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O Corpo Tecnológico como Suporte Artístico no Caminho do Pós-Humano:A Arte Contemporânea e a Ficção Científica como Referências para as Mutações no Corpo.

Autora: Heloisa Helena da Fonseca Carneiro Leão[1] - heloisaleao@globo.com

Este artigo resume a dissertação de mestrado: "O Corpo Tecnológico como Suporte Artístico no Caminho do Pós-Humano", que pretende demonstrar que o corpo, como objeto da arte, pode ser encontrado tanto nas histórias de ficção científica, de Isaac Asimov, como nos trabalhos de inúmeros artistas contemporâneos, entre eles Stelarc. O uso do corpo como suporte de criação enfatiza a relação do homem com a tecnologia e o ambiente, possibilitando questionamentos acerca do futuro desse corpo. Dessa forma, o diálogo do homem com o seu ambiente aponta para um sentido mais abrangente da noção de comunicação, uma vez que trata do conceito de semiose e se refere à complexidade das trocas entre o homem e o seu entorno.

Stelarc defende a idéia de que o corpo humano está obsoleto em relação às novas tecnologias e propõe a criação de aparelhos tecnológicos para suprir essa obsolescência. As preocupações de Stelarc em transformar o corpo biológico em maquínico vão ao encontro da visão de Asimov, que apresenta no livro, "O Homem Bicentenário", o robô Andrews, o qual emprega todos os esforços e recursos disponíveis para transformar o seu corpo maquínico em humano.

Palavras-chave: Maquínico, Pós-Humano, Semiose, Suporte

Abstract:

This paper summarizes the thesis: "The Technologic Body Using by Artic Support to the of Post-Human (The Art and Scientific fiction, as a Reference for Changes that Happens at the Human body)", who intend to show that, the human body, as an art object, can be found at Scientific Fiction story and contemporaneous artists work, as Stelarc. The uses of the body to support the creation enforce the relationship of the men with the technology and the environment, allowing questions concerning the future of the human body. The relationship of the man with his environment is one of the better ways to cover communication notions that reflect the semiose concept referring the complexity of changes between man and his environment.

Stelarc's Sense says that the human body is obsolete comparing with the new technologies and proposes the criation of technological devices to supply those differences. The Stelarc's worries in transform the biological body in mechanic body meet Isaac Asimov's book "The Bicentennial Man" where the robot Andrews, the protagonist, intend to transform from mechanic into a biological body.

Key-words: Mechanic body, Post-Human, Semiose, Support

1. Introdução

A proposta do trabalho, O Corpo Tecnológico como Suporte[2] Artístico no Caminho do Pós-Humano é mostrar que o uso do corpo como suporte de criação aponta para a relação do homem com a tecnologia e o ambiente, o que nos possibilita questionar o futuro desse corpo. Assim, o diálogo do homem com o seu ambiente é o sentido mais abrangente da noção de semiose e refere-se à complexidade das trocas entre o homem, as máquinas e seu entorno.

Para pesquisar as mudanças operadas no corpo utilizou-se a ficção científica e a arte contemporânea. Assim, em oposição à história de ficção científica, "O Homem Bicentenário", de Isaac Asimov tem-se a arte contemporânea de Stelarc, com o intuito de se encontrar o contraponto entre as duas abordagens. É importante ressaltar a seguinte distinção: Stelarc tem uma visão que parte do humano e segue em direção ao maquínico, pelo uso de próteses, para compensar o corpo humano de sua obsolescência. Enquanto que a visão de Asimov vai no sentido inverso, partindo do maquínico e buscando o humano. No entanto, o robô Andrews, que é uma criação robótica, converge para as próteses e extensões, à medida que se humaniza.

O percurso do trabalho passa pelas idéias de McLuhan e persegue o caminho das relações homem/máquina.

2. Marshall McLuhan  e Charles Sanders Peirce

2.1 McLuhan

A idéia da pesquisa surgiu após o contato com as teorias de Marshall McLuhan, apresentadas no livro "Os Meios de Comunicação como Extensões do Homem", que apontam para a visão dos meios de comunicação e para a capacidade do artista em entender as mudanças perceptivas, advindas dos efeitos das tecnologias sobre os indivíduos. Nesse sentido, McLuhan deposita no artista sua esperança em ver resolvidos os problemas de desequilíbrio provocados pelo aparecimento de um novo meio. "O artista pode corrigir as relações entre os sentidos antes que o golpe da nova tecnologia adormeça os procedimentos conscientes" (McLuhan 1964:86). Nesse sentido, McLuhan cita Wyndhan Lewis: "O artista está sempre empenhado em escrever a minuciosa história do futuro, porque ele é a única pessoa consciente da natureza presente!" (McLuhan 1964:85). O autor enfatiza a função do artista:

Toda tecnologia nova cria um ambiente que é logo considerado corrupto e degradante. Todavia, o novo transforma seu predecessor em forma de arte. (...) Qualquer extensão - seja da pele, da mão, ou do pé - afeta todo o complexo psíquico e social. (...) O artista sério é a única pessoa capaz de enfrentar, impune, a tecnologia, justamente porque ele é um perito nas mudanças perceptivas.
(McLuhan 1964:12,18,34)

Além disso McLuhan mostra que os meios de comunicação não estão isolados e, sim, em sintonia, se misturando. Por conseguinte, utiliza a definição de meios híbridos para exemplificar aqueles que convergem dois ou mais meios:

O híbrido, ou encontro de dois meios, constitui um momento de verdade e revelação, do qual nasce a forma nova. Isto porque o paralelo de dois meios nos mantém entre formas que nos despertam da narcose narcísica. O momento do encontro dos meios é um momento de liberdade e libertação do entorpecimento e do transe que eles impõem aos nossos sentidos.
(McLuhan 1964:75)

A definição de híbrido de McLuhan nos ajuda a entender o corpo hoje. Exatamente, o encontro do humano com o maquínico está constituindo esse momento de revelação para a compreensão do novo homem advindo da hibridização entre humano e tecnológico. Imaginando-se que não se está longe do duplo do homem, isto é, do clone, poderíamos dizer que o corpo tradicional está se transformando em suporte artístico ou a arte contemporânea e a ficção científica é que estão apontando para questionamentos acerca desse corpo?

Além dos conceitos de McLuhan, que foram fundamentais pelo início desta pesquisa, outras preocupações direcionaram o trabalho, entre elas a curiosidade em se entender como se opera a semiose entre o homem, a máquina e o ambiente. Com relação a isso, o que se pretende mostrar é como no percurso evolutivo da humanidade, as tecnologias sempre tiveram e continuam a ter um papel decisivo nos questionamentos sobre as mutações do indivíduo e de seu ambiente.

2.2  Peirce

Para entender o conceito de semiose citamos Santaella que explica semiose como sendo, a ação do signo em ser interpretado em outro signo. Afirmando que interpretar é traduzir um signo em outro, sendo, portanto, o significado de um signo, um outro signo. Entendemos que a semiose é responsável pelo desenvolvimento de uma cadeia sígnica, uma vez que Peirce mostrou que não há pensamento sem signo. É exatamente por isso, que os signos têm a função de se multiplicar infinitamente. Nas próprias palavras de Peirce: "O modo de ação típico do signo é o auto crescimento através da autogeração. O signo, por sua própria constituição está fadado a germinar, crescer." (CP 2.230 apud Bacha 2003)

Enfatizamos a explicação de semiose, por ser fundamental para o entendimento do trabalho, cito Santaella:

O homem por ser signo é mutante e divide sua existência entre os momentos de crença, a causa de um hábito adquirido, com os de dúvidas, que são os momentos de intranqüilidades, e que tendem, por essa insatisfação, a uma mudança de hábito. No momento em que uma dúvida se instala em uma mente[3] há uma ruptura na credibilidade de uma determinada crença e, o hábito que estava consolidado entra em crise, precisando, portanto, ser mudado. A busca por um novo hábito é fruto da necessidade de se usufruir novamente da tranqüilidade provocada por uma nova crença. A busca por novos hábitos é a finalidade do signo, uma vez que, por ser dinâmico, tende a mudança de hábito para conseguir, assim, seu crescimento, sua evolução. "A doutrina da Lei, da continuidade no pensamento e no cosmos é o sinequismo. (...) Toda ação pressupõe fins e os fins são o modo de ser do pensamento porque estes são gerais. (...) Um hábito é um alvo ou ideal que se solidifica".
(Santaella 2000: 96,99)

(...) há propensão de todas as coisas vivas, e mesmo as não vivas, para adquirir hábitos, não é apenas uma lei entre outras, mas a lei governando todas as leis. São as leis gerais que tornam os fenômenos regulares e inteligíveis, sendo por isso mesmo, os fenômenos mais completamente reais do universo. (...) O Summum bonum da espécie humana. À medida que a evolução progride, a inteligência humana vai desempenhando um papel cada vez maior no crescimento da realidade por meio de sua característica mais peculiar e inalienável, o auto controle.
(Santaella apud Bacha 2003).

Supomos que a semiose é a responsável pela evolução humana e, dessa forma a noção evolucionista contida em Peirce é importante, porque mostra a necessidade da aquisição de hábitos com o intuito de impulsionar o processo.

Na teoria peirceana os fenômenos atuam sobre nós, interferindo em nossos hábitos e mudando-os. À medida que os hábitos atravessam nossas vidas somos obrigados a tomar decisões. Lauro da Silveira explica: "Somos levados a conferir significado ao fenômeno e a tomarmos posse de um caminho pelo qual poderemos no futuro interagir com ele. (...) É na interpretação esse momento que melhor se manifesta o que Peirce denominou semiose" (Silveira 2003:5)

As definições mostradas acima nos ajudam a entender como foram operadas as relações do homem, com as máquinas e o ambiente. A semiose ocorrida entre eles é pertinente para o entendimento da pesquisa.

3. A Relação entre o Homem e suas Descobertas por Terrence Deacon, Arthur C. Clarke e Edgar Morin

Terrence Deacon, cognitivista dinamicista e Prof. Dr. em Harvard, pesquisa a evolução da mente e é defensor de uma teoria evolucionista; Arthur C. Clarke, cientista e escritor de ficção; e Edgar Morin, filósofo Diretor Emérito do CNRS, Centro Nacional da Pesquisa Científica, Professor honoris causa da Universidade de Consenza na Itália, mostram como as relações do homem com suas invenções foram decisivas no processo evolutivo..

Deacon enfatiza que a humanização é o ponto da evolução em que os instrumentos tornam-se a fonte principal da seleção, no corpo e no cérebro. Quando os cérebros aumentaram, foi na época em que o homem começou a fazer pinturas e instrumentos. Para Deacon, o homem humaniza-se em conseqüência do uso de instrumentos e não o contrário, como muitos afirmam. De acordo com o teórico, o tipo de instrumento foi fundamental no percurso da humanização, uma vez que ele é determinante. Deacon mostra que, quando as mudanças operadas pelas tecnologias são profundas, elas precisam ser acompanhadas de uma transformação genética e teria sido por isso que o cérebro do homem teria mudado.

Nesse mesmo caminho, Clarke mostra que foi o sucesso dos mais simples instrumentos que deu origem à tendência total da evolução humana e conduziu à civilizações. O prof. enfatiza que a tendência antiga de se acreditar no fato de que foi o homem quem inventou os instrumentos é enganosa, o correto seria dizer que foram os instrumentos que inventaram o homem. Com base nas afirmações de Clarke levantamos uma questão: Não seria o processo entre o homem e o instrumento o responsável pela evolução e não um deles separadamente?

Morin afirma que a hominização não se baseia somente no que aparece, ela representa, também, o que desapareceu ou o que foi extinto e enumera todas as etapas que sobreviveram ao processo evolutivo: Australopiteco, Homo habilis, Homo erectus, Homo neanderthalensis e enfatiza:

"Não é uma espécie que evolui dos primeiros hominídeos ao Homo sapiens; é, durante um período muito longo em que o meio natural se modifica ao retardador e em que se multiplicam indivíduos e grupos sociais de uma forma invariável, o aparecimento de saltos esporádicos de espécie para espécie, de sociedade para sociedade, de indivíduo para indivíduo, e, de cada vez, ou um Adão mutante que faz descendência, ou Prometeu desconhecido que introduz uma técnica nova, ou uma colônia que regressa do exílio e que desvia um modelo quando o reconstitui. De vez em quando, surgem divergências, dissidências; muitas falham, algumas impõem-se firmemente, espalham-se; os felizes desviantes transformam em desviantes aqueles de quem se haviam desviado."
(Morin, 1973:56)

Morin (1973: 53) aponta para as idéias errôneas do passado, que faziam do homem o senhor e o criador de tudo, mostrando que esse tudo, também, fazia o homem:

No ponto onde se via o Homo sapiens desprender-se da natureza com um salto majestoso e produzir, com sua bela inteligência, a técnica, a linguagem, a sociedade, a cultura, vê-se, pelo contrário, a natureza, a sociedade, a inteligência, a técnica, a linguagem e a cultura co-produzirem o Homo sapiens no decurso de um processo que durou alguns milhões de anos.

Continuando seu raciocínio, Morin (1976:122) defende a tese do aumento de complexidade, no cérebro do Homo sapiens, como responsável pela sua evolução: "A passagem da hominização à humanidade, corresponde a novo salto qualitativo, que é o da hipercomplexidade".

Dessa forma, Morin, (1973:112) argumenta que para se compreender: "(...) esse aumento de complexidade, é necessário penetrar na complexidade organizacional dos sistemas vivos, a que se pode chamar automata naturais, sistemas auto-organizadores".

Morin, assim, aponta para as diferenças existentes entre os organismos vivos e as máquinas, mesmo as mais sofisticadas, diferenças essas que estão relacionadas à desordem, ao ruído e ao erro. Quanto à desordem, ela se refere ao acaso, não se tratando, portanto, de uma resposta mecânica de obediência a programas pré-determinados e não podendo, então, ser previsível.

Morin, também, alerta para o fato de que o ruído modifica a emissão de uma informação, podendo provocar uma distorção na mensagem. Dessa forma, uma máquina não pode incorporar o ruído, pois corre o risco de se degenerar, ao passo que um organismo vivo não se degenera em virtude dos ruídos, dos erros e da desordem. Ao contrário ele pode criar algo novo.

O organismo vivo, segundo Henri Atlan (apud Morin, 1976:113-114), tem a sua coerência baseada no conjunto e, dessa forma, possui a qualidade de se auto-organizar a partir de um ruído: "Ora acontece que, em certos casos, o <ruído> provoca o aparecimento de uma inovação e de uma complexidade mais rica. Nesse caso, o erro, em vez de degradar a informação, enriquece-a".

Morin, ainda afirma que o ruído não se refere exclusivamente à operacionalidade do sistema vivo,  sendo, também, o responsável pela evolução desse sistema. Nesse sentido, de acordo com Morin (1976:114), a emergência de um ruído, de um erro no organismo vivo, é a causa de uma desordem criadora, uma vez que gera complexidade: "Assim, qualquer sistema vivo está ameaçado pela desordem, da qual, ao mesmo tempo, se alimenta".

4. Diálogo entre o Homem a Tecnologia e o ambiente

No percurso evolutivo a desconfiança sempre rondou as invenções humanas, produzindo na imaginação dos seres a impressão da chegada de fantasmas destrutivos, alimentados por receios de perda do lugar no mundo ocasionada pelas máquinas ou pela possibilidade de serem por elas controlados. Esse medo do desconhecido pode ser visto nas histórias de ficção científica que, ao longo dos tempos, mostram o homem envolvido na construção de um ser, como ocorre em Fausto de Goethe, em Frankenstein de Mary Shelley e em muitos outros. Em todas essas histórias ocorre sempre a destruição do criador pela criatura. Entretanto, nas histórias de Asimov, há um relacionamento pacífico entre o homem e a máquina o que provoca uma outra visão das máquinas em relação ao homem. Inclusive, Asimov é o criador das Três Leis da Robótica, que direcionaram as outras histórias de robôs depois de sua criação. O autor defende a idéia de que um robô deve ser visto, simplesmente, como um eletrodoméstico. As três leis são:

1.Um robô não pode ferir um ser humano ou, por omissão, permitir que o ser humano sofra algum mal.

2.Um robô deve obedecer às ordens que lhe sejam dadas por seres humanos, exceto nos caos em que tais ordens contrariem a Primeira Lei.
3.Um robô deve proteger sua própria existência, desde que tal proteção não entre em conflito com a Primeira e a segunda Leis." (Asimov 1975:7)

Para enfatizar o receio dos homens vis-à-vis as novas descobertas citamos Antoine de Saint-Exupéry, no livro "Terra dos Homens":

O uso de um instrumento sábio não faz de você um técnico seco. Sempre me pareceu que as pessoas que se horrorizam muito com nossos progressos técnicos confundem o fim com o meio. (...) Sem dúvida, o avião é uma máquina - mas que instrumento de análise! Esse instrumento nos permitiu descobrir a verdadeira fisionomia da terra. (...) Se às vezes julgamos que a máquina domina o homem é talvez porque ainda não temos perspectiva bastante para julgar os efeitos de transformações tão rápidas como essas que sofremos. Que são cem anos da história da máquina em face dos duzentos mil anos da história do homem? Ainda nem acabamos de nos instalar nesta paisagem de minas e de centrais elétricas. Ainda nem nos sentimos moradores desta casa nova que nem sequer acabamos de construir. Tudo mudou tão depressa em volta de nós: relações humanas, condições de trabalho, costumes... (...) Cada progresso nos expulsou para um pouco mais longe ainda de hábitos adquiridos; na verdade somos emigrantes que ainda não fundaram a sua pátria".
(Saint-Exupéry 1979:37-38)

Nesse sentido, as discussões em relação às novas tecnologias dividem-se entre os defensores e os críticos de suas conseqüências. Toda invenção tem um lado positivo e um negativo, dependendo da forma como for utilizada.  Assim, se os homens forem vistos como o resultado de suas descobertas, uma postura negativa em relação aos seus instrumentos, suas máquinas poderá demonstrar uma posição cega e contraditória. Por isso, as histórias de ficção científica ajudam a entender o corpo em relação à tecnologia e o pensamento de McLuhan em relação às descobertas tecnológicas e à interferência que elas acarretam no "complexo psíquico e social" dos indivíduos é pertinente.

Um dos focos importantes desta pesquisa é o caráter futurista que pode ser encontrado tanto na ficção científica como na arte contemporânea, uma vez que elas possibilitam uma série de questionamentos relativos ao homem do amanhã.

5. Stelarc e o Homem Bicentenário

De acordo com Stelarc, o corpo humano atual é limitado e obsoleto, precisando, portanto, ser remodelado. Segundo, o artista, o corpo biológico não tem conseguido acompanhar os avanços da tecnologia, por conseguinte Stelarc afirma:

O homem fabricou um meio ambiente constituído de dados que são totalmente estranhos a sua experiência subjetiva. Nós construímos um mundo de máquinas precisas, possantes e rápidas, onde a sua eficácia transpassa em muito o nosso corpo. Nós temos computadores capazes de ganhar de um campeão de xadrez. Nosso corpo se encontra prisioneiro, num mundo ao qual ele não está adaptado biologicamente. É por essa razão, que eu considero que o corpo se transformou em obsoleto. Isso não significa que eu seja 'contra' o corpo. A verdadeira questão é: Nós aceitaremos esses limites da evolução que são o nascimento e a morte? Nós podemos modificar o corpo, geneticamente de uma parte, mas podemos também, adicionar componentes tecnológicos. A idéia do ciborgue já é realidade há um bom tempo, se falarmos no sentido médico.
(Stelarc, 2002:5)

Em contra partida, o livro "O Homem Bicentenário", de Asimov aborda o desejo do robô Andrews de se transformar em humano. Andrews é uma máquina que sofre em seu corpo os efeitos tecnológicos e, portanto, torna-se semelhante à configuração humana. O maquínico de Andrews procura pelo humano, interiorizando de tal forma o desejo de ser humano, que ele abdica de sua imortalidade para tornar-se mortal.


1-2  Andrews antes da mutação de mecânico em maquínico


3 Andrews "humano"

Figuras 1- 2 - 3 -  Filme - O Homem Bicentenário: http://www.cinema.art.br/multi_fotos_filme.asp?cod=970

Lembramos que Stelarc, pelo uso do corpo, questiona o meio ambiente e utiliza as novas tecnologias para falar da obsolescência desse corpo. É possível pensar que corpo humano não sofre mutações em conseqüência da velocidade dos avanços tecnológicos atuais? Como defendemos a tese de que o corpo interage com a tecnologia e o ambiente. É possível aceitar a afirmação de Stelarc de que o corpo humano está obsoleto?

As preocupações de Stelarc em ser maquínico e a humanização de Andrews mostram perfeitamente o momento atual da evolução humana. O ser híbrido que está emergindo da relação homem/máquina já pode ser visto nas ruas e nos meios de comunicação. Essas mutações do corpo são bem explicadas por Donna Haraway (profª. do Departamento de História da Consciência, na Universidade da Califórnia), que escreveu o "Manifesto Ciborgue", no qual argumenta que o ciborgue é uma fusão de animal e máquina. A autora e enfatiza que:

(...) ser um ciborgue não tem a ver simplesmente com a liberdade de se autoconstruir, tem a ver com redes. (...) A tecnologia não é neutra. Estamos dentro daquilo que fazemos e aquilo que fazemos está dentro de nós. Vivemos em um mundo de conexões - e é importante saber quem é feito e desfeito. (...) Estamos falando de formas inteiramente novas de subjetividade. Estamos falando seriamente sobre mundos em mutação que nunca existiram, antes, neste planeta. E não se trata simplesmente de idéias. Trata-se de uma nova carne (...) A verdade é que estamos construindo a nós próprios, exatamente da mesma forma que construímos circuitos integrados ou sistemas políticos. (...) Para sobrevivermos, precisamos acordar para a velocidade das complexas realidades da tecnocultura.
(Haraway apud Silva 2000:25)

6. Conclusão

O momento presente, por possuir uma complexidade nunca antes encontrada na história da humanidade, abre caminho para uma infinidade de questionamentos em relação às conseqüências das mutações operadas pelas novas tecnologias. Como será esse novo homem? Como definir o que é humano? Até que ponto as próteses serão responsáveis pela permanência dos indivíduos?  O que sobra de humano em um ser manipulado e enxertado de tecnologias?

Uma coisa, porém, fica evidente é que o homem e as máquinas estão e sempre estiveram em constante processo de interação. Por isso, as questões levantadas tanto na ficção científica, como na arte contemporânea apontam para uma visão futurista de um longo processo interativo.

Enfatizando as dúvidas sobre o ser pós-humano citamos Saint-Exupéry (1979:2) que mostra como as ferramentas ajudam o ser humano a se conhecer: "Ao se medir com um obstáculo, o homem aprende a se conhecer; para superá-lo, entretanto, ele precisa de ferramentas". Prosseguindo com suas reflexões, Saint-Exupéry termina o seu livro "Terra dos Homens" com a seguinte máxima: "Só o Espírito, soprando sobre a argila, pode Criar o Homem".  Podemos aventar a hipótese que somente o Espírito, soprando sobre as novas tecnologias, possa Recriar o Homem. Nesse sentido, quem sabe se as máquinas atuais possibilitarão uma outra visão do ser humano e do seu meio? Não seria possível que esse novo homem restabelecesse ou criasse novos sentimentos mais humanos? Não seria possível que o homem pós-humano venha a ser mais humano que o humano?

Continuando as indagações sobre o futuro: Os artistas contemporâneos podem estar fazendo o elo entre a tradição do corpo e esse novo corpo que está surgindo, entre o que está presente na percepção coletiva e o que está encoberto ou entre o que pode ser considerado fora e o que está interno. Como fica a elaboração do corpo enquanto suporte artístico que busca o caminho do pós-humano? Está havendo uma continuidade na relação homem/máquina e ambiente ou estamos presenciando um salto criador?  O trabalho artístico está realmente antecedendo a realidade, como afirma McLuhan?

Por todas as interações ocorridas entre o homem e a máquina, presenciamos a emergência do computador que nos leva a pensar o homem pós-humano como uma construção veloz. Seria um fato ou heresia considerar que, por analogia, a origem numérica na Índia (em que o "1" simbolizava o masculino e o "0" o feminino) e a lógica do computador, (que cria a partir das combinações de "1" e "0"), poderia estar recriando a idéia de Adão e Eva? Seria, então, possível intuir que a humanidade estaria vivendo em um novo "paraíso"? Representaria o homem pós-humano a expulsão ou a permanência no "paraíso"?

7. Referências Bibliográficas:

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MACLUHAN, M. Os Meios de comunicação como extensões do homem. São Paulo:Cultrix, 1964. 407p.
MORIN, E. O paradigma perdido: A natureza humana. Portugal: Europa-America, 1973: 222p.
SAINT-EXUPÉRY, A. Terra dos homens. Rio de Janeiro: José Olympio, 1979: 155p.
SANTAELLA, L. A teoria geral dos signos. São Paulo: Ed. Pioneira, 2000: 153p.
SILVEIRA, L.F.B. Observe-se o fenômeno: forma e realidade na semiótica de Peirce. In: 1º. Encontro Internacional de Semiótica, Araraquara, outubro de 2003.
SILVA, T.T. Antropologia do ciborgue: as vertigens do pós-humano. Belo Horizonte: Autêntica, 2000: 142p.
VIEIRA, J.A. Ciência, arte e o conceito de Umwelt. In: MEDEIROS, Maria Beatriz de (Org.). Arte e tecnologia na cultura contemporânea. Brasília: Dupligráfica, 2002: p. 47-54.
VITA, L.W. Introdução à Filosofia. São Paulo: Melhoramentos, 1965: 254p.

Notas:

[1]Resumo de Dissertação de Mestrado , defendida na PUCSP em março de 2003.
[2]A noção de suporte nesse trabalho não diz respeito a um receptáculo passivo, ao contrário, ele é dinâmico, o que provoca um diálogo, uma relação entre o corpo, o ambiente e ele próprio.
[3]Para Peirce qualquer ser que responda a um estímulo possui uma mente e o universo é mente que tudo engloba.

Revista Digital Art& - ISSN 1806-2962 - Ano II - Número 02 - Outubro de 2004 - Webmaster - Todos os Direitos Reservados

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