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‘ANDREW’ ENTRE SUJEITO E DESTINO: PARADIGMA DO CIBORGUE E RACIALISMO NO CINEMA NORTE-AMERICANO
Autor: Alexander Martins Vianna[1] - alexvianna1974@hotmail.com

Resumo: Há quase dois séculos, se tomarmos “Frankenstein” de Mary Shelley como marco paradigmático, obras de ficção científica na literatura e, partir do século XX, no cinema têm-nos servido como sintomas expressivos singulares de formas de emulação de valores, dilemas e questões que perpassam a nossa sociedade. É isso que pretendo demonstrar com a análise do filme “Homem Bicentenário”, de Chris Columbus, pois defendo a idéia de que em seu enredo e plano expressivo aparece o tema “paradigma do ciborgue” criticamente associado ao tema do racismo, confirmando uma tendência que passou a ser recorrente em muitas experiências cinematográficas inspiradas em obras de Isaac Asimov, tal como pudemos ver no Brasil em 2004 com o sucesso do filme “Eu, Robô”.

Palavras-chave Cinema, Ficção Científica, Pária Social.

Abstract: Since the Mary Shelley’s “Frankenstein”, works of scientific fiction in literature and cinema have shown us, in different scales of art expression, the validity of the construction of themes about social pariahs to help us to do some reflections about values, issues and dilemmas of our own society. We also can see this in Chris Columbus’ movie “Bicentennial Man”, in which I consider to be possible to observe the relationship between racism and “cyborg paradigm”, that is a commonplace in movies inspired by Isaac Asimov’ Works, as such we could observe in Brazil with the success of the movie “I, Robot” in 2004.

Key-words: Cinema, Scientific Fiction, Social Pariah.

Proêmio:

Os temas de ficção científica, tanto em literatura quanto no cinema, fascinam gerações em diferentes faixas etárias. A ficção científica é sempre uma oportunidade para uma comunidade criadora e consumidora de artefatos culturais exorcizar muitos de seus fantasmas, dilemas e medos mais ocultos. Em certo sentido, ela ajuda a criar um olhar exótico sobre o que é próximo à medida que o encena distante no tempo, distante em formas ou distante no espaço. Nesse sentido, pode-se dizer que a ficção científica encena dilemas comunais em roupagens exoticamente familiares, o que explica o seu fascínio. Além disso, esta aparente distância permite que aquilo que é “feio ou vergonhoso” em Nós possa ser projetado no Outro. Por isso, dependendo da forma que uma trama de ficção científica estimula em seu receptor a capacidade de ter empatia ou ódio por este Outro, teremos delineado um maior ou menor borramento da fronteira entre Nós e Eles. Dentre os vários temas possíveis de ficção científica, um que particularmente me fascina envolve a relação homem/máquina – e o borramento de suas fronteiras quando as histórias envolvem o jogo de espelhamento entre um processo de subjetivação da máquina e mecanização do humano. A este jogo de espelhamento chamo de paradigma do ciborgue, cujo objeto central, ou seja, o espelho, é a própria busca inconseqüente da perfeição[2].

O dilema dos riscos de uma tentação prometéica da busca, através da ciência, de uma perfeição a qualquer custo, que não mede conseqüências e se perde da sensibilidade – dádiva tão humana –, já foi discutido por Mary Shelley(1797-1851) em seu “Frankenstein ou Moderno Prometeu”(1818)[3]. À medida que a sociedade em toda parte foi sofrendo os efeitos culturais do processo de industrialização, o tema de Mary Shelley foi sendo atualizado na literatura de ficção científica, tomando várias roupagens e criando seus próprios ângulo de refração para novos espelhos. Dando um pulo no tempo, temos o conjunto de obras de Isaac Asimov(1920-1992), sendo que uma delas inspirou uma produção cinematográfica norte-americana: “Homem Bicentenário” (Bicentennial Man, 1999), do diretor Chris Columbus(*1958). A minha atenção recai sobre este filme pela sua proximidade temática em relação ao filme “Inteligência Artificial” (A.I., 2001), produção póstuma de Stanley Kubrick(1928-1999), associado a Steven Spielberg(*1947).

No entanto, diferentemente de “Inteligência Artificial”, o filme de Chris Columbus não alcançou o mesmo sucesso mercadológico. Em larga medida, isso deveu-se a uma associação equivocada, por parte da campanha publicitária, entre a figura do ator Robin Williams(*1952), que fez o papel do robô Andrew, e um “conteúdo pretensamente” cômico do filme. Assim, foi criada publicitariamente uma expectativa de comédia para um filme que tem apelativo marcadamente existencialista, tal como o encontramos no filme de Kubrick-Spielberg.

Em ambos os filmes, os personagens principais são robôs que desenvolvem sentimentos e individualidade existencial de uma forma completamente desprogramática, adquirindo uma subjetividade humana capaz de sonhar e resistir a tudo que seja colocado como “força do destino” ou “programa”. Ao desenvolverem isso, geram um borramento da fronteira entre “mecânico” e “orgânico” e, consequentemente, um dilema ético para uma sociedade que se ciborguiza. Além disso, o robô-adulto(Andrew) e o robô-menino(David) são, do ponto de vista humano, eternos e, portanto, sempre sobreviverão àqueles que amarão.

Entretanto, o drama de serem únicos e eternos tem encaminhamentos distintos no desenrolar temático dos filmes: a saga existencial de Andrew quer provar que vale a pena que os humanos “invistam sentimentos” nele e, por isso, torna-se cada vez mais orgânico – reveste-se, paradoxalmente, da “imperfeição” material humana –, a ponto mesmo de abrir mão da imortalidade; David é programado para amar e para que se possa “investir sentimentos” nele, o que torna dramático e difícil descartá-lo como um utensílio doméstico ou brinquedo, principalmente depois que adquire individualidade e consciência de que sua “mãe” orgânica poderia morrer; Andrew é aceito e protegido pela família que o comprara, devendo vencer apenas o limite físico (e depois jurídico) que colocava barreiras aos “investimentos de sentimentos” de seu núcleo familiar em relação a si.

Não pretendo continuar a estender a lista de comparações entre “Inteligência Artificial” e “Homem Bicentenário”, mas sim devolver a este último o justo lugar que deveria ter como referência para meditação sobre a dignidade humana, ponto central de várias obras de Asimov. Optarei, então, pela narrativa analítica de “Homem Bicentenário”, estando esta norteada pelo tema paradigma do ciborgue. Ao final, demonstrarei o quanto esta temática está geminada com a crítica ao racismo e com o problema da imigração nos EUA.

Em  busca  de  Aceitação Social

Numa tarde do ano de 2005, chega a uma suntuosa casa de subúrbio nos EUA uma encomenda que muito lembra um caixão. Este continha um robô que deveria se tornar um utensílio doméstico útil para a ordem e limpeza da casa. O dono da casa, Richard Martin, pretendia fazer uma surpresa para a família e, por isso, só informa sobre sua compra quando finalmente chegou. Diante de suas duas filhas e da esposa, Richard liga o robô, o que gera uma reação de fascínio e medo, particularmente na filha mais nova que, involuntariamente, acaba por batizar o robô com o nome Andrew, por não conseguir falar “andróide”. Este é o primeiro passo no processo de humanização do robô, pois, aos olhos daquela pela qual ele se apaixonaria, deixava de ser “isso” para ser “Andrew”. Neste primeiro contato, está condensado todo o teor dramático do filme, já que entre Andrew e a “Menininha”(Little Miss) configurar-se-ia uma relação de afeição e amor que apenas seria plenamente resolvida no futuro, com a neta da “Menininha”, Portia Charney. Aliás, é digno de nota ter em conta que a mesma atriz, Embeth Davidtz(*1966), faz tanto o papel da Menininha adulta quanto de Portia.

Depois de ser apresentado à família e ser aos poucos incorporado nela, Andrew passaria por vários processos internos de mutação, o que, aliás, é outro apelativo temático do filme: o ser que, por ter capacidade de escolher, pode se transformar e, assim, vencer as forças do “destino”, fazer o seu próprio destino e, portanto, ser sujeito em vez de objeto. No entanto, podemos perguntar: Qual é o limite entre “transformar-se para ser aceito” e “transformar o ambiente de aceitação”? Esta é uma das grandes ambigüidades que cercam a existência de Andrew.

Richard teve um papel central no processo de humanização de Andrew. Em primeiro lugar, depois que Andrew se apresentou à sua família e mostrou suas diretrizes programáticas de não fazer nada que pudesse colocar um ser humano em perigo, Richard opta por não acionar o “ship de personalidade”, afirmando que aquela na qual Andrew se apresentava era suficiente. Depois, Richard protege fisicamente Andrew da raiva da filha mais velha, que desde o início o rejeitara e que, aproveitando a sua diretriz de obediência aos humanos, ordenara-o para se jogar da janela de seu quarto, causando-lhe alguns danos físicos temporários. Reagindo contra esta atitude, Richard muda o status de Andrew para protegê-lo da sanha assassina de sua filha: admoesta-a lembrando que, mais do que um “utensílio doméstico”, Andrew era um “investimento” e, portanto, qualquer dano a ele seria um dano a uma “propriedade”. O irônico disso tudo é que Andrew ficou com “trauma de janelas” – ou seja, criou para si um dispositivo emocional de autopreservação bastante humanizante.

Seguindo a sua rotina de trabalho, Andrew acha uma velha vitrola e a conserta. Certa noite, Richard acorda ao ouvir, vindo do porão, o som da ópera La Bohéme. Desce até lá e, sem que Andrew o perceba, observa-o intrigado, pois o robô parecia demonstrar sentimento e prazer ao ouvir a música. No entanto, seria outro evento que faria Richard não mais encarar Andrew como uma simples “propriedade”: o fato de Andrew sentir prazer em realizar obras artísticas. A cadeia de eventos que leva a tal desfecho é bastante significativa, pois envolve o aflorar da correspondência afetiva entre Andrew e a Menininha.

Andrew está com a Menininha na praia. Então, ela lhe mostra sua coleção de animais de vidro que, segundo dizia, seria única, já que não mais era fabricada. Ela mostra para Andrew a sua peça predileta (um cavalo) e deixa o robô segurá-la – o que é um gesto de cumplicidade e carinho por Andrew. No entanto, Andrew infelizmente deixa o cavalo cair. Vendo a sua peça predileta quebrada, a Menininha fica muito triste e diz “odiá-lo”. Em função disso, Andrew colhe algumas raízes da praia e leva-as para o seu porão; depois, consegue um livro sobre madeira e escultura e, assim, faz uma versão esculpida em madeira do cavalo perdido. A Menininha fica feliz com a peça substituída e mostra para todos da família. O seu pai fica fascinado com a iniciativa de Andrew em fazer a escultura. No entanto, quando perguntou a Andrew sobre tal fato, o que mais lhe impressionou foi a sua resposta: Andrew disse ter sentido prazer em fazer a escultura.

Frente a isso, Richard leva Andrew até Dennis Mansky, Chefe da NorthAm Robotics, para saber se todos os robôs da sua série tinham as mesmas características, ou se elas eram únicas de Andrew. Dennis tenta disfarçar a surpresa e o interesse frente àquela “anomalia” que fazia Andrew se identificar mais com os humanos do que com seus iguais mecânicos. Se pudesse ter Andrew, Mansky poderia transformá-lo numa cobaia para novos experimentos, ou simplesmente destruí-lo, caso “aquela anomalia” pusesse os negócios da empresa em risco. Por fim, deixando a máscara cair, Mansky afirma abertamente seu interesse em comprar Andrew.

No entanto, Richard se retira de sua sala, dizendo a Andrew que deveriam sair dali, porque a “sua individualidade não tinha preço”. Este é outro passo decisivo no processo de humanização de Andrew, pois Richard propõe-lhe uma mudança em sua rotina de trabalho, dando a ele, como a qualquer indivíduo com consciência e sensibilidade, direito a descanso, cultura e lazer. Assim, Richard começa a estabelecer diálogos amicais com Andrew em sua biblioteca, ensinando-o a história, os valores e os mistérios comportamentais dos seres humanos. Entretanto, Andrew continuava sendo uma propriedade e, como tal, no trato com a sua acolhedora família, vivia uma ambigüidade social (e afetiva) equivalente àquela da menoridade social de um escravo. Apresentado este dilema para o espectador, ocorre então um salto no tempo e, por fim, esta questão será objeto de debate dentro da família.

 A Menininha, agora com  mais de vinte anos, desenvolveu um vínculo afetivo muito intenso com Andrew, o que não passa despercebido de seu pai. Por isso, ela tinha dúvidas sobre se deveria casar ou não com seu namorado, pois o que ela nutria por este era amizade, enquanto por Andrew sentia algo mais do que isso. Em conversa com ela, Richard diria que não valeria a pena “investir sentimento” numa máquina. Tal postura parece estranha vindo da parte dele, mas era coerente: fisicamente, socialmente e juridicamente, embora não espiritualmente, Andrew era uma máquina. Assim, a Menininha decide se casar com o namorado – e chama Andrew para ser padrinho. No entanto, em função disso, mais um passo seria dado em direção ao borramento da fronteira entre homem e máquina, entre Nós e Eles.

Com auxílio de Richard, Andrew havia aplicado seus dotes de escultor para fabricar relógios de madeira. Richard via nisso uma forma de aproveitar os dotes artísticos de Andrew, sem risco de ofender os humanos ou gerar inveja. A casa vivia cheia deles e a sua esposa não agüentava mais seus ruídos, donde saiu a conversa de que deveria se livrar de todos. Este assunto fez com que a Menininha trouxesse a questão de Andrew poder dispor do próprio dinheiro de seu trabalho artístico. Embora achasse um passo inusitado, o seu pai concorda e, assim, Andrew ganha autonomia financeira, conseguindo ter uma renda mensal mais alta do que a renda anual de Dennis Mansky. Daí, com a proximidade do casamento da Menininha, Andrew pôde conversar com Richard sobre a possibilidade de fazer uma reforma em seu rosto, de modo a poder conseguir expressar melhor as emoções que sentia, já que dinheiro não faltaria para tanto. Assim, atendendo ao seu pedido, Richard o leva até o antigo fabricante – e se cerca de todos os meios legais para proteger Andrew de qualquer dano em suas redes neurais. Deste modo, Andrew pôde ir ao casamento da Menininha e expor para ela o seu novo sorriso. Depois do casamento, estando só com Richard, Andrew pergunta se não poderia sempre usar roupas – o que significava mais uma conquista expressiva de individualidade –, pedido a que Richard acede. Então, ocorre mais um salto no tempo.

Andrew aparece lendo um livro na praia ao lado da Menininha. Num primeiro momento, aquela cena dá a impressão de que eles são um casal. O filho da Menininha, Lloyd, hostiliza Andrew, tal como sua irmã mais velha fazia no passado. Lloyd joga areia no livro enquanto Andrew estava lendo. A sua mãe reage prontamente, exigindo que Lloyd pedisse desculpa a Andrew. Lloyd responde dizendo que não pediria desculpa a “isso”. Ela fica mais irritada ainda com o fato de ele referir-se a Andrew como “Isso” e não como “Ele”. Esta antipatia de Lloyd em relação a Andrew tinha um fundamento: a Menininha tornara-se infeliz no casamento e pediria divórcio, mantendo um tipo de relação educadamente conflituosa com o filho, pois via nele uma espécie de extensão da personalidade do marido; ao mesmo tempo, a Menininha mostrava uma afeição muito especial por “Isso”. Portanto, estava armado todo o círculo psicológico de uma antipatia que Lloyd levaria por toda a vida contra Andrew. Ainda na cena da praia, mais um passo seria dado no processo de humanização de Andrew: ele queria ser livre, “comprar” a sua liberdade, já que tanto aprendera sobre ela no livro dos humanos. Enfim, não queria mais ter que seguir ordens, o que seria acabar com um dos últimos fios de contato com sua programação robótica original de “utensílio doméstico”.

A Menininha apoiou a sua decisão, mas Richard não daria a tal idéia uma boa recepção. A cena em que Andrew tenta entregar seus proventos do banco a Richard é uma clara alegoria de um “escravo” que compra a sua alforria do “senhor”. Richard não aceita o dinheiro de Andrew e o manda sair de sua casa, agindo como se Andrew estivesse sendo “mal-agradecido”. Andrew estranha a sua reação, pois não imaginava que, para ter reconhecida a sua liberdade, precisaria sair da “casa do senhor”. Em sua lógica, poderia continuar a servir o seu senhor ou ajudá-lo pelo simples fato de gostar dele, sem que isso fosse o resultado de uma “programação robótica”. Nesse sentido, continuar a fazer a mesma coisa para o senhor sem o status de antes seria para Andrew prova de liberdade/humanidade. No entanto, isso significaria desafiar os velhos hábitos sociais que o enquadravam em outra “pessoa social”. Como Richard não aceitava a nova situação, quis ver Andrew bem longe de suas vistas. Ao se despedir do “senhor”, Andrew faz referência a si mesmo como “Andrew” e não como “Isso”, o que evidencia a sua entrada definitiva num novo paradigma de existência.

Andrew compraria um terreno na praia e construiria a sua casa toda em madeira, passando ali muitos anos. Transcorre o tempo e tudo leva a crer que Andrew nunca deixou de manter contato com a Menininha, que um dia chega à sua casa para informar que seu pai, agora moribundo, queria vê-lo antes de morrer. Ocorre então uma tocante cena de despedida, em que o “senhor” diria a Andrew que estava certo em querer a liberdade. O mesmo tipo de cena de despedida ocorreria anos depois, mas desta vez com a moribunda Menininha. Do ponto de vista roteirístico, é muito interessante esta recorrência, pois tem um significado: Andrew foi a última pessoa que pai e filha desejaram ver antes de morrer.

Depois da morte de Richard, Andrew pediria à Menininha que intercedesse junto a Lloyd, agora influente advogado, no sentido de ajudá-lo a encontrar a sua “espécie”. Inicialmente, Lloyd não quis cooperar na pesquisa dos antigos arquivos da NorthAm Robotics. Entretanto, percebendo que Andrew teria que se afastar de todos por muito tempo para fazer a sua busca, viu nisso a chance de vê-lo longe de sua mãe e, assim, cooperou. Andrew queria saber se havia mais algum robô como ele, já que fazia tempo que a sua série de produção não era mais realizada. Essa procura pelas origens era um outro traço de humanização do robô. Assim, Andrew passaria os primeiros 10 anos numa busca sem resultado, relatando tudo em cartas para a Menininha. Ao final, Andrew descobrira que era efetivamente único, em duplo sentido: como último de sua série que ainda funcionava e único pelo modo como funcionava.

No entanto, o final da jornada de Andrew representou um novo começo: ele encontrara acidentalmente o filho de um cientista da NorthAm Robotics, chamado Rupert Burns. O seu pai havia sido despedido da empresa porque desenvolveu um projeto que pretendia dar aos robôs aspectos mais humanos. Com bastante dificuldade, Rupert Burns conseguira avançar no projeto do pai por conta própria; porém, não tinha mais recursos para desenvolvê-lo plenamente. Assim, Andrew resolveu financiar a pesquisa, sendo ao mesmo tempo objeto, empresário e beneficiado imediato de seus efeitos.

Entre Andrew e Rupert foi se desenvolvendo uma relação de amizade e cumplicidade no decorrer de seus trabalhos de pesquisa. Como primeira novidade, Andrew conseguiu ser revestido por pele artificial e ganhou um novo corpo, adquirindo um aspecto externo mais humano. No entanto, o paradoxo central de todo este processo de transformação era que, para estar mais próximo dos humanos, Andrew não poderia ser perfeito, pois, como lembrava Rupert, eram as imperfeições que geravam a singularidade de cada indivíduo. Este é um outro centro temático do filme que será reforçado até o final: a beleza das “imperfeições” humanas, já que eram elas que faziam com que sua vida fosse movimento, busca, sonho e fantasia.

Somando todo o tempo de viagem de Andrew e o tempo de trabalho com Rupert, passaram-se 20 anos. Andrew pretendeu voltar para ver a Menininha, que estava morando na antiga casa do pai. Quando “chega em casa”, Andrew encontra ao piano quem imaginava que fosse a Menininha, pois tocava-o do mesmo jeito e tinha a mesma aparência. Ele se aproxima dela com familiaridade e, momentaneamente, esquece que seu novo aspecto não era familiar. Ele também pensou que a “Menininha” tivesse passado por alguma “reforma”, já que estava “mais jovem”. Na verdade, tratava-se de Portia, neta da Menininha, que pensou que Andrew fosse um invasor e reagiu hostilmente à sua presença. Quando a Menininha chegou até a sala, foi Andrew que ficou histérico, pois não considerava “justo” que existissem duas Menininhas. Portia achou graça de sua reação e, por isso, ele ficou mais transtornado. Por fim, a idosa Menininha o tomou pelo braço, chamando-o de velho amigo, e explicou que a semelhança era uma casualidade genética, comum nos humanos, que podia pular uma geração. No entanto, malgrado a semelhança externa, Portia era outra pessoa, tinha outra personalidade. Ao saber que Portia era filha de Lloyd, Andrew não perdeu a chance de fazer uma piada sobre o seu comportamento hostil.

A reação de Andrew de não achar justo que existissem “duas Menininhas” também tem um significado que sinaliza para a sua própria condição existencial: enquanto mecanismo que desenvolveu inteligência autônoma e sensibilidade, Andrew era internamente único no mundo e lutava em mudar o seu aspecto externo para que as pessoas que ele amava esquecessem que era uma máquina e, portanto, que investissem nele todo o sentimento que tivessem; enquanto máquina de uma série, existiram no mundo várias que eram externamente como ele, mas estavam longe dele do ponto de vista da subjetividade; de repente, ele consegue para si um aspecto externo único para refletir o seu “eu interior” e, quando “chega em casa”, encontra duas pessoas com personalidades diferentes, com aspectos externos iguais e facilmente aceitas como pessoas únicas. Considerando tudo isso, o mundo não parecia justo com ele.

Andrew teme o envelhecimento da Menininha e tenta se aproximar de Portia. Por isso, vai ao seu apartamento. Chegando lá, descobre que ela trabalha como restauradora de esculturas. Este detalhe é muito significativo, pois cria uma proximidade comportamental com Andrew, restaurando um elo artístico equivalente àquele que tinha com a Menininha. À medida que convivem, Portia vai se apaixonando por Andrew, passando pelo mesmo dilema sentimental da avó. Toda esta situação mexe com Andrew, que começa a estudar intensamente a anatomia e a fisiologia humana, combinando isso com os conhecimentos adquiridos junto a Rupert. Andrew mostra seus projetos a ele, que fica fascinado e, juntos, tentam dar mais um “passo significativo da evolução”, como recorrentemente diziam. As transformações corporais e psíquicas em Andrew, como sempre, ocorreriam paralelamente a uma série de eventos fortemente emocionais.

Passado algum tempo, Menininha sofre um derrame e aparece moribunda no Hospital. Ela quer ver Andrew antes de morrer. Andrew entra no quarto de hospital junto com Portia. Menininha desperta e sorri. Andrew põe a sua mão sobre a dela e vê que ela segura o velho cavalinho de madeira. Depois desta última troca de afeição, Menininha morre. Portia chora intensamente e Andrew lamenta do fundo do coração que tivesse tanto sentimento explodindo por dentro e não pudesse expressar da mesma forma. Algum tempo depois, Andrew visitaria Portia para mostrar uma novidade: o funcionamento de suas glândulas lacrimais. Isso apenas servia para aumentar o desconforto de Portia por amar aquele único ser que a fazia rir tanto. Para resolver isso, Andrew quis dar mais um passo na evolução: adquirir um sistema nervoso central. Ele logo pôde testá-lo durante a festa de noivado de Portia, pois sentiu estar morrendo de ciúmes ao vê-la com o noivo.

Depois de presenciar a explosão do ciúme em Andrew, Rupert tenta consolá-lo e, por fim, diz que estava trabalhando em algo, ainda experimental, que poderia dar a Andrew capacidade de comer, beber, sentir gosto e, passo fundamental, fazer sexo. Eles tinham pouco tempo para por estas evoluções em prática, pois o casamento de Portia estava próximo. Um tempo extra adveio com o fato de Portia pretender restaurar a igreja em que sua avó se casara. Assim, foi neste lugar que Andrew a encontrou para mostrar suas evoluções. Depois de um intenso diálogo, Andrew quis arrancar dela a confissão de que o amava tanto quanto ele a amava. Por fim, pretextando um beijo, ele a abraça – e Portia pôde sentir que não era apenas o beijo que ele queria mostrar. Por fim, eles saem da igreja e têm a sua primeira noite de amor carnal. Portia decide não mais se casar com o “abridor de latas” – alusão jocosa de Andrew pelo fato de o noivo de Portia ter um queixo enorme. No entanto, havia um dilema jurídico a ser resolvido: eles não poderiam oficialmente se casar a menos que Andrew fosse reconhecido como “homem”.

Todo o processo tecnológico de hominização de Andrew não foi útil apenas para seu proveito particular; pelo contrário, as pesquisas para tornar Andrew mais orgânico tiveram desdobramentos úteis para os seres humanos, pois vários órgãos artificiais foram desenvolvidos, funcionando tal como os orgânicos e, assim, as pessoas poderiam viver mais tempo enquanto seus cérebros estivessem vivos. Logicamente, isso permitiu a Rupert e a Andrew fazerem enorme fortuna. Assim, surgiu uma geração ciborgue de pessoas, ou seja, todos em algum grau tornaram-se mecanismos orgânicos aperfeiçoados. No entanto, não devemos esquecer que, na base desta evolução humana, estava o ato de amor de um indivíduo que, nascendo robô, quis paradoxalmente aperfeiçoar-se no sentido de estar mais próximo das imperfeições humanas.

Entretanto, malgrado todo o seu esforço, Andrew não poderia ser aceito juridicamente como humano porque o seu cérebro positrônico era eterno e, como isso não tinha precedentes, poderia causar muita inveja e desordem nas coisas. Nesse sentido, a primeira corte mundial (marcadamente branca, sexagenária e masculina), que julgou o pedido de Andrew de tornar-se juridicamente humano, não o deferiu. Trata-se de uma cena muito tocante, pois Andrew abandona a sala de conferência dizendo: “Isso tem prazer em ser útil”. Nesta atitude, há uma certa melancolia sarcástica que contamina o espectador da cena, pois todos os presentes na conferência eram, em algum grau, ciborgues – mas sem cérebro positrônico. Andrew não poderia ignorar o que a corte lhe dissera, pois a sua eternidade cerebral era algo inegável e, cedo ou tarde, teria que encarar isso na própria pessoa que amava.

O tempo passa e novos aperfeiçoamentos de seu laboratório permitem que as pessoas vivam mais e retardem o envelhecimento: agora, além do transplante de órgãos artificiais, havia ainda a possibilidade de se tomar sucos regenerativos de DNA. No entanto, foi Portia que sinalizou para a anti-natureza de todos estes aperfeiçoamentos. Na verdade, os humanos estavam cada vez mais próximos de se tornarem um mecanismo e Portia – com 75 anos, mas com aspecto de 50 anos – diria a Andrew que queria envelhecer e morrer, em vez de ser consertada, transplantada ou beber sucos de DNA.

Deste modo, surge um novo dilema para Andrew: se Portia não quer (ou não pode) acompanhar a sua imortalidade, então ele deveria buscar alguma forma de acompanhar o seu envelhecimento e morrer. Com tal intento, Andrew dá seu último passo evolutivo em direção à imperfeição humana: consegue um sistema circulatório com sangue de verdade e, deste modo, entra completamente na desprogramação humana da morte, pois não teria mais a certeza da eternidade e não poderia saber quando morreria. Em função disso, fez uma última tentativa, tempos depois, para ser juridicamente aceito como homem e poder casar legalmente com Portia.

Andrew leva mais uma vez a sua demanda para a corte mundial, estando perto de completar 200 anos de idade. O seu aspecto não é mais daquele jovem de outrora, mas de um ancião com traços bem marcados pela velhice. Durante a audiência, presidida agora por uma mulher negra com menos de 60 anos, é dito para ele que não era possível deliberar imediatamente sobre a questão, embora fosse certo considerar que a antiga alegação que o impedia de ser reconhecido como homem não tivesse mais atualidade. Diferentemente da composição da corte mundial anterior – que havia indeferido imediatamente o seu pedido –, a nova era formada por pessoas mais jovens e estava composta marcadamente por negros, asiáticos e latinos, havendo uma relativa paridade entre homens e mulheres. Diferente na composição, desta nova corte viria um veredicto igualmente distinto da corte anterior.

Enquanto Portia e Andrew esperavam a resposta da corte mundial, o processo de senilidade de ambos demonstrava que a morte estava próxima: eles aparecem deitados numa cama com as mãos dadas, mantidos vivos através de aparelhos, sendo cuidados por Galatea, a antiga robô de Rupert, mas agora com aspecto externo completamente humano. Portia pergunta a Andrew porque precisaria da aprovação de todos, já que ela mesma o amava muito e não precisava da justiça para demonstrar isso. Andrew a responde de uma forma muito significativa: com um leve tom de brincadeira, diz que era um hábito antigo que não conseguia largar, já que havia nascido robô. Depois deste breve diálogo, chega o veredicto, via satélite, da corte mundial. Durante o transcurso de todo o ritual protocolar, Andrew morre, não tendo a chance de ouvir que, sendo declarado homem, seria o ser humano mais velho do mundo, posto que naquele dia faria 200 anos.

Portia não lamenta em nada o fato de Andrew não ter ouvido o desfecho de tudo aquilo e pede para Galatea desligar seus aparelhos. Depois de fazer tal pedido, tem um gesto final que demarca o verdadeiro reconhecimento da humanidade de Andrew, e que deveria ter acontecido muito antes de ele ter se tornado “orgânico”: Portia, que segura a mão de Andrew, olha para cima – alusão ao Paraíso Celeste –, dizendo que logo se veriam de novo (como espíritos). Assim, independentemente da forma externa, era para dentro de Andrew que deveria ser olhado para se encontrar a verdadeira humanidade. Enfim, reconhecer nele um espírito humano transcendia qualquer ato formal jurídico, posto que este não teria nunca a perfeição espiritual nascida do amor.

Pseudo-Epílogo:

Quando observamos vários detalhes no desenvolvimento expressivo do enredo de “Homem Bicentenário”, não é possível negligenciar de nossa percepção que Andrew, por representar uma situação de liminaridade social, funcionava como uma espécie de “ser viscoso” que tornava imperfeita a delimitação das fronteiras de valores e regras da sociedade, testando as suas convenções e, por isso mesmo, evidenciando a sua artificialidade. Em termos sociológicos, tal como no conto fantástico de Mary Shelley, Andrew era “monstro”, ou seja, representava um “ser” ou “situação” que, por estar no limite das coisas conhecidas, testava e desafiava a validade dos referenciais ou paradigmas que uma comunidade ou indivíduo possuía para organizar o seu mundo de experiência.

Então, em vez de concluir esta exposição, gostaria de deixar a fronteira bastante aberta e lançar ao vento algumas indagações: Como não enxergar em Andrew a dor da expectativa de afeição numa terra estranha que queria convencê-lo de que o estranho e o inaceitável para afeto era ele? Como não perceber em seu drama pessoal os dilemas de uma sociedade que lida mal com seus problemas raciais, tanto mais incômodos devido ao influxo permanente de imigrantes que, como Andrew, eram subalternizados do ponto de vista jurídico e afetivo, sendo enquadrados socialmente por sua aparência e não pelo seu espírito? Se Andrew consegue ser aceito como humano por uma corte mundial formada por negros, asiáticos e latinos num fictício futuro, o que falta para que estes sejam também reconhecidos no presente como pessoas plenas de direito e afeição nos EUA? Estariam eles condenados a um “destino” concebido artificialmente a partir de sua “programação genética”, de sua exterioridade?... De todos os meios, a história de Andrew não faz ninguém rir e, como a sua, a de tantas outras minorias sociais, culturais e étnicas de nosso planeta...

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Notas:

[1 Professor de História Moderna e Contemporânea do Departamento de História da FEUDUC(RJ); Doutorando em História Social pelo Programa de Pós-Graduação em História Social da UFRJ.

[2]SILVA, Tomaz Tadeu (org.). Antropologia do Ciborgue: As Vertigens do Pós-Moderno. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.

[3]Para saber mais, ver: VIANNA, Alexander Martins. “Novo Moderno Prometeu: O Espelho de Victor Frankenstein”, Parte I. In  Revista Espaço Acadêmico, n.26. Maringá: UEM, 2003; VIANNA, Alexander Martins. “Novo Moderno Prometeu: O Espelho de Victor Frankenstein”, Parte II. In  Revista Espaço Acadêmico, n.28. Maringá: UEM, 2003.

Revista Digital Art& - ISSN 1806-2962 - Ano III - Número 03 - Abril de 2005 - Webmaster - Todos os Direitos Reservados

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