. O que é significativo para ser ensinado em arte? Libâneo diz que, os conteúdos devem proporcionar “o saber-fazer críticos como pré-condição para sua participação em outras instâncias da vida social, inclusive para melhoria de suas condições de vida”. (LIBÂNEO, 1990, p.12). A expansão de leituras do mundo é uma imensa melhoria de condição de vida.

Fernando Hernandez em seu livro, “Cultura Visual, Mudança Educativa e Projeto de Trabalho”, propõe a mudança de ensino pelos projetos envolvendo não apenas as artes visuais, mas as imagens da publicidade e as informações que transbordam a contemporaneidade, às quais chama de cultura visual. Segundo o autor, a prática educativa através de projetos de trabalho, utilizando o portafolhas retira o estudante de seu posicionamento passivo e dá ao professor outra colocação, a de mediador das descobertas da classe. Propõe a ligação das pesquisas com a realidade do estudante. Algumas das experiências que descreve, tratam da pesquisa sobre os artistas culminarem em visitas a exposições ou ainda, iniciarem a partir dela. As propostas não têm vinculação única com as artes visuais, mas de um entendimento maior, que propicie ao sujeito um crescimento por conhecer sua cultura: “a importância da cultura visual é mediar o processo de como nos olhamos, e contribuir para a produção de mundos, isto é, para que os seres humanos saibam muito mais do que experimentaram pessoalmente” (HERNÁNDEZ, 2000, p. 52, 54).

Mesmo com as mudanças metodológicas do ensino da arte, no que diz respeito à utilização da imagem e do vídeo em sala de aula, com grande contribuição para a alteração legal inclusive, ao elevar a arte a área de conhecimento, o problema central permanece. Para quê, por quê e o quê? O problema de certa forma se acentuou, pois agora deixa patente a inexistência de outros conhecimentos nas atividades artísticas, além da artesania. A informação precisa aparecer nesta educação para a arte, mas qual informação? Muitas escolas, introduziram o ensino da História da Arte. Mas está se tratando de um conhecimento referente a arte, mas arte é história ou história é arte? A arte com certeza, documentou a travessia da humanidade desde sempre, mas o que se está ensinando é história. Ela não pode vir só como história por dois problemas, um deles é a natureza abstrata da disciplina. Muitas vezes na primeira série a criança não compreende a expressão  “semana passada”, o que dizer de “século XIX”? .

O segundo são os componentes ideológicos envolvidos. A ausência de material visual sobre a arte brasileira e mesmo da história da arte do Brasil, retira a escolha sobre o que ensinar. Por exemplo, em qualquer banca de revistas foi possível, há alguns anos (1998 é a data da edição), a aquisição até por professores de escolas públicas, de encartes de posteres sobre a história da arte que a revista Caras publicou. Lá estavam os grandes mestres da pintura universal, Rembrandt, Leonardo, Velazquez, Monet, Cezanné, Dalli em impressões de grande qualidade, com dimensão apropriada à visualização. Os acervos dos maiores museus de arte da Europa tinham sua coleção representada ali, Louvre, Prado, Ermitage, Orsay, e por aí em diante. Tudo isto é bom e eu, dono da pior consideração pela revista, comprei alguns destes encartes. Problemático é o recorte “novo rico”, muito precioso ao público da revista, priorizando a representação, o reconhecimento e a origem dos artistas. Aquilo que parece certificar como arte o reconhecível no mundo, representado com maestria e técnica, enfim, como se costuma dizer, perfeito!!! Isto não é educativo. Só está representada ali a cultura burguesa européia. Não há diferenças, não há outro fazer em arte que a pintura cavalete a óleo, sequer. O que se representa é a grande indústria destes museus, que protegidos por instituições poderosas, como o departamento de patrimônio nacional francês, alavancam a construção simbólica de seus acervos em um constante colonialismo catequizador. Inteligentes eles, afinal aquilo tudo é francês! O europeu possui sua história e sua cultura, ao contrário de nós que depredamos a nossa ao erigirmos a deles em um processo institucionalizado.

Pois é disso que se trata. A cada classe de estudantes brasileiros que lêem uma obra de arte européia, que descobrem aproximações ao fazer daquela pintura e a contextualizam histórica e críticamente, o valor simbólico daquela história, cultura e povo se fortalecem. O que se vê é a reprodução perfeita pela formação de gosto. O que se conhece é o que se ensina e o que se gosta.

Lembro-me bem que menino passava horas na casa de uma tia, folheando uma enciclopédia: O Mundo da Arte, e de tanto fazê-lo, cheguei à conclusão de que só existiam artistas na Europa.

Cadê a arte brasileira? Cadê a história brasileira? Onde estão os artistas do Brasil? O Patrimônio que ensinamos nos pertence, realmente? Ou faz parte de um programa de incentivo ao futuro turismo cultural ao grandes museus? É universal até que ponto? Por que ele é nosso e nunca vem aqui? É muito grave a falta de imagens que referenciem a arte produzida no Brasil, que dê apoio ao ensino da arte do Brasil, que promova através das propostas metodológicas do ensino pelas imagens, significação e conscientização sobre o país. Foi Sartre que disse “A imagem é consciência de alguma coisa” (SARTRE, 1987, p.107). Vale aqui, Ana Mae Barbosa:

Sem conhecimento de arte e história não é possível a consciência de identidade nacional. A escola seria o lugar em que se poderia exercer o princípio democrático de acesso à formação estética de todas as classes sociais, propiciando-se na multiculturalidade brasileira uma aproximação de códigos culturais de diferentes grupos.
(BARBOSA,1996, p. 33).

Aqueles professores que conhecem a realidade do ensino brasileiro, não a realidade das escolas privadas das capitais, mas das escolas estaduais e municipais do país, sabem da remota possibilidade do aluno, um dia, ir à Europa, a França, a Paris, ao Museu do Louvre e assistir frente a frente à Monalisa, para, naquele momento, resignificar seus conhecimentos sobre o renascimento, o homem, o mundo.

Pois aí está a grande questão: que significado há em estudar esta história, esta pintura, esta arte? Isto é um conteúdo significativo para a escola brasileira? Há a promoção da identidade? Vale aqui lembrar Ronaldo Britto quando diz que, o patimônio do colonizado é a memória do colonizador (BRITO,1983 PG.13). A única coisa que se pode pensar de Brasil pela Monalisa é o fato do quadro ter comemorado dois anos quando descobriram o Brasil. Vale lembrar que nós passamos a fazer parte da história deles.

Nos fascículos da tal revista só Cândido Portinari apareceu para defender o Brasil. Um contra cinqüenta. Coitado dele! Uma obra da série Retirantes faz parte de seu encarte na Pinacoteca Caras. Lá estão aquelas pessoas cadavéricas, com a fome na sacola, à cata de esperança, do encontro, do alento ou da chuva que traga a possibilidade do trabalho. Uma realidade do Brasil. Pode-se argumentar que a grandeza continental do país e as diferenças culturais por tal geografia, desloquem os sentidos e significados, fazendo do problema da seca no nordeste brasileiro um significante local. Pois até pode ser, o que não acredito. Segundo os temas transversais dos Parâmetros curriculares:

A temática da Pluralidade Cultural diz respeito ao conhecimento e à valorização de características étnicas e culturais dos diferentes grupos sociais que convivem no território nacional, às desigualdades socioeconômicas e à crítica às relações sociais discriminatórias e excludentes que permeiam a sociedade brasileira, oferecendo ao aluno a possibilidade de conhecer o Brasil como um país complexo, multifacetado e algumas vezes paradoxal
(BRASIL, 1998, p. 121)

Assim diz a lei.

Uma reflexão sobre o descaso político com os pequenos produtores, os atuais sem terra, sem amparo, sem escola, sem futuro e sem dignidade, excluídos completamente do processo social urbano, pode surgir da imagem dos Retirantes. A problemática da seca, apareceu com força na primeira metade do século XX. Não foi só Portinari a dedicar-se a ele, sua série de pinturas é de 1944. No ano seguinte, Ary Barroso compôs “Terra Seca” e “Promessa” foi escrita por Custódio Mesquita e Euvaldo Ruy. A música também tem suas imagens e, como disse Paul Klee, “A arte não reproduz o visível ela o torna visível” (KLEE, 1985, p.25). “Promessa” parece uma ilustração sonora dos motivos pelos quais aquela família se pôs retirante:

 

Senhor do Bonfim, teu filho plantou, mas o sol insistente no céu toda terra secou, pedi pra chover, pro verde voltar, e até hoje, ainda estou esperando esta chuva chegar. Rezei reza a beça, fiz uma promessa, segui procissão, comprei uma vela, acendi na capela, rezei uma oracão, Olha , o meu gado está morrendo, minha gente chorando, meu campo torrando, o senhor me esqueceu. Andou chuviscando, andou peneirando, chover não choveu [...] sei que em breve há de chover, que o rio há de correr, e há chuva em cachoeira há de descer, molhando a terra tão dura do sertão, livre do sol então, expulso deste céu de anil. Vai chover, no coração do Brasil...
(MARIA, 1999).

Como se conhece esta história, há quanto ela se repete, o quanto significativa é esta discussão em sala de aula!

Mas afinal, o que seria um ensino da arte com conteúdos significativos, capaz de referenciar o brasileiro na sua construção de identidade, de respeitá-lo em sua diferença sócio-econômica e cultural? O Patrimônio Histórico pode ser um canal desta ação. O outro, a estética cotidiana, englobando a cultura visual e a arte popular, tudo como representação do social.

O Patrimônio está em todo país, em toda cidade, tenha a idade que tiver, existe. O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) publicou e distribuiu um Guia Básico de Educação Patrimonial, um material que possibilite esta prática. Segundo o guia, a Educação Patrimonial é “um processo permanente e sistemático de trabalho educacional centrado no Patrimônio Cultural como fonte primária de conhecimento e de enriquecimento individual e coletivo que busca levar ao conhecimento, apropriação e valorização da herança cultural capacitando para o usufruto destes bens num processo de criação cultural (...) o conhecimento crítico e a apropriação consciente pelas comunidades do seu patrimônio são fatores indispensáveis no processo de preservação sustentável desses bens, assim como o fortalecimento dos sentimentos de identidade e cidadania” (HORTA, 1985, p. 6).

Esta idéia do IPHAN, inverte a perspectiva brasileira, voltada sempre ao Atlântico em um banzo cultural saudoso do continente colonizador. Faz olhar para dentro da cultura do país. É exeqüivel. Independe de uma grande obra, de um grande museu, ela pode ser aplicada à realidade das cidades do interior do país, bem como às capitais. A praça, o engenho, o casario, a igreja, a imagem do santo na igreja, a procissão, o artesanato, sendo observado por seu caráter documental, promove a apreensão daquela história. Mesmo as obras de arte, podem ser assim tratadas, o quadro, a escultura, o desenho, a pintura são documentos da passagem e trabalho de um homem, do tempo deste homem e do seu local. O homem representa-se em seus atos, sejam eles da arte ou não.

Segundo Varine Boham, há três categorias do Patrimônio. A primeira é o Patrimônio Natural, a segunda é o conhecimento que permite ao homem adaptar-se à primeira categoria e a terceira, trata-se de tudo o que o homem produz no encontro das duas categorias anteriores.

O Patrimônio Natural, se trata daqueles “recursos naturais que tornam os sítios habitáveis” (LEMOS, 2000, p. 6), seja no interior do país, seja nas capitais, é o maior material de trabalho que uma equipe de professores pode dispor. O meio ambiente em que se vive. Isso já é tudo e eu não pretendo tratar de sugestões. Mas os projetos de trabalho são uma grande conquista na educação. A reunião das áreas é uma recomendação da LDB e todos entendemos que a escola, os estudantes e mesmo nós professores, só ganhamos com os projetos. A arte pode contribuir imensamente. Nos países, que promovem seu patrimônio, são absolutamente comuns as atividades exploratórias em observações da natureza, da descoberta da biologia, zoologia e da botânica nos parques, em acampamentos, etc. Desde a observação de pássaros até a coleta de espécimes, tudo é operado para a pertinência e conhecimento. A arte sempre está presente para alicerçar as descobertas, através do sensível. Aqui a arte pode ser recurso didático como também, trazer a produção do artista Franz Krajcberg, seu valor como denuncia às queimadas a matas nativas, promover a reflexão ecológica e a produção plástica ao coletar materiais orgânicos como o artista estudado.

Do mesmo modo, o segundo grupo da classificação de Bohan, é muito rico. Refere-se ao conhecimento, às técnicas, ao saber fazer. Compreende todas a capacidade do homem em sobreviver neste meio ambiente. É ampla esta definição, mas fácil de ser pensada na realidade, pois é presente em nosso cotidiano. As entrevistas com pessoas das mais variadas classes e profissões, dão diferentes modos de compreensão do mundo vistas por diferentes olhares, do diretor da escola à servente, da médica ao jardineiro. Os relatos de vida, os idosos e seu passado na cidade, podem ser muito bem aplicados e reverter em pesquisas promotoras da inclusão social e da abertura às diferenças. As atividades com os artesãos, com os artistas populares, são de grande interesse aos educandos. O artesanato é criado pela necessidade do homem em adaptar-se a seu meio e, no embate com a cultura ocorrem suas transformações e adaptações. Esta adaptação é clara quando o artista demonstra ou ensina, e justamente por isso, educativa. Menosprezar a arte popular, entendendo suas manifestações como menores é mania autocomplacente de críticos, artistas, acadêmicos e estetas que insistem no discurso correspondente, falar aos seus pares.

A questão do ensino da arte, bem como tratar sobre cultura no interior do país, é difícil. O interior é uma cápsula onde o tempo tem outra cadência, onde as coisas acontecem de outro modo, onde mudanças são mais lentas e desnecessárias muitas vezes. Transferir o ensino da arte para esta realidade, tendo como padrão aquele aplicado à capital, onde questões como a formação do gosto, a oferta e produção de arte existem em outra esfera, é colonialismo ou uma violência simbólica como diria Bourdieu. Há de se pensar nas diferenças como qualidades, e na estética do cotidiano pelo grande valor das escolhas. Neste campo, há o trabalho de Ivone Richter, Interculturalidade e Estética do Cotidiano no Ensino das Artes Visuais, publicado em 2003. Sua pesquisa embasada na antropologia, parte da realidade cultural das famílias dos estudantes seus alunos, os hábitos e fazeres da mulher nestas famílias. Toma obras de arte de artistas mulheres contemporâneas que se valem deste enfoque em suas poéticas, para construir conhecimento, sem com isso, despejar as escolhas eruditas, “buscando compreender os aspectos estéticos/visuais presentes nas famílias dos(a) estudantes relativamente às origens étnicas, de maneira a permitir uma compreensão desses aspectos e sua futura adequação ao ensino escolar”. (RICHTER, 2003 p25).

Ao propor a cultura como educação, a perspectiva sobre objetos e valores precisa ser discutida. O caso de “desvelar na cultura a sua dimensão simbólica, livrando-a de ser simplesmente coisa (objeto, artesanato, utensílio) ou valor”, como diz Carlos Rodrigues Brandão em Educação como Cultura (Brandão, 2002 Pg116), é de grande dificuldade. Desvelar a dimensão simbólica da arte popular é, sobretudo, reconhecer no outro a cultura, é entender a sua como diferente, é redimensionar valores e significados e perceber-se. Educadores para a arte são formados para servir ao poder e trabalham com este horizonte. Sob o conceito de arte herdeiro das “belas artes” e ditador de Arte e “artes menores”. (RICHTER, 2003)

O terceiro grupo, segundo Boham: “é o mais importante porque reúne os chamados bens culturais que englobam toda sorte de coisas, objetos, artefatos, construções obtidas a partir do meio ambiente e do saber fazer” (LEMOS, 2000, p. 6). É clara a relação do homem com o meio. Segundo Heloísa Ferraz em entrevista a Marcos Faermann na revista Educação o ensino da arte, entendido como área de conhecimento, “envolve aspectos muito preciosos, que vão desde a criação poética, musical, cênica e visual, até outras áreas, como a do patrimônio histórico e cultural, que vai se somando ao longo dos tempos” (FERRAZ, 1998, p. 36). As atividades educativas e artísticas que englobem estas áreas, podem ser as mais variadas. De saída ficam sugeridas relações com o conhecimento produzido no local de origem que inserem o sujeito em seu espaço. Pertinência, é isso, qualidade de pertencer. As atividades relacionadas ao ensino e ao conhecimento em artes devem voltar-se ao museu , não como um espaço de informação, mas como espaço da contemplação, como recomenda Ott (BARBOSA, 1996, p.112). É na escola onde as informações sobre o que se verá no museu precisam aparecer, o encontro com a arte precisa ser explorado de outro modo. Não é hora de dizer sobre a arte, mas de ouvir sobre o olhar do outro.

Os museus são grandes bancos deste espólio, o Patrimônio. Infelizmente, na grande maioria dos casos, eles estão localizados nas capitais dos Estados brasileiros ou nos municípios de maior força econômica e política. A sede política torna-se o centro econômico e, ligada à geração de renda está a geração do capital cultural. Lá estão as universidades, as instituições culturais, o controle do capital simbólico, o mercado cultural.


Vale pensar que propostas de conhecer o que se tem podem demolir com o ideal de museu como construtor da genealogia do presente, como artefato documentário e representante, com este signo absoluto de poder que é, uma vez que ele constrói e instaura discursos por sua prática de justaposição e sobreposição. O filósofo francês Merleau Ponty criticava o museu por manipular informações. José da Motta Pessanha, a partir da fala de Ponty, diz que no museu:


...há uma disposição textual, que, de alguma maneira, conduz por certa direção, propõe uma seqüência de leitura, diz alguma coisa e não diz de maneira neutra; não diz do mundo de si, porque afinal, ninguém sabe muito bem o que é; não diz sobre a realidade em si, o Brasil em si, coisas que só existem como criações fantasmagóricas e ideológicas. Ora na verdade, há um discurso.
(PESSANHA, 1996, p. 32)

Esta narração do museu é por vezes velada, outras explícitas. Há ainda o fetichismo, uma exploração imaginária entre o sujeito e o objeto, para representar as semelhanças e diferenças “entre um eu (olho) que confronta o mundo como objeto e um eu (olho) que confronta a si mesmo como um objeto entre objetos daquele mundo em uma adequação que, entretanto, nunca se completa” (PREZIOSI, 1998, p. 53).

André Malraux (2000) disse:

Há mais de um século que nossa convivência com a arte não cessa de se intelectualizar. O museu impõe uma discussão de uma das representações do mundo nele reunidas, uma interrogação sobre o que precisamente, as reúne (...) uma recriação do universo frente à criação.
(p. 12)

 A escola pode desligar-se da museificação, e seguir os cursos que desejar com as informações e a contemplação. O que é necessário é o posicionamento do professor, infelizmente raro. Frente ao museu o que normalmente acontece é o professor passar a guarda da turma e a condução da visita a monitores, aqueles faladores que nada sabem sobre a turma, os conteúdos que podem interessar ao grupo. Infelizmente o professor crítico e que vem ao museu com objetivo e método, não é bem visto pela instituição, como diz Beatriz Freire “Quando um professor se apropria, ainda que parcialmente dos recursos que o museu oferece e cria com eles diferentes composições, associando a visita a outras estratégias de ensino, ele já está sendo sujeito de uma prática que o museu aceita com dificuldade” (FREIRE, 1996, p. 20).

O museu quer sejam de arte como os das capitais, quer sejam museu histórico, até os mais modestos do interior, possuem em seus acervos os documentos mais variados e vale pensar em resignificação, em arte e memória, em apropriação e transformação, como tantas poéticas da arte contemporânea revelam. Os defensores da idéia do ensino da arte não servir às outras disciplinas, esquece-se da maior qualidade que a arte possui, a de ser plasma e poder transformar ou transportar tudo. Seja auxiliando o ensino da geografia com a construção da maquete do Vesúvio, ou as leituras e produção a partir da pintura de Victor Meirelles no quadro da Batalha dos Guararapes (MNBA), o fazer da arte infantil não diminui sua potência por este ou aquele caso. Os conteúdos tratados ampliam em uma rede de significações, a arte é um instrumento, um meio e um fim. Edith Derdyck diz, “A escola, em seu convívio diário com as crianças, tem condições de promover uma continuidade e um aprofundamento dos estímulos lançados por algumas dessas instituições museológicas, incorporando esse conhecimento ao seu fazer”. (Derdiyk, 1990, p.131). No caso dos museus de arte esta afirmação é ainda mais procedente. A oportunidade é muito maior em decorrência da especificidade. É o caso ideal para aqueles que defendem a arte como um conhecimento específico: os artistas, as obras, as séries, os movimentos da arte que são estudados na escola podem ser aqueles vistos posteriormente no museu na promoção do conhecimento.

Vale trazer a força da experiência que vivi de 1994 a 1998, e o encontro com a história que contei sobre o menino no início deste texto. Eu era orientador no Projeto Linhas do Conhecimento, desenvolvido pela Fundação Cultural de Curitiba. Entre as “Linhas”, havia a das Artes Visuais. Todo o trabalho do projeto consistia na promoção da cidadania cultural em atividades relativas à arte e cultura, levando educandos assistidos por outro programa da prefeitura nos bairros, o Programa PIA, a exposições, museus, parques, bibliotecas, teatros e pelos sítios tombados do patrimônio. Era delicioso para nós, e creio que para as crianças também, era informal e muito lúdico.

Na Linha das Artes Visuais trabalhávamos com o princípio de preparar o “diálogo” da criança com o que veria nos museus, uma certa instrumentalização “teórica” e das operações artísticas referentes à exposição, preparatória de um olhar cúmplice. Sendo pintura o que veríamos, pintávamos, trabalhávamos cor, por exemplo. Em meio aos oito dias de atividades, fazíamos a visita à exposição na grande maioria delas a museus. Sempre era prazerosa, descontraída, brincávamos com o olhar. De volta aos “PIA”, sede do grupo de crianças, continuávamos a produção e a reflexão sobre o que vimos. Era sempre surpreendente. Após o contato com a obra, tudo era muito mais potente, e as crianças e os estagiários percebiam a diferença. Era lindo. Ana Mae Barbosa diz “o poderoso impacto da própria obra torna a educação no museu uma experiência única” (BARBOSA, 1996, p. 12). O menino que me encontrou na rua e revelou sempre voltar ao Museu, fazia parte de um dos 35 “PIA” espalhados pela cidade. Era morador de um bairro da periferia, e vendia balas no centro da cidade mantendo a preguiça da mãe exploradora de menores.

O fato deste menino, excluído socialmente, sem formação de gosto culto, retornar ao Museu é um dado rico. Não diria que ele tornou-se um consumidor de arte como aqueles educados para tal, mas ele exercia seu direito de entrar no Museu Metropolitano de Arte de Curitiba, ao contrário de tantos. Sabia que o lugar era público e gratuito, que lá havia arte, que as exposições mudavam. Na conversa que tivemos, contou-me de uma exposição que vira, descrevendo os objetos a ponto de eu reconhecer a exposição.

John Dewey pregava o valor da experiência, e de fato, nada é mais educativo. Segundo Willian Ott, citado por Ana Mae Barbosa, “Os trabalhos de educação pela arte em museus constituem um componente essencial para o ensino da arte: a descoberta de que a arte é conhecimento” (BARBOSA, 1996, p. 5).

Tendo vivido aquela experiência, tornei-me defensor do museu como um instrumento a favor do ensino da arte. Aquele mesmo modelo, buscando articular conteúdos com o patrimônio local, foi empregado em uma escola em Curitiba onde lecionei Artes Visuais. Todos os conteúdos da programação curricular de arte vinculavam-se ao que as classes veriam frente a frente no museu mais tarde.

No primeiro semestre de 2003, a programação era a obra de João Turin, um escultor paranaense com sua obra em monumentos históricos de diversos pontos da capital além da Casa João Turin, um museu dedicado ao artista. O histórico do artista, materiais, técnicas, obras, e muitas experiências com argila serviram como estofo ao olhar das crianças. O retorno da visita, nas atividades, foi muito bom. Meses depois o conhecimento revelou-se de modo especial em outro passeio que a classe fez. Toda a primeira série cantava, Fulano roubou pão na casa de João. Na brincadeira o escolhido precisa responder quem eu. e o grupo, sim, você! Eu não fui foi o beltrano, escolhendo outro e a brincadeira parece o Bolero de Ravel, não termina. Lá pelas tantas fui escolhido para responder: quem eu? Eu não, foi o... Como não dominava o brinquedo errei a resposta, dizendo: Eu não, nem conheço o João! Foi quando uma das crianças, o Yan (sete anos) respondeu, Conhece sim, é o João Turin! Aquelas crianças sabem das esculturas públicas, que Turin estudou fora, que fez o monumento a Tiradentes da praça. E hoje caso caminhem pela cidade, podem encontrar os monumentos, reconhecer, reconhecer-se.

Esta convicção em situar geográfica e socialmente o indivíduo através da arte e do seu patrimônio cultural, dando ao patrimônio local e nacional o primeiro e segundo plano, e ao universal um terceiro, cria a possibilidade de o indivíduo ampliar seu horizonte. Com a valorização e auto-estima pela consciência de posse de cultura, o indivíduo caminha pelo conhecimento humano com posse da identidade. É possível ainda construir um elenco de conteúdos ao longo da vida escolar do estudante, deixando de repetir nomes, escolas, operações. Infelizmente, queiramos ou não, a “presentitude” da Europa por ser a inventora da museografia, da história, da ética, da estética, da filosofia e dos outros tropos retóricos que constituem a modernidade, sempre acaba aparecendo, quer no início, quer no fim da tal escala (PREZIOSI, 1998, p. 50). Se iniciarmos pela arte universal, chamamos a Europa de berço da humanidade e a arte nacional uma ramificação, se a deixamos por último, iniciando pela arte local, este início parece à parte ínfima daquilo que muito tem a evoluir...

Cabe a nós escolhermos se deixamos este plano por último ou por primeiro. Muitas vezes não se chega ao fim do caminho e o objetivo pode ser o passeio prazeroso ao invés da chegada.

Bibliografia

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Notas:

[1] Professor Especialista da Faculdade de Artes do Paraná – FAP.

Revista Digital Art& - ISSN 1806-2962 - Ano II - Número 02 - Outubro de 2004 - Webmaster - Todos os Direitos Reservados

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