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REMBRANDT E OS JUDEUS EM AMSTERDÃ: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES ENTRE ARTE E CIÊNCIA
Autora: Ivy Judensnaider Knijnik - ivyjk@terra.com.br

Resumo:

São várias as relações entre a Arte e Ciência e a investigação das formas como essas relações ocorrem nos auxiliam na compreensão do rico quadro de intrincada tessitura da Historia da Ciência. Este artigo se propõe a discutir uma das relações possíveis entre Arte e Ciência, qual seja, a de pesquisar a presença dos judeus na Holanda do século XVII a partir dos olhos de Rembrandt. Assim, não se trata apenas de utilizar as obras do artista como documento histórico desse período, mas também o de perceber, a partir da temática dos seus quadros, a cultura holandesa, as relações entre as comunidades flamenga e judaica e, em especial, a inserção do Realismo no contexto do pensamento científico do período. Rembrandt, ao retratar os judeus, não se presta tão-somente a captá-los como se fosse uma máquina fotográfica: o seu olhar decodifica, reinterpreta, adiciona e soma a riqueza resultante do convívio entre diferentes culturas e a multiplicidade dos conhecimentos colocados à disposição do homem.

Palavras-chave: História da Ciência, Rembrandt, Judeus na Holanda, século XVII.

Abstract:

The connections between the Arts and the Sciences are diverse. In this article a discussion of one of the many possible connections between the Arts and the Sciences is made. That is, the Jewish presence in Holland in the 1700s through the eyes of Rembrandt. The work of this artist is thus not merely used as an artistic document of this era; moreover, it is used to perceive, from the themes of his paintings, the Dutch culture, the connections with the Jewish communities, and specially the “insertion” of Realism in the context of the scientific thinking of that time.

Key-words: History of Science, Rembrandt, Jews in Holland, 17th. Century.

São várias as relações entre a Arte e Ciência e a investigação das formas como essas relações ocorrem nos auxiliam na compreensão do rico quadro de intrincada tessitura da Historia da Ciência. No campo da literatura, por exemplo, podemos investigar o olhar cósmico da poesia de Haroldo de Campos, ou estudar a noção de tempo nas obras de Graciliano Ramos e Deleuze.

“Nas ‘encruzilhadas’ e intersecções da física, filosofia, história e das artes, muitas vezes, as divergências conceituais a respeito de um assunto acabam por enriquecê-lo. Sabemos que o tempo para física não é o mesmo que para a literatura, assim como para a filosofia. Entretanto, não há dúvida de que novas descobertas possibilitam e induzem, quase que obrigatoriamente, a revisão e o questionamento de antigos posicionamentos e o diálogo entre todas as áreas do conhecimento, incluindo o campo artístico”.[1]

Os mosaicos fragmentados do saber, cuja organização faz parte do trabalho do historiador do conhecimento, são também repletos de imagens: pinturas, gravuras, iluminuras, ilustrações de manuscritos e livros. Uma das formas possíveis de estudar Arte e Ciência, por exemplo, é a investigação das conexões entre a Química e as imagens dos tratados alquímicos: aqui, podemos transitar pela historia das técnicas químicas/alquímicas, pela historia das técnicas de representação (praticas, de transformação do material) ou pela análise das imagens simbólicas (ligadas às concepções religiosas e/ou filosóficas). Uma linha de pesquisa extremamente interessante é, por exemplo, compreender o saber alquímico como forma legitima de conhecimento e, nesse sentido, estudar as imagens “não só como um dado mas como o resultado de um processo de elaboração em que, tanto a concepção a ser transmitida, quanto as possibilidades e as limitações da técnica artística escolhida, interagiam”.[2]

Outra maneira de relacionarmos Arte e Ciência é através do estudo das contribuições que ambas podem dar, com diferentes olhares em direção ao mesmo objeto, para a compreensão do mundo e da natureza. Um exemplo dessa linha de trabalho pode ser encontrado nas críticas de arte do Professor Mário Schemberg. Para ele,

“entre a arte e a ciência não há uma diferença radical, mas, enquanto atividades criativas, há uma questão de tom.(...) Sua reflexão era uma busca de compreensão de processos evolutivos, mesmo quando reprimidos, fossem eles processos sociais, individuais, existenciais, conceituais, cósmicos. Sua leitura da obra de arte era sempre a procura de sinais que revelassem compreensões de processos profundamente enraizados na realidade”.[3]

Este artigo se propõe a levantar o debate sobre algumas relações possíveis de serem estabelecidas entre Arte e Ciência, por exemplo, pesquisando a presença dos judeus na Holanda do século XVII a partir dos olhos de Rembrandt. Assim, não se trata apenas de utilizar as obras do artista como documento histórico desse período, mas também o de perceber, a partir da temática dos seus quadros, um pouco da cultura holandesa e das relações entre as comunidades flamenga e judaica nesse contexto.

Para compreender a vida e a organização social dos judeus portugueses na Holanda, é importante refazermos o caminho e a rota que os levaram até lá. Esse trajeto tem início em 1492, com a expulsão dos mouros na Espanha e a decisão da coroa espanhola de converter todos os infiéis. Com isso, a Espanha exportou para Portugal perto de cem mil judeus, que nesse país se refugiaram. Em 1495, D. Manuel, monarca português, resolveu esposar a filha dos reis da Espanha e, respeitando a condição imposta para que isso ocorresse, concordou em acabar com o judaísmo, preocupação especial da coroa espanhola em relação à questão religiosa em seu império.

É assim que temos, em 1497, o primeiro batismo em pé das crianças judias como estratégia para forçar os pais à conversão. Ao mesmo tempo em que obriga os judeus a abraçar a fé católica, o rei português se compromete a não investigar a prática religiosa dos recém-convertidos. No entanto, as medidas e decisões contrárias aos judeus vão se repetir ao longo dos anos seguintes, com proibições de deixar o reino e, posteriormente, períodos de menor hostilidade.

O momento mais difícil para os judeus se dá em 1536, com a instituição da Inquisição. Em 1540, ocorre o primeiro auto-de-fé em Lisboa e a situação dos judeus, cristãos novos, criptojudeus e judaizantes se torna bastante delicada. As perseguições recrudescem e o desterro para o Brasil como forma de castigo e instrumento de colonização forçada passa a ser utilizado pela coroa portuguesa. Aqui no Brasil a situação também não é das melhores. As visitações do Santo Ofício em território brasileiro (de 1591 a 1595 e a segunda, de 1618 a 1623) tornam o Brasil um refúgio sem muita segurança para os judeus que tentavam escapar das garras da Inquisição em Portugal.

“As visitações do Santo Ofício ao Brasil de 1591 a 1595 à Bahia, Pernambuco e adjacências e a de 1618 a 1623, às mesmas regiões, são provas do pouco conhecimento do judaísmo. O que sobrou, em primeiro lugar, de usos e costumes, foi não comer carne de porco, lebre, coelho, peixe sem escamas, fritar em azeite em vez de banha, limpar a casa nas sextas-feiras, botar roupa limpa no sábado, não trabalhar nem cozinhar naquele dia, etc”.[4]

É nesse cenário que a Holanda aparece como porto para os judeus, “à sombra de leis tolerantes que lhes permitiam o exercício livre de seu culto e lhes garantiam uma relativa autonomia na administração interna dos assuntos da Comunidade”.[5] Embora estivesse sob poder do rei espanhol, a Holanda não permitiu a ação da Inquisição Espanhola que, apesar dos esforços envidados, não conseguiu se estabelecer em território holandês. Após a Guerra dos Trinta Anos, iniciada em 1618, foi estabelecida a independência da Holanda e a igreja reformada holandesa manteve-se na decisão de dar abrigo aos judeus portugueses e espanhóis.

A Holanda recepcionou fugitivos, refugiados e perseguidos religiosos e políticos de toda a Europa. A crise na Igreja Católica a partir do século XIV, com a difusão de seitas heréticas, a corrupção e luxo do clero, a guerra, fome, peste e a venda de relíquias, indulgências e cargos, provocaram rachaduras imensas na estrutura do catolicismo. Em 1530, Lutero, um frade agostiniano, fundamenta as idéias da Igreja Protestante, destruindo a unidade da Igreja Católica européia. Pregando a fé como única fonte de salvação, o fim dos mosteiros, do celibato, da adoração das imagens e do uso obrigatório do latim nos ritos, Lutero desorganiza o monopólio católico, dando início a uma revolução no comportamento religioso de todos os cristãos. Como a Bíblia passa a ser livremente interpretada, a Europa vai assistir ao surgimento de grupos menores diferenciados: na Alemanha, centro da reforma, os Luteranos. Na Suíça, os Calvinistas (seguidores de João Calvino, antigo luterano). Na Inglaterra, os Puritanos. Na Escócia, os Presbiterianos.  Através da negação da autoridade do Papa, a religião escapa das mãos da Igreja e passa para a tutela do Estado.

A religião holandesa desse período tinha caráter familiar e a tolerância religiosa predominava. O calvinismo holandês era proveniente da Franca e praticado pelas classes menos favorecidas. O protestantismo era a religião predominante entre as classes mais abastadas. A Igreja legislava em termos de costumes (escolhendo inclusive o corte de cabelos e desestimulando o uso de jóias), o que acentuava o caráter austero da sociedade. Pregava-se contra o teatro, a dança, o tabaco, o café, as festas populares de origem papista (em homenagem aos santos padroeiros do catolicismo). O ambiente era de multiplicidade religiosa, e abria espaço para todas as seitas, cabalistas, místicos ingênuos e libertinos. Nas escolas, estudava-se a bíblia e as línguas bíblicas (latim e grego), e a liberdade religiosa era tamanha que se admitiam até os católicos, presentes em todos os meios sociais. Deve-se, entretanto, considerar: apesar desse ambiente de aparente tolerância,

“no seio de cada comunidade, as autoridades eclesiásticas não hesitavam em atingir aqueles que consideravam ovelhas desgarradas. Por ter vivido maritalmente com sua empregada, depois de viúvo, Rembrandt foi citado diante do Conselho da Igreja; e sua amante foi excluída da comunhão. A comunidade judaica de Amsterdã excluiu Spinoza de seu seio. Toleravam-se mal as formas agressivas da descrença: em 1642, Fracois Van den Meurs foi lançado na prisão por negar a imortalidade da alma e a divindade de Cristo. É verdade que foi solto ao fim de sete meses”.[6]

A nação holandesa também recebeu os flamengos, ingleses, alemães, escandinavos, franceses, suíços, belgas, e todos aqueles que procuravam o seu território atraídos pela liberdade religiosa, pelo desenvolvimento econômico e pelos ares de convulsionada atividade intelectual e científica. A Holanda acolheu todos os perseguidos, suspeitos e artistas em busca de liberdade de expressão e a multiplicidade cultural impregnou a sociedade de hábitos e costumes provenientes de todos os lados da Europa.

A atividade comercial era imensa. Os trabalhadores se organizavam em guildas[7], corporações com origens nas antigas irmandades medievais. Eram elas que impunham a ética do grupo com fins de protegê-lo, e controlavam as atividades de seus membros com rigor. Cada especialização acabou por se aglomerar em torno de uma guilda. Os alfaiates, peleteiros, luveiros, seleiros, marceneiros, ebanistas, torneiros, cada trabalhador pertencia a uma delas. As guildas perderiam força no final do século XVII, quando a expansão populacional e as pressões do desenvolvimento da grande empresa capitalista provocaram sua desagregação. A redução de poder da corporação caminhou no mesmo sentido da expansão do comércio internacional, e as corporações tornaram-se meros fundos de assistência profissional.

Holanda desse período também foi vanguarda na Medicina e em seu território entraram em conflito os seguidores das doutrinas de Hipócrates, Galeno, Paracelso e Vesálio. A experimentação como método levou à dissecação dos cadáveres e as aulas de anatomia chamavam a atenção de todos, inclusive membros da realeza e indivíduos de importância política. Se tivéssemos que escolher uma imagem que melhor representasse o interesse do homem renascentista pelo corpo humano nos Seiscentos, certamente o quadro A Lição de Anatomia do Dr. Tulp, de Rembrandt, seria a escolhida. Essa tela mostra uma dissecação, transformada em acontecimento público dada a curiosidade de todos na época pelo estudo do corpo e suas funções. No tempo de William Harvey e suas descobertas sobre a circulação do sangue, o que todos gostariam de saber era como seria o corpo humano, como o ser humano se movimentava, o que o movia e como era a sua estrutura interna. Se prestarmos atenção ao olhar do Dr. Tulp, veremos que ele não se fixa no corpo que disseca ou nos seus colegas que o assistem: o Dr. Tulp está olhando para o próprio Criador, talvez sentindo “um embaraço que seria produzido pelo pensamento que inevitavelmente se seguiria à [sua] descoberta: se somos capazes de explicar esse aspecto de nossa natureza, haverá alguma coisa que não seremos capazes de explicar nessa natureza?”.[8] A ciência tinha o gosto pelo concreto, a preocupação com a experiência e a aplicação prática.

Em Amsterdã, onde se fixaram, os judeus se organizaram política, social e religiosamente. Os contratos comerciais, civis e registros tabelionatários revelam a intensa atividade judaica nessa cidade. Data de 1604 a instituição da primeira sinagoga em Amsterdã, Bet Yahacob. Em 1616, temos o registro da venda da Sefer Tora para uma congregação. Em 1610, o primeiro contrato de abate de carne casher. Em 1614, a instalação do primeiro cemitério judaico na cidade. A comunidade judaica se organiza em Amsterdã e, depois, será esse o modelo para as futuras comunidades do Brasil, Londres, Curaçao, sudeste da França e ilhas do Atlântico. Também exportará os lideres religiosos que atuarão no Brasil: Moses Rephael de Aguilar e Isaac Aboab da Fonseca. Os Estatutos e as Atas da Congregação Tsur Israel de Recife (fundada no período do Brasil Holandês), coordenada por esses dois rabinos, dão suporte à percepção de semelhanças no processo de instalação e acomodação das comunidades judaicas espalhadas pelo mundo.[9]

A recepção aos judeus no território holandês, se não foi calorosa (afinal, tratava-se de católicos, convertidos à força, porém católicos), foi bastante pragmática, especialmente em função dos recursos financeiros que trouxeram para a Holanda. Tratava-se de uma relação de mútuos interesses, mais do que amizade ou qualquer outro sentimento de simpatia. São dois os grupos de judeus que se instalaram no território holandês: os sefarditas, portugueses e espanhóis, e os ashquenazitas, de origem alemã. Falavam o ídish, o ladino, português e espanhol. Organizaram escolas rabínicas e fundaram escolas para a educação das crianças. Os judeus se misturaram à comunidade holandesa e os rabinos de Amsterdã, especialmente Menasseh ben Israel[10] (erudito, escritor e fundador da primeira tipografia hebraica dos Países Baixos), tinham um convívio próximo com as principais autoridades e figuras públicas da população cristã, especialmente certos teólogos reformados. Judeus colaboraram para a tradução de uma parte do Talmude para o latim e viviam do comércio do açúcar e pedras preciosas e do mercado de capitais. Foram fundamentais pra a fundação da Bolsa de Amsterdã e investiram nas Companhias das Índias Ocidentais e Orientais.

Os judeus moravam próximos, embora não possamos descrever a vizinhança como um gueto. Apesar de recebidos na comunidade neerlandesa, portavam documentos de “Jewish Nation” e estavam proibidos de empregar cristãos, ocupar cargos no governo, fazer parte das guildas e matricular suas crianças nas escolas. Aliás, mesmo que permitido, os judeus não iriam querer seus filhos recebendo educação cristã e, por isso, montaram a sua própria escola. Assim é que Etz Haym, uma das escolas da comunidade, ensinava durante os cinco anos de seu curso as letras hebraicas, a leitura do Pentateuco, a tradução dos cinco livros de Moisés para o espanhol, o Livro dos Profetas e os comentários do Pentateuco por Rashi. Também organizaram um fundo de assistência para filhas de pais pobres, órfãos e outras sociedades destinadas ao auxílio social, incluindo ajuda para enterro dos necessitados.

As marcas da experiência vividas pelos judeus em Amsterdã, se são resultado – por um lado – do caminho que haviam percorrido antes de chegar à Holanda, por outro são frutos da amálgama de idéias, crenças, avanço científico e condições de liberdade religiosa que seriam características da região nesse período. Em suma, são respostas a condições históricas bastante específicas e, para que possamos trazer aos nossos olhos imagens da vida judaica na Holanda, nada melhor do que observar as obras de Rembrandt que, mais do que qualquer outro artista do período, retratou a comunidade judaica em toda a sua riqueza de diversidade, sofrimento pelo exílio imposto, perseverança na luta pelo direito de praticar a fé escolhida, pujança e necessidade de inclusão na comunidade holandesa.

Como era essa comunidade holandesa – no seio da qual os judeus procuravam se abrigar – em relação à produção artística? A Holanda da Época de Ouro produziu pintores excepcionais: Rembrandt, Van Mieris, Jan Steen, Pother, Van Ravesteyn, Van Goyen, Vermeer, Van Ostade e Brower. O calvinismo, relutante em relação ao humanismo, porém sujeito às influências culturais da época, produziu na sociedade neerlandesa um terreno fértil para a pintura. Assim, o estilo predominante era o da harmonia do desenho, riqueza das cores e a recusa ao sentimentalismo e misticismo. Era o realismo, como reflexo dos desejos da sociedade. Retratava-se o tipo humano, a vida interior e a vida do interior, o núcleo familiar, o cidadão comum na sua atividade cotidiana, evitando-se os temas heróicos, as alegorias, mitologias e símbolos. Buscavam-se os efeitos monocromáticos e o olhar se dirigia para os reflexos e detalhes dos tecidos. Também serão buscadas formas de leitura dos temas bíblicos, adaptada à cultura calvinista e distante da influência dos papistas e católicos. A pintura renascentista procurou retratar a natureza com fidelidade, escolhidos os ângulos mais favoráveis. Era detalhista, tentando captar cada músculo, veia, expressão dos olhos. Eram os indivíduos representados de acordo com a realidade, através de retratos fiéis aos modelos. O Barroco (que tem seu apogeu no período de Rembrandt) vai avançar na arte dos retratos, procurando investigar o papel da luz e da sombra como elementos diferenciadores. As cores eram radiantes ou mergulhadas na sombra. 

“Os holandeses representavam a vida e a natureza, o campo e a cidade com tanta minúcia e precisão que o conjunto de suas pinturas forma um registro pictórico quase completo de sua cultura. Não se deve pensar, porem, que se tratasse de mera transposição. Os pintores holandeses não eram simples imitadores da natureza. Eles sempre reorganizavam o que viam, realçando ou suprimindo traços”.[11]

No que respeita ao comportamento da comunidade neerlandesa, quadros eram considerados objetos de decoração, móveis que serviam para cobrir as paredes nuas. As encomendas aos artistas (e Rembrandt pintou dessa forma) eram a forma da burguesia – que gostava de se cercar de objetos de luxo – gastar o dinheiro que não podia ser investido em lucros comerciais.

Rembrandt nasceu em Leyden, na Holanda, em 1606. Na escola, estudou latim, matemática, geografia e história. É provável que, na Universidade, tenha começado a estudar o hebraico. “Era moda nos círculos intelectuais a leitura de livros do Velho Testamento no texto original. Muitos se devotaram a estudar a filosofia judaica medieval, e os mistérios da cabala”.[12] Depois de trabalhar como aprendiz, se firmou como retratista. Seu primeiro trabalho de expressão é a aula de anatomia do Prof. Tulp e, em conseqüência do sucesso dessa obra, passou a ser requisitado para outras mais importantes e de maior projeção. Rembrandt era um apreciador de obras e objetos de arte e um péssimo administrador de dinheiro e negócios, o que acabou levando-o à falência. Com a morte da primeira esposa, passou viver com sua criada, falecendo em 1669.

A relação de Rembrandt com os judeus pode ser investigada através do exame dos seus quadros. “Judas Returning The Thirty Pices of Silver”, de 1629, mostra letras hebraicas em um dos livros retratados e um Judas transtornado de remorso. O Rabino Menasseh ben Israel também foi retratado por Rembrandt. Abraham Bredius, uma das grandes autoridades em Rembrandt, listou – a partir do conjunto da obra do pintor – aproximadamente duzentos retratos de homens, excetuando-se os que ele fez de si mesmo e de familiares: dentre esses retratos, trinta e sete são de judeus. Apesar do mandamento judaico de não adorar imagens, os judeus contrataram Rembrandt para retratá-los. Tal hábito era mais comum entre os sefarditas, de maior poder aquisitivo. Pode-se levantar a hipótese que tal hábito – o de adquirir quadros com seus retratos – seja um vestígio do período de perseguição, quando os judeus procuravam ter casas iguais aos cristãos. Aos judeus ashquenazitas, restou posarem de modelos para outros inúmeros quadros, como por exemplo “Portrait of a Jew” e “Old Man With Red Fur Cap In An Armchair” (Berlin, Kauser Friedrich Museum) e “Portrait of a Jew”, de 1654 (Groningen, Museum). Rembrandt retratou Ephraim Bueno, famoso médico e pensador, judeu e residente em Amsterdã. Outros quadros seus, de temática judaica, são “The Jewish Bride” e “Portrait of a Man in an Oriental Costume”, Dentre seus esboços, destacam-se “The Jewish Bride” (1635) – uma noiva judia segurando nas mãos a ketubá, documento judaico de contrato de casamento – e “The Synagogue”.[13]

Alguns mitos cercam o trabalho de temática judaica de Rembrandt. Assim, não há evidências que Spinoza seja o homem retratado em “Man With A Magnifying Glass”. Também não há evidências que o poeta sefardita Miguel de Barrios (1625-1701) e sua esposa sejam os modelos de “The Jewish Bride”. A Sinagoga representada no seu esboço não é a Sinagoga Portuguesa de Amsterdã. Tem algumas características da sinagoga ashquenazita e, apesar de representar dez homens na sua porta (o que poderia aludir a um minyam, número de judeus necessários para as rezas), é mais provável que se trate da reprodução da cena já pintada pelo artista em referência a Judas. Rembrandt pintou muitos religiosos, aproximadamente quinze retratados tidos como sendo de rabinos. No entanto, não se pode dizer que fossem todos rabinos. Não existiam tantos rabinos em Amsterdã e é improvável que rabinos de outras localidades tivessem se dirigido até lá para serem retratados por Rembrandt. No caso de “Portrait of a Man in an Oriental Costume”, é de se estranhar não haver em Amsterdã nenhum rabino sefardita tão idoso. Além disso, os rabinos sefarditas não usavam turbantes, peça do indumentário de judeus que vinham dos países islâmicos ou do Marrocos. Também é questionável o fato de Rembrandt ter retratado tantos rabinos, mas não Rephael de Aguilar e Isaac Aboab da Fonseca, moradores de Amsterdã.

O que se conclui é que, apesar de não haver evidência empírica que dê suporte à suposição de uma relação de amizade entre Rembrandt e os judeus, é inegável o fato do tema judaico atraí-lo. Como morador do bairro judeu (sua casa ficava do outro lado da rua em relação à casa do Rabino Menasseh ben Israel), ele teve inúmeras oportunidades de observar o comportamento da comunidade. Além disso, costumava presentear alunos e admiradores de arte com retratos de judeus, objetos de interesse geral. De qualquer forma, a pintura de judeus ocupa uma posição elevada no conjunto da obra de Rembrandt e é através dos seus olhos que podemos vislumbrar a comunidade judaica desse período.

De que forma podemos compreender esse olhar de Rembrandt em direção aos judeus moradores em Amsterdã no século XVII? Sugere-se, inicialmente, que ele seja investigado à luz do contexto do pensamento científico da época. Nesse período, as rotas traçadas em direção ao desenvolvimento do saber são inúmeras: a questão da cosmologia envolvendo a interdependência entre o micro e o macrocosmo, o papel do método indutivo na busca do conhecimento, a contribuição dos antigos (especialmente Aristóteles), as alternativas para a reforma educacional, a crítica à tradição galênica e, finalmente, a discussão teórica e filosófica entre os pensadores da chamada filosofia natural, as tentativas de conciliar dados observacionais ao corpo teórico já existente (especialmente o relativo à herança aristotélica), ou modificar esse corpo teórico para melhor recepcionar as novas descobertas e os desenvolvimentos da ciência.  Juntar-se-ão a esse cenário os filósofos químicos que farão a apologia da observação da natureza e da experiência para o avanço da ciência, embora apoiados em uma cosmologia que hoje nos parece extremamente antiga. Essa cosmologia compreende e estuda o homem, procurando nele as relações existentes no mundo, ou seja, através do estudo dos conhecimentos secretos dos seres terrestres alcança-se o conhecimento do Paraíso. A “Criação” é resultado de um processo químico, relacionando o Gênesis e o hermetismo e a química é considerada a chave da natureza, já que permitiria a compreensão e interpretação de todos os fenômenos, terrenos e divinos. O laboratório é o espaço onde se estuda a ciência, que revela a natureza criada por Deus, e o lugar onde se celebra o casamento entre o céu e a terra. No limite, acreditavam na impossibilidade da Universidade adaptar-se a essas necessidades, pregando ou a inauguração de novas instituições comprometidas com esse saber (incluindo nesse saber o misticismo, o ocultismo, a cabala e outras formas secretas de conhecimento) ou a reforma educacional das instituições já existentes. Trata-se de pesquisar os tesouros do conhecimento antigo (sem fazer alterações ou revisão) ou realizar novas descobertas. Procura-se o conhecimento através do estudo das obras divinas e discute-se o papel de determinados conhecimentos, especialmente no tocante a eles serem capazes de gerar certezas, ao invés de dúvidas. A nova ciência pretendida é aquela comprometida com menos lógica e abstração matemática. Com menos dedução, aritmética e geometria. Menos Aristóteles e Ptolomeu e focada no estudo da realidade, baseado na observação e no experimento. A nova ciência é aquela conduzida pelo raciocínio indutivo, pela harmonia existente entre o grande e o pequeno mundo, pelas descobertas de Copérnico e Galileu. O pensamento baconiano (de Francis Bacon) que aqui se observa é aquele que prega a substituição do aristotelismo pela observação e experimentação da filosofia natural e da mágica natural.

Assim, ao investigar a relação entre a obra de Rembrandt e a presença dos judeus na Holanda a partir do contexto do pensamento da época, torna-se também necessário o exame da religião natural e do espírito messiânico judaico e milenarista cristão dos Seiscentos. A religião natural renascentista também é a religião impregnada de utopias científicas, do espírito messiânico judaico e do milenarismo cristão. São duas as referências bíblicas que dão suporte aos sentimentos messiânicos e milenaristas: as Revelações, de Daniel (que falam do tempo em que será aberto o livro dos Segredos do Mundo) e a Consolação, de Isaías (que fala do exílio e da reunião dos justos). Somadas ao Apocalipse, de João, elas dariam margem às mais diversas interpretações, dentre elas a Segunda Vinda de Cristo, o Juízo Final. Para os cristãos, isso poderia representar a necessidade de conversão dos judeus aos cristianismo e, ao procurarem os rabinos holandeses, descobrem que “estes, mais do que nunca, recusam a promessa cristã porque julgam iminente o cumprimento da promessa judaica”[14] da chegada do Messias. Em Nova Atlântida, Francis Bacon nos diz que o objetivo é ”o conhecimento das causas e dos movimentos secretos das coisas”.[15] Em A Cidade do Sol, Tommaso Campanella fala de uma comunidade ideal, governada por sacerdotes herméticos, que guiavam “o povo com sabedoria e eficácia, graças ao conhecimento dos astros e da magia natural. Como autênticos magos naturais, sabiam utilizar o poder dos astros em benefício dos moradores da Terra”.[16] Nos escritos atribuídos aos rozacruzes, exortava-se a fundar um novo saber, distante de Aristóteles e Galeno.  Em outros escritos, difundia-se o milenarismo, resultado da herança do século XIII, quando o abade calabrês Joaquim del Fiore formulou a noção de milênio, período de 1000 anos de futuro reinado de Cristo mencionado no Apocalipse. Essas obras teriam desencadeado uma febre milenarista na Europa: Roger Bacon teria sugerido o estudo dos segredos da Natureza para enfrentar os exércitos do Anticristo; Francis Bacon dizia que a Reforma deveria ser urgente, já que a Segunda Vinda não tardaria a acontecer. Embora o conhecimento caminhasse na direção de “uma idéia de mutação controlada, uma mudança que não fosse mais um ato de Deus ou um Desastre ou um Dia do Juízo, (...)  os temas do milenarismo estavam destinados a exercer uma influência profunda[17] até o final do século XVII. Assim, a busca do conhecimento, a construção de um novo sistema educacional e a transformação política da sociedade faziam parte da leitura milenarista dos acontecimentos. Já o messianismo judaico encontra suas bases na cabala e, mais especificamente, no uso da cabala como instrumento de preparação para o esperado retorno do homem ao seu estado primitivo antes da Queda, já que a chegada do Messias era eminente. Não à toa, os estudos sobre a Cabala e o judaísmo extrapolam os limites da comunidade judaica: faziam parte do repertório renascentista do saber. Rembrandt, como homem de seu tempo, captava essa perspectiva, esse ambiente de messianismo, milenarismo e utopia.

A análise desse cenário – especialmente em relação ao caráter mágico e hermético da própria Renascença – apontam, nesse momento, para a necessidade de identificar os caminhos que teriam introduzido a Cabala, conhecimento sagrado hebraico, ao arsenal dos homens do saber dos Seiscentos. A magia cabalística, trazida por Pico della Mirandola ao conjunto de saberes dos magos renascentistas, “era espiritual, mas não porque utilizasse apenas o natural spiritus mundi como magia natural, e sim porque tentava entrar em contato com as forças espirituais mais elevadas, além das forças naturais do cosmos”.[18] Para Pico, a cabala confirmava os dogmas do cristianismo, sendo considerada como fonte hebraico-cristã da antiga sabedoria. O paralelismo entre Moisés e Hermes Trismegisto também dava suporte à introdução do conhecimento cabalístico ao arsenal de conhecimentos dos magos renascentistas.

“A cabala prática invoca anjos, arcanjos, os dez sefirot (que são os nomes ou as forças de Deus), e o próprio Deus, recorrendo a alguns processos semelhantes aos mágicos, e particularmente,  à força do sagrado idioma hebraico”. [19]

É a magia que seria impossível manter separada da religião. A cabala, desenvolvida na Espanha durante a Idade Média, apóia-se no conceito dos dez sefirot e das letras do alfabeto hebraico. Concede-se, dentro dessa forma de pensar, importância aos “anjos ou espíritos divinos, que são os intermediários de todo o sistema, arranjados em hierarquias, que por sua vez correspondem a outras hierarquias”.[20]  Seriam as relações entre hermetismo e cabala também responsáveis pela admiração de Rembrandt pelos judeus? A visão de um mundo mágico, resultado da “descoberta (ou redescoberta) renascentista das antigas artes mágicas, estaria estimulando o artista a desenvolver um olhar especial em relação aos judeus?

As obras de Rembrandt devem ser consideradas dentro do panorama da pintura e do mosaico formado pela rede de relações dos vários saberes nesse período. Estabelecendo-se as conexões entre Ciência e Arte, o que vemos é o registro pictórico, de origem barroca, mas carregado de realismo. É a temática religiosa, mas impregnada do misticismo e da magia do novo saber. São as alusões mitológicas e sensuais, o simbólico e o moralizante, são as riquezas do conhecimento que é encontrado na Natureza, obra divina maior. Rembrandt, ao retratar os judeus, não se presta tão-somente a captá-los como se fosse uma máquina fotográfica: o seu olhar decodifica, reinterpreta, adiciona e soma a riqueza resultante do convívio entre diferentes culturas e a multiplicidade dos conhecimentos colocados à disposição do homem. Os seus retratos, realizados com inegável perícia e técnica, ultrapassam a mera observação, agregando a visão de mundo de quem estava “fora da comunidade”, porém avistando-a do ponto de vista de “dentro”. Ele irá trazer – por meio das mágicas sombras, da atmosfera deslumbrante, dos detalhes minuciosos, das cores fortes e da luz penetrante – o retrato não apenas dos rostos judaicos da sua vizinhança: a inserção de Rembrandt , aqui, é no seu próprio tempo.

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LIPINER, E. Os Baptizados em Pé – Estudos acerca da origem e da luta dos cristãos novos em Portugal. Lisboa: Ed. Veja Portugal , 1998. 492p.

ROSSI, P. Naufrágios sem espectador: a idéia de progresso. São Paulo: UNESP, 2000. 158p.

SLIVE, S. Pintura Holandesa: 1600-1800. São Paulo: Cosac & Naify, 1998. 379p.

WEITMAN, R. Y. D. Bandeirantes Espirituais do Brasil. São Paulo: Edição do Autor (no prelo).

WOLFF, E. e F., Judeus Portugueses em Amsterdã. Rio de Janeiro: Ed. ERCA, 1989.100p.

YATES, F. A. Giordano Bruno e a tradição hermética. São Paulo: Cultrix, 1995. 508p.

ZUMTHOR, P. A Holanda no Tempo de Rembrandt. São Paulo: Companhia das Letras/Circulo do Livro, 1988. 392p.

 

ANEXOS:

Anexo 1 - Rembrant, The Syndics of the Clothmaker’s Guild, 1662.


Em http://www.artprints-on-demand.co.uk/noframes/ rembrandt/syndics.htm, em 25/01/04.

 

Anexo 2 - Rembrandt, Doctor Nicolaes Tulp’s Demonstration of the Anatomy of the Arm, 1632.


Em http://www2.uol.com.br/cienciahoje/che/rembran1.htm, em 25/01/04

 

Anexo 3 - Rembrandt, Samuel Menasseh ben Israel, 1636.


Em http://www.wwnorton.com/nael/17century/topic_4/illustrations/imbenisrael.htm,em 25/01/04.

 

Anexo 4 – Rembrandt, The Jewish Bride (The Loving Couple), 1666.


Em http://www.artchive.com/artchive/R/rembrandt/jewish_bride.jpg.html, em 25/01/04.

 

Anexo 5 – Rembrandt, Jews in the Synagogue, 1648.


Em http://www.pasqualeart.com/rembrandt/etchings/Rembrandt50362.html, em 25/01/04.

Notas:

[1] Ver em A M. Haddad Baptista, Bifurcações do tempo-memória em Graciliano Ramos, págs. 15/16.
[2] Ver em M. H. R. Beltran, Imagens de Magia e de Ciência: entre o simbolismo e os diagramas da razão, pág. 18.
[3] Ver em J. L. Goldfarb, Voar também é com os homens: o pensamento de Mário Schemberg, págs. 126/128.
[4] Ver em E. e F. Wolff, Judeus Portugueses em Amsterdã, pág.15.
[5] Ver em E. Lipiner, Os Baptizados em Pé: Estudos acerca da origem e da luta dos cristãos novos em Portugal, pág. 453.
[6] Ver em P. Zumthor, A Holanda no Tempo de Rembrandt, págs. 119/120.
[7] Em Anexo 1, a obra de Rembrant, The Syndics of the Clothmaker’s Guild, 1662, que tem como tema a guilda dos alfaiates. [8] Ver em A. Damasio, Em Busca de Espinosa: prazer e dor na ciência dos sentimentos, pág. 232. Em Anexo 2, obra de Rembrandt, Doctor Nicolaes Tulp’s Demonstration of the Anatomy of the Arm, 1632, que retrata uma aula de dissecação.
[9] Ver T.N. Kaufman, em Passos Perdidos – História Recuperada: A presença judaica em Pernambuco, onde a autora analisa a questão do modelo da comunidade holandesa utilizado posteriormente em outras localidades.
[10] Em Anexo 3, obra de Rembrandt, Samuel Menasseh ben Israel, 1636.
[11] Ver em S. Slive, Pintura Holandesa: 1600 – 1800,  pág. 1.
[12] op. cit., nota 11, pág. 40.
[13] Em Anexo 4, The Jewish Bride (The Loving Couple), 1666. Em Anexo 5, Jews in the Synagogue, 1648.
[14] Ver em M. Chauí, Nervura do Real, pág. 44.
[15] Ver em A. Debus, em El Hombre y La Naturaleza en El Renacimiento, pág. 211.[16] op. cit., nota 15, pág. 214.
[17] Ver em P. Rossi, Naufrágios sem espectador: a idéia de progresso, pág. 57.
[18] Ver em F. Yates, Giordano Bruno e a tradição hermética, pág. 100.
[19] op. cit., nota 18, pág. 100.
[20] op. cit., nota 18, pág. 108.

 

Revista Digital Art& - ISSN 1806-2962 - Ano III - Número 03 - Abril de 2005 - Webmaster - Todos os Direitos Reservados

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