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MÚSICA BRASILEIRA E JAZZ - O OUTRO LADO DA HISTÓRIA
Entrevistas com músicos jazzistas
Autor: André Luis Scarabelot - scarabelot@hotmail.com

Resumo:

Em 2001/2002, enquanto cursando o mestrado nos Estados Unidos, como bolsista do programa Apartes (Capes/MEC), tive a oportunidade de conviver com músicos jazzistas profissionais. Dessa experiência, surgiu o interesse em investigar as impressões daqueles músicos em relação à música brasileira. Tendo como referencial os manifestos modernistas de Oswald de Andrade e a relação “antropofágica” da MPB com o jazz, pudemos confirmar a idéia da bossa nova como “objeto de exportação” originário de uma mistura de elementos, incluídos os assimilados a partir da influência jazzística. Partindo de entrevistas semi-estruturadas, detectamos influências da MPB na música e nos músicos de jazz. Também evidenciamos características singulares da bossa nova em relação ao jazz e analisamos alguns exemplos musicais.  Esta pesquisa visa à compreensão do papel que a música brasileira, em especial a MPB, desempenha no estrangeiro, em particular nos Estados Unidos, e dos elementos que a distinguem do jazz.

Palavras-chave: Música brasileira e jazz. Música popular – Brasil/EUA – Entrevistas. Bossa nova.

Abstract:

In 2001/2002, while pursuing my master’s degree in the USA under the sponsorship of the Apartes program (CAPES/MEC – Brasilia, Brazil), I had the opportunity to be in close contact with professional jazz musicians. During that period, I started to gather the impressions of those musicians about Brazilian music, which led me to this research. Using Oswald de Andrade’s manifestos and his concept of anthropophagi as a theoretical view of the Brazilian popular music (MPB) and jazz’s relationship, it was possible to conclude that the bossa nova - a mix of various elements, including those from the jazz influence - was indeed a fair representation of Andrade’s theories. Based on interviews, we found Brazilian music influences on jazz and jazz musicians alike. We also found specific characteristics that distinguish bossa nova from jazz. Some musical analysis illustrates the research. This research aims the comprehension of the MPB role in the USA, and of the elements that distinguish it from jazz.

Keywords: Brazilian music and jazz. Popular music – Brazil/USA – Interviews. Bossa Nova.

Introdução

Em 2001/2002, enquanto bolsista do programa Apartes (Capes/MEC), interessei-me em investigar as impressões de músicos de jazz norte-americanos a respeito da música brasileira, baseando-me na experiência pessoal de cada músico e na análise dos fenômenos sociais envolvidos. O método de pesquisa utilizado incluiu entrevistas semi-estruturadas, pesquisa biblio-discográfica e pesquisa na internet. Os entrevistados, todos músicos atuantes, são professores do departamento de jazz do California Institute of the Arts (Calarts)/EUA.

Esta pesquisa, ainda em desenvolvimento, visa contribuir para o aprofundamento dos debates e do conhecimento sobre o papel que a música brasileira (MB), com ênfase na MPB, desempenha no exterior, em particular nos EUA, procurando investigar os elementos que lhe são singulares dentro do contexto da música de jazz.

Influência do jazz na MB

Encontramos referências ao jazz no Brasil desde os anos 20. Ary Barroso, por exemplo, entre 1923 e 1928, integrou, entre outras, as orquestras American-Jazz, de José Rodrigues e Jazz-Band Sul-Americana, de Romeu Silva. Já naquele tempo, “o jazz dominava e Ary, de tanto ouvir, através de discos, os melhores pianistas do gênero, acabou se tornando também excelente intérprete” (Grunewald et alii, 1970: 5). Benedito Lacerda, em 1929, também tocou “em orquestras de Jazz, como saxofonista” (Souza Et.Alii., 1988: 90). No Oito Batutas, grupo de Pixinguinha, que retornou de uma excursão à Paris, em 1923, tocando saxofone, “as influências do Jazz eram evidentes: desde o repertório, que passou a incluir fox-trots, shimmys, ragtimes e ritmos que tais, até os instrumentos (que agregaram saxofones, clarinetas e trompetes), passando pelos arranjos adotados” (Souza et alii, 1988: 82). Nos anos 40, com o New Deal [1] do presidente norte-americano Roosevelt a todo vapor, intensificam-se as trocas culturais entre Brasil e EUA, e a absorção de produtos industriais e culturais norte-americanos multiplica-se. Walt Disney [2] produz o filme “Saludos Amigos” (Alô Amigos), onde o “Zé Carioca” recepciona o “Pato Donald”, ao som de “Aquarela do Brasil” de Ary Barroso. Disfarçados de “aventuras musicais como mostra simbólica de união e amizade entre América do Sul, Central e do Norte[3], os EUA usavam o cinema, sua arma cultural mais forte, para conquistar o mercado latino-americano[4]. Com a influência maciça norte-americana, ancorada pelo rádio, pelo cinema, discos e, a partir de 1950, pela televisão, desencadeou-se um processo que trouxe modificações significativas na música brasileira. Nos anos 50, enquanto nos EUA o “Bebop” cedia espaço para o “Hard Bop” de Clifford Brown e Art Blakey, e o “Cool Jazz” de Gerry Mulligan e Chet Baker, no Brasil, o número de clubes, espaços para shows e músicos brasileiros dedicados ao jazz era enorme. Motta (2000) cita o “beco das garrafas”, em Copacabana, "onde era possível ouvir os maiores talentos do jovem jazz carioca, como os pianistas Tenório Júnior e Sérgio Mendes, o trompetista Cláudio Roditi, o trombonista Raul de Souza, (...) e um espetacular jazz-trio, com uma cantora sensacional fazendo scats vertiginosos em “Old Devil Moon”, “But Not For Me” e outros standards americanos” (Motta, 2000: 20)

Dreyfus (1999), em seu livro sobre Baden Powell, cita o bar do Hotel Plaza, no Rio de Janeiro, como “um dos palcos mais badalados da época, (...) centro de memoráveis jam sessions, das quais participavam os jazzistas do Rio, profissionais ou amadores” (Dreyfus, 1999: 46). Baden também tocou no Plaza. Em seu primeiro disco gravado, Apresentando Baden Powell e seu Violão[5], incluiu no repertório cinco clássicos do jazz. Para termos uma outra perspectiva do movimento jazzista no Brasil dos anos 50 e início dos 60, basta citar alguns dos muitos shows internacionais aqui realizados[6]: Tommy Dorsey (51), Dizzy Gillespie (56), Louis Armstrong (57), Woody Herman (58), Nat King Cole (59), Cab Calloway (59), Sarah Vaughan (59), Ella Fitzgerald (60), Benny Goodman (61). Alguns daqueles shows eram financiados pelo departamento de estado norte-americano.                                                                                                                                                                                            

A Bossa Nova (BN), surgida oficialmente em 1958 com o 78 rotações [7] que incluía “Chega de Saudade”, de Vinícius de Moraes e Tom Jobim, e “Bim Bom”, de autoria do próprio intérprete, o violonista João Gilberto, foi a síntese de um conjunto de processos individuais e coletivos que vinham se desenvolvendo na música popular brasileira. Coletivamente, todos os intérpretes e compositores da BN, uns mais que outros, assimilaram elementos já utilizados pelo jazz norte-americano. Tinhorão (1991) diz que, no mesmo espírito desenvolvimentista do governo de Juscelino Kubitschek, “os rapazes dos apartamentos de Copacabana, cansados da importação pura e simples da música norte-americana, resolveram também montar um novo tipo de samba, à base de procedimentos da música clássica e de jazz, de vocalizações colhidas na interpretação jazzística de cantores como Ella Fitzgerald...”(Tinhorão, 1991: 232).

Naves (2001) diz que “os músicos que viveram esse momento são unânimes em relatar que havia “algo no ar”, como se, coincidentemente, todos procurassem por novidades em termos musicais” (Naves, 2001: 13). Já no plano individual, a formação musical e o peso que a influência jazzística representava em cada um dos intérpretes e compositores envolvidos eram bastante diversificados.  Embora Tinhorão (1991) comente, de forma generalista, que “os fundadores do movimento denominado bossa nova haviam chegado à música popular através do jazz...” (Tinhorão, 1991: 232), vários autores parecem concordar que em João Gilberto a MB era o referencial primeiro. Na publicação Brasil Musical, ele é apontado como “um criador de sólida formação brasileira, descendente direto da emissão perita dos primeiros tempos de carreira de Orlando Silva...” (Souza et alli, 1988: 206). Motta (2000), ao comentar sobre a “febre” jazzística em Copacabana por volta de 1960, aponta que “João Gilberto, que tinha começado tudo, tinha muito pouco a ver com tudo aquilo. (...). Os jazzmen gostavam muito de João Gilberto, mas ele não ligava muito para jazz. Preferia Dorival Caymmi e Ary Barroso. (...) Os jazzistas também adoravam Tom Jobim, porque era moderno, dissonante e sofisticado. (...) Mas Tom Jobim não fazia parte da “Turma da bossa nova”. Ele era a bossa nova. Ele e João” (Motta, 2000: 20).

Antônio Carlos, o “Tom” Jobim, iniciou sua formação musical através de eruditos como Koellreutter, Tomás Teran e outros [8]. O músico Ian Guest, que freqüentava o “clube de jazz e bossa” no beco das garrafas em 58 e, posteriormente, foi técnico de som na Odeon, presente na gravação do terceiro LP de João Gilberto, lembra que Jobim e Gilberto não eram freqüentadores assíduos do clube e que nunca ouviu João tocando jazz [9]. Augusto de Campos (1968) diz que a “riqueza da BN está também em suas diferenciações internas. Ao lado da linha sóbria de João Gilberto(...) sempre houve a linha da variação e da improvisação” (Campos, 1968: 56). Baseados nestes dados podemos, de uma maneira geral, em princípio, assumir que a BN envolveu três pilares distintos em sua formação: João Gilberto, interpretando sambas de uma maneira peculiar; Tom Jobim, com sua experiência erudita; e os jazzistas oriundos de Copacabana. As especulações e afirmações sobre o quanto a BN deve sua concepção e parte de seus elementos formadores ao jazz é ainda um campo fértil para pesquisas e estudos específicos. Entre estes elementos, citados freqüentemente na bibliografia sobre o assunto, encontramos a harmonia, com seus acordes “alterados” e sofisticações que já vinham desde a época do rádio, com arranjadores como Radamés Gnatalli e outros. Embora se faça referência constante ao acorde “flat-fifth” (quinta bemol ou quinta diminuta), o qual seria uma influência direta do jazz, numa primeira análise do repertório inicial da BN, este acorde aparece, ligado à alteração também da melodia em relação à tonalidade vigente, apenas em algumas poucas músicas, como “Desafinado” e “Garota de Ipanema”, ambas de Tom Jobim. Outro elemento de análise recorrente, diz respeito à estética musical da BN, que teria buscado suas referências no canto cool de Chet Baker, nas gravações intimistas de Julie London e Barney Kessel, e nos experimentos dos jazzistas californianos como Gerry Mulligan. Outros elementos, como o uso de “turnarounds”, linhas cromáticas e bordaduras melódicas, e da escala “blues”, podem ser assuntos para especulação à cerca de outras possíveis influências jazzísticas.

MPB e o Modernismo.

Tomando como referência os manifestos de Oswald de Andrade, podemos associar os ideais modernistas à relação da MPB com o jazz. A antropofagia traz a idéia da “deglutição” e absorção do “inimigo” para superá-lo. Campos (1968) já via afinidades entre o ideal antropofágico e a BN [10].  Maltz (1993), diz que a metáfora do Manifesto Antropofágico [11] é a “metáfora de resistência ao pensamento, à história oficializada pelo dominador e a procedimentos estéticos impostos, que resultaram no prolongamento de ideologia, formas, temas e paradigmas artísticos da Metrópole” (Maltz, 1993: 11). Juntando isso à idéia da criação de um material de “exportação”, um não à simples “importação”, do Manifesto Pau-Brasil [12], podemos associar as influências jazzísticas na MPB e suas resultantes, sobretudo a BN, com os ideais modernistas, no sentido de que estas influências foram absorvidas e transformadas num produto único e original, que acabou virando objeto de exportação, no auge de um processo que caminhou de encontro à quebra dos padrões estabelecidos do choro, do samba, do arranjo, da harmonia, da melodia, da interpretação, etc.

O músico Oscar Castro Neves, ao comentar sobre a BN e o jazz, diz que “foi o fechamento de um círculo: porque eu cresci ouvindo jazz, e foi legal ver como a música brasileira estava deixando sua própria marca naquela música norte-americana [13].

O Outro Lado da História

Nos anos 60 o jazz norte-americano encontrou na BN um elemento estrangeiro que foi incorporado à sua renovação estética, assim como havia acontecido com a música cubana na década de 40. Em 1962, o guitarrista Charlie Byrd e o saxofonista Stan Getz gravaram “Desafinado”, no álbum Jazz Samba [14], o qual permaneceu setenta semanas nas paradas da Billboard [15]. Em 1964, o álbum Getz/Gilberto [16] levou “The Girl From Ipanema” às rádios populares dos EUA. Stuart Fox lembra que esse sucesso “trouxe Stan, que estava fazendo carreira na Europa, de volta aos EUA. O Cool ficou popular e Miles um super-herói. [17] David Roitstein acrescenta um dado importante em relação ao sucesso anterior de Carmem Miranda, ao afirmar que “a bossa nova era honesta artisticamente, não manipulada pelo show business, e sucesso comercial”. [18] A unanimidade nas impressões dos entrevistados sobre o resultado do trabalho musical de Carmem nos EUA, revelou um desgosto pelo exagerado apelo comercial e manipulação em suas produções, além de ser vista como uma caricatura, não levada à sério pelos músicos norte-americanos. Larry Koonse diz que o samba e Carmem Miranda representavam algo de “étnico, comunitário, som e sentido de grupo. Algo de difícil aceitação na cultura fortemente racista dos EUA. Já o refinamento harmônico e formal da Bossa Nova penetrou mais facilmente na cultura branca americana”. [19]Em face desse impacto causado pela BN no mercado musical norte-americano e do repertório envolvido, concentraremos nossa atenção principalmente neste gênero e em seu compositor mais conhecido por lá, Antônio Carlos Jobim. Em relação à MB presente no repertório jazzístico, dominam as canções de Jobim. Jamey Aebersold, autor e editor de livros “play-a-long”, incluiu 8 canções de Jobim entre as dez que compõem o volume trinta e um, Bossa Novas [20]. No volume noventa e oito, Antonio Carlos Jobim Bossa Nova [21], todas as doze canções são de Jobim. No Real Book, famoso referencial dos músicos jazzistas, constam, nos três primeiros volumes, vinte e sete composições de autores brasileiros, dezesseis de Jobim. Luis Bonfá aparece com quatro.

Embora Larry Koonse considere a BN um apelo retrógrado às sensibilidades harmônico-melódicas dos anos 50 [22], relacionado ao bebop – e poder-se-ia mesmo ver um retrocesso na questão rítmica, visto que o jazz consolidava a liberação dos padrões rítmicos e a afirmação do baterista como solista – ainda assim, com seus padrões rítmicos de “samba simplificado” e o papel contido do baterista, a BN tornou-se parte da evolução do jazz [23], da qual, segundo Joe LaBarbera, “o ritmo sempre foi fator essencial.

[24] Nas tentativas iniciais de incorporação da BN - que passou pelo filtro cultural norte-americano - o acento lingüístico, modelo rítmico-melódico de toda cultura, é fator de distinção nas interpretações de músicos americanos e brasileiros. Analisando a gravação citada de “Desafinado” em comparação à original de João Gilberto [25], temos uma idéia da diferença no trato do acento rítmico-melódico. O 2/4 original, ao ser interpretado à moda do jazz, em 4/4, tem seu swing original modificado[26]. A execução de ritmos no jazz é muito livre [27], como ratifica LaBarbera, enquanto, no Brasil, o ritmo é parte estrutural da cultura, capaz de movimentar pessoas somente com a percussão. Guardadas as diferenças, a atração pelo ritmo da BN evoca um ponto comum com a música cubana e o próprio jazz - a herança africana. Segundo LaBarbera, a BN, apesar de “relaxada”, trazia uma “sensação de movimento rítmico maravilhosa”. Koonse reafirma esta atração pelo ritmo “visceral, contagiante, provavelmente advindo da cultura afro”. E diz que toca MB “improvisando ritmos, com alguns padrões tradicionais que nunca são repetidos continuamente. Há sempre uma reação viva. Desse modo, Koonse afirma indiretamente o processo de inclusão da MB no repertório do jazz. Com a sensibilidade de um jazzista - a improvisação em primeiro plano - o ritmo brasileiro é assimilado e incorporado a esse “caldeirão de culturas”, expressão de Fox, ao afirmar que “...nós misturamos tudo. No final temos essas interessantes sínteses de influências de todo o mundo. Eu quero dizer, o próprio jazz”. Antropofagia norte-americana? Fox aponta o elo outra vez: “No novo mundo nós somos todos sínteses de culturas”.

Em relação à harmonia, Fox, que reconhece influências do jazz e dos impressionistas franceses (também via Villa-Lobos) na BN, diz que os aspectos harmônicos e rítmicos, refletidos nas melodias, “são os primeiros referenciais quando penso em música brasileira. Alguns aspectos recorrentes na MB e na BN poderiam explicar parte desta impressão de Fox. Por exemplo, o uso da 6ª maior como apoio inicial da melodia (“Aquarela do Brasil”, “O Que é Que a Baiana Tem?”, “Meditação”), o uso de melodias baseadas na escala pentatônica (“Água de Beber”), e a reiteração de pequenos fragmentos melódicos conduzidos por harmonias extremamente elaboradas. No final de “Se Todos Fossem Iguais a Você”, o simples motivo de segunda, sensível e tônica se entende por oito compassos sobre uma harmonia que faz uso de acordes substitutos e inversão para criar uma linha melódica descendente no baixo. Podemos aqui, embasados nos depoimentos, apontar um dos principais, senão o principal fator de distinção, atração e influência da BN - e de Jobim em particular - sobre os músicos de jazz: a condução harmônica. No jazz sempre houve a previsibilidade das preparações de subdominante, dominante e tônica, além da prática comum de usar harmonias padronizadas, como no “twelve-bar blues”, ou “emprestadas” de músicas populares [28]. Guest lembra que, na Berklee School of Music, “era ensinado a não arpejar o acorde e não usar a sexta do acorde na melodia. Típico da mentalidade de base harmônica”. E afirma que “o jazz nunca se importou com linhas horizontais, com contrapontos. Já no Brasil há uma tradição essencialmente melódica, com Pixinguinha, Noel, Caymmi, que se fixou na música brasileira”. Daí resulta que, ao apossar-se de sofisticações harmônicas, Jobim conserva o pensamento melódico brasileiro, traduzido em contrapontos. Roitstein vê a BN como uma música “simples e universal, profunda e complexa ao mesmo tempo”. E usa músicas de Jobim em suas aulas por considerá-las “harmonicamente perfeitas”. Cantarolando “Ana Luiza”, diz que as a linhas do baixo e da flauta “sozinhas permitem desvendar toda a longa harmonia, que se demora em resolver”. De fato, após o rubato inicial, modulando de ré bemol para dó, são vinte compassos até a resolução no acorde de dó maior. Em “Corcovado”, a orquestração original usa uma linha descendente por graus conjuntos, como um fio condutor a afirmar a coerência e unidade da harmonia. Gava (2002) reafirma essa preocupação com as linhas melódico-harmônicas nas músicas da BN, apontando “cromatismos internos e movimento dos baixos”, “camuflagem das funções básicas pela adição de notas e preocupações na condução das vozes”, como exemplos (Gava, 2002: 119 e 125). LaBarbera e Roitstein dizem que a BN é uma “música completa”. Brasil Rocha Brito [29] diz que, na BN, os elementos musicais eram integrados de maneira a não haver a prevalência de nenhum deles. Condução harmônica elaborada, ritmos contagiantes e melodias “humanas”, sempre cantáveis, são termos empregados pelos entrevistados, refletindo esta idéia de “música completa”.

Nas entrevistas, questionamos a tendência de incluir os gêneros da MB sob o termo genérico “Latin Music” (LM). Embora o termo “samba” tenha aparecido com mais freqüência ultimamente, é prática comum chamar de LM estilos musicais das Américas Central e do Sul[30]. A causa aparente seria a dificuldade de discernir as sutilezas de cada ritmo. Aaron Serfaty cita Horace Silver, que descreve sua músicas como “Latin”, mesmo “Brazilian” algumas vezes, mas onde “90% é Cha Cha Cha[31]. Segundo LaBarbera, LM “significa que o compositor não sabe exatamente que ritmo procura e quer que o baterista contribua com o seu conhecimento de ritmos latinos. Fox cita o desinteresse em aprender línguas estrangeiras como um possível paralelo para a prática norte-americana de incluir estilos diversos sob o termo LM. O intercâmbio entre músicos, lentamente, contribui para melhorar este quadro. Serfaty encontrou “frevo”e “baião”, especificados na partitura, somente quando tocou com Dori Caymmi, músico brasileiro radicado em Los Angeles. E cita a ascensão de “ótimos bateristas de MB norte-americanos”, entre eles Michael Shapiro, que já veio ao Brasil com o próprio Dori. Koonse acha que LM é um termo vago, mas que possibilita uma interpretação rítmica mais espontânea. Mesmo levando em conta o já dito – que o ritmo no jazz é bastante livre - temos a impressão da falta de um maior espírito de pesquisa e compreensão dos diferentes ritmos brasileiros, com o que concorda Roitstein ao dizer que, nos EUA, “é bastante comum o fato de pessoas com pouco domínio da linguagem, assumirem que conhecem a MB. Tive essa experiência na escola de música da Universidade de Miami”. São comuns o uso “mecânico” de figuras padronizadas e a simplificação de padrões de dois para um compasso no aprendizado dos ritmos brasileiros.

Os artistas brasileiros, depois de A. C. Jobim, João e Astrud Gilberto, mais citados pelos entrevistados foram Sergio Mendes (sucesso mais ligado ao pop e citado por todos), Airto Moreira e Flora Purim, Dori Caymmi, sendo estes artistas com carreiras desenvolvidas sobretudo nos EUA. Depois aparecem Gal Costa, Elis Regina, Rosa Passos, Hermeto Paschoal, Milton Nascimento, Egberto Gismonti, Dom Um Romão, Luiz Eça e H. Villa-Lobos. 

Para quem quer se aprofundar na MB, nos EUA, encontramos: publicações didáticas, Cds de todas as tendências musicais, shows e aulas em escolas, tais quais a Berklee e a própria Calarts, que usam MB em seus currículos. Prova da facilidade de acesso à MB nos EUA pode estar no fato de que Fox e Roitstein, justamente os únicos que nunca estiveram no Brasil, são os que mais profundamente conhecem e falam sobre a MB. Outro fator de exportação da MB é o movimento de alunos brasileiros estudantes de música em escolas norte-americanas. Fox diz que, desde meados dos anos 80, período inicial do programa de jazz na Calarts, “todos os anos temos contado com a presença de brasileiros”.

Além dos aspectos citados anteriormente - o ritmo, a condução melódico-harmônica e a inclusão no repertório jazzístico - outras influências da MB no jazz puderam ser detectadas. O violão de nylon, por influência de João Gilberto e da BN, passou a ser mais utilizado no jazz [32]. Ainda em relação à instrumentação, verificamos a inclusão de instrumentos como o tamborim, via percussão brasileira, no set tradicional de bateria. Além disso, fechando o ciclo, há a influência da MB no processo de composição de músicos jazzistas.

Cumpre notar que a MB, representada pela BN, tem divulgado o Brasil como nenhuma embaixada o fez, parafraseando palavras de Roberto Moura [33]. Porém, acredito que interesse e esforço oficial maiores, incluídas as gravadoras multinacionais, trariam mais eficácia na divulgação precisa de nossa cultura. Não para que ela seja reproduzida fielmente, porque a “antropofagia” no jazz ocorre naturalmente, como já vimos. Mas para evitar, por exemplo - e não cabe aqui citar em pormenores as tantas vezes que testemunhei isso, nos EUA - o uso de nomes e traduções erradas, em Cds e livros. A parte positiva é que a MB é uma “língua” que tem sido ouvida, respeitada e aprendida por norte-americanos, com um potencial de influência enorme. Para finalizar, as palavras de Roitstein a respeito disso: “Quando encontro pessoas estudando a real MB profundamente, os resultados são fantásticos. Só podem fazer coisas boas”.

Referências:

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GAVA, J.E. A Linguagem Harmônica da Bossa Nova. São Paulo:UNESP, 2002.<
GRIDLEY, M.C. Jazz Styles: History and Analysis. USA:Prentice-Hall, 2000, 7th ed.
GRUNEWALD, J.L. (et alii.) História da Música Popular Brasileira. Ary Barroso.Vol.5. São Paulo:Abril Cultural, 1970.
KARAM, S. Guia do Jazz. Porto Alegre:L&PM, 1993.
MALTZ, B.F. “Antropofagia: Rito, Metáfora e Pau-Brasil”. In: Bina Friedman Maltz, Jerônimo Teixeira e Sérgio L.P. Ferreira. Antropofagia e Tropicalismo. Porto Alegre:Universidade/UFRGS, 1993.
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SOUZA, T. de (et alii.) Brasil Musical. Rio de Janeiro:Art Bureau, 1988.
TINHORÃO, J.R.Pequena história da música popular: da modinha à lambada. 6ª ed. São Paulo:Art Editora, 1991.

Notas:

 

[1] O New Deal tinha como um de seus itens a “Política de Boa Vizinhança” de Roosevelt (1933-1945), que “visava a conquista das Américas pela cultura americana”, segundo a publicação O Globo 70 Anos de História. Rio de Janeiro: Danúbio, 1995, pg.38. Criada em 1933, essa política visava também o antinazismo e a recuperação econômica dos Estados Unidos pós-crise de 1929.

[2] Disney e sua equipe passaram três semanas no Rio de Janeiro, em agosto de 1941, recolhendo material e informações para suas produções. No artigo O Império Walt Disney, de Joana Forlani, há vários dados que confirmam a ligação de WD com a política norte-americana. Em 1941, WD era colaborador do FBI e, após o ingresso dos EUA na guerra, passou a ser requisitado para colaborar com desenhos patrióticos. Quando no Brasil, declarou a importância do Brasil nos EUA ligada à cultura, mas também à posição contrária ao eixo tomada pelo Brasil. Fonte: www.interrogacaofilmes.com, Consulta: 05/2004.

[3] www.disneylatino.com, Consulta: 05/2004.

[4] Walt Disney ainda produziu “Los Três Caballeros” (Você já foi á Bahia?) e o curta-metragem “Pluto and the Armadillo”, onde incluiu elementos brasileiros.

[5] 1959. Philips. Rio de Janeiro.

[6] Ver Francis, André Jazz; tradução de Antonio de Pádua Danesi. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000, pg. 282.

[7] 1958. Emi-Odeon, 14360. Rio de Janeiro.

[8] Ver Jobim, Helena. Antonio Carlos Jobim: Um Homem Iluminado. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996, pg. 64.

[9] Entrevista ao autor em 08/04/2004. Ian Guest é húngaro, radicado no Brasil desde 1957. Autor e revisor de livros e songbooks para a Lumiar editora. Professor na UFMG e em festivais de música.

[10] Ver Campos, Augusto de. “Boa Palavra Sobre a Música Popular”. In: Balanço da Bossa e outras bossas São Paulo: Ed. Perspectiva, 1968, pg. 60.

[11] Publicado na Revista de Antropofagia. Ano 1, Nº1. 05/1928.

[12] Publicado no Correio da Manhã. 18/03/1924.

[13] Em entrevista que integra o encarte do CD Antonio Carlos Jobim the man from Ipanema 1995. Verve 314 525 880-2. EUA. Pg. 29.

[14] 1962.Verve V6-8432. CD 314 521 413-2. EUA.

[15] Refere-se à listagem da Billboard Magazine relativa a vendas, execução e renda de shows nos EUA. Jazz Samba figurou em primeiro lugar durante uma semana.<

[16] Stan Getz e João Gilberto, com participações de A. C. Jobim e Astrud Gilberto. 1964. Verve LP V6-8545. CD 314 521 414-2. EUA. No encarte do LP Getz/Gilberto, que ficou 96 semanas nas paradas, Stan Getz comenta sobre a situação crítica do jazz no período pré-descoberta da bossa nova, enquanto Eugene Lees comenta sobre o sucesso das gravações de bossa nova nos EUA.

[17] Entrevista ao autor em 11/2002. Stuart Fox é guitarrista e professor na CalArts.

[18] Entrevista ao autor em 11/2002. David Roitstein é pianista, professor e chefe do departamento de jazz na CalArts.

[19] Entrevista ao autor em 11/2002. Larry Koonse é guitarrista e professor na CalArts.

[20] Aebersold, JameyEUA: Jamey Aebersold, 1984.

[21] Aebersold, Jamey. EUA: Jamey Aebersold Jazz, Inc., 2000.

[22] Koonse faz esse comentário baseado no fato de que o jazz dos anos 60 explorava o pós-modalismo (Coltrane e Miles), o free (Ornette Coleman), e os primórdios do fusion.

[23] Com suas figuras rítmicas sincopadas de maneira peculiar, em semicolcheias ao invés das colcheias tercinadas do jazz, a novidade rítmica da BN foi incluída na linha evolutiva que passou pelos ritmos do dixieland, swing, bebop e afro-cuban. Cumpre notar que a BN, apesar dos clichês rítmicos usados pelos bateristas, não se enquadrava como gênero de música de dança, permitindo maiores sutilezas e improvisos.

[24] Em entrevista ao autor em 11/2002. Joe LaBarbera é baterista e professor na CalArts.

[25] 1958. Emi-Odeon, 78 14426. Rio de Janeiro.

[26] Aaron Serfaty indica os álbuns Double Rainbow, de Joe Henderson (1995. Verve CD 314 527 222-2. EUA ), e Brazilian Love Affair, de George Duke (1979. Epic 12.8751. EUA ), onde há a interpretação alternada de bandas brasileiras e americanas no mesmo álbum, como exemplos da diferença de acento.

[27} Há uma outra diferença importante relacionada com o papel da bateria nos dois gêneros, onde no jazz a condução rítmica é feita no cimbal “ride”, ou de condução, e a caixa e o bumbo são mais improvisados, enquanto na música brasileira, a caixa e o bumbo têm papéis mais definidos e o cimbal é usado eventualmente.

[28] O saxofonista Charlie Parker é conhecido por usar a mesma harmonia para compor diferentes músicas. No Brasil, podemos associar com o samba-enredo e suas harmonias padrão.

[29] Ver Brito, Brasil Rocha. “Bossa Nova”. In: Campos, Augusto de. Balanço da Bossa e outras bossas. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1968, pg. 21.

[30] Fox diz que nos anos 50 era comum chamar de “Latin” tudo que estivesse “ao sul da fronteira”.

[31] Em entrevista ao autor em 11/2002. Aaron Serfaty é percussionista e baterista, e professor na Calarts.

[32] Charlie Byrd foi e é ainda uma referência desta influência. Barney Kessel, apesar de tocar com os dedos, sempre usou a guitarra elétrica. Pat Metheny é outro jazzista reconhecido por empregar elementos da MB e violão de nylon em seu repertório à parte do jazz tradicional.

[33] Ver Moura, Roberto. “Bossa Nova: Os Milagres de um Santo de Casa”. Revista Música Brasileira. 12/1998.

 

Revista Digital Art& - ISSN 1806-2962 - Ano III - Número 03 - Abril de 2005 - Webmaster - Todos os Direitos Reservados

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