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ARTE É CONHECIMENTO, É CONSTRUÇÃO, É EXPRESSÃO
Autora: Joselaine Borgo Fernandes de Freitas[1]

Resumo:

Este artigo apresenta e busca superar algumas visões simplistas e de senso comum, no que se refere à concepção de arte, a fim de levar o leitor a aproximar-se de uma concepção mais completa da arte e do seu ensino considerando-a como conhecimento, como construção e como expressão. Na primeira parte do artigo são discutidas algumas concepções limitantes ao estilo “Arte é”; na segunda parte, fundamentada em Luigi Pareyson é apresentada uma concepção mais ampla que busca considerar a arte em sua totalidade, enquanto conhecimento, construção e expressão; e, para finalizar, algumas reflexões sobre o importante papel da arte numa sociedade capitalista como o nossa.

Abstract:

This article presents and seeks to exceed some visions simples and of common sense, in what refers to the conception of art, in order to lead the reader it approach of a more complete conception of the art and of his education as knowledge, construction and as expression.  In the first part of the article are discussed some conceptions simples to the style “Art is”; in the second breaks, substantiated in Luigi Pareyson is presented a broader conception than seeks the art in his totality, while knowledge, construction and expression; and, for finalize, some reflections about the important paper of the art in a society capitalist as the ours. 

Palavras chaves: concepções de arte, conhecimento, construção, expressão.

INTRODUÇÃO

Este artigo busca superar visões simplistas e de senso comum, no que se refere à concepção de arte e suas implicações no processo de ensino-aprendizagem. Dependendo da concepção que o professor tiver e, conseqüentemente, da forma como a arte for trabalhada na escola, ela assumirá diferentes papéis em nossa sociedade; sociedade capitalista dividida em classes, em que a divisão do trabalho tem sido fator determinante das relações e desta forma as pessoas estão cada vez mais especializadas, fragmentadas, buscam vencer o tempo, vencer o outro, lucrar... Assim deixam de sentir o mundo e de estabelecer relações estéticas com ele, já que o prático fala mais alto, o estético aparece como menos importante e a arte acaba sendo colocada em segundo plano.

Numa sociedade assim, se limitarmos a arte e o seu ensino a uma concepção ao estilo “Arte é”, limitaremos também seu papel na vida das pessoas.  É preciso caminhar  para  uma reflexão epistemológica: o que não é arte, o que pode ser, buscar métodos para pesquisar, para ensinar... E assim levar as pessoas, que entrarem em contato com a arte, a vivenciar experiências estéticas, como apresenta João Francisco Duarte Junior, no livro O que é beleza: “Experiência estética é a experiência que temos frente a um objeto ao senti-lo como belo”. (DUARTE JR, 1986, p.9)

Com base na minha experiência, acredito no potencial do ensino da arte, arte enquanto conhecimento a ser construído, enquanto linguagem a ser experimentada e fruída, expressão a ser exteriorizada e refletida. Levando nosso aluno a construir, experimentar, expressar e refletir sobre si e o mundo, estaremos considerando a arte como área de conhecimento, com características únicas e imprescindíveis ao desenvolvimento do ser humano. Um ser total –  dotado de emoção e razão, de afetividade e cognição, de intuição e racionalidade – e de uma subjetividade, que não podem ser ignoradas no processo de ensino e aprendizagem da arte, que busca quebras de dicotomias. Os professores são impelidos a escolher entre expressividade e técnica, tradição e inovação, diversão e aprendizagem, mito e profanidade, mágica e estrutura, certo e errado, bonito e feio, como se não existissem equilíbrios e desses elementos, apenas um fosse educativo. 

Ana Mae Barbosa, em seu livro Inquietações e Mudanças no Ensino da Arte, deixa bem claro o potencial desta via de conhecimento ao dizer que:

Por meio da Arte é possível desenvolver a percepção e a imaginação, apreender a realidade do meio ambiente, desenvolver a capacidade crítica, permitindo ao indivíduo analisar a realidade percebida e desenvolver a criatividade de maneira a mudar a realidade que foi analisada. (BARBOSA, 2003, p.18)

A seguir, apresento e discuto algumas visões de senso comum incorporadas por muitos alunos e professores, com o objetivo maior de superar essas visões, ou, simplesmente, de levar os que lerem este artigo a refletir sobre sua concepção de arte e conseqüentemente sua prática.

VISÕES SIMPLISTAS E DE SENSO COMUM

O senso comum coloca como oposição emoção e razão, subjetividade e objetividade, afetividade e cognição... E assim dicotomiza arte e ciência. A primeira apenas como forma de expressão, de lazer, de contágio, de contemplação, como objeto de consumo e, no currículo escolar, como suporte às demais disciplinas – o que era comum até o final da década de oitenta, do século passado – e, a segunda como única capaz de produzir conhecimento.

É preciso refletir sobre estas dicotomias, perceber que um equilíbrio entre elas é possível e assim superar visões do tipo: Arte é o belo, Arte é contágio, Arte é livre expressão, Arte é interdisciplinaridade, Arte é objeto de consumo. Discutindo estas concepções, busco superá-las e assim chegar a uma que considere a Arte como via de conhecimento, carregada de especificidades e conteúdos próprios, capazes de resgatar a totalidade do ser humano, que fruto da sociedade capitalista, encontra-se fragmentado.

Arte é o belo

Uma primeira visão romântica e renascentista é a que associa a arte ao belo, que por algum tempo esteve ligado à noção de Bem (Platão). Para a maioria das pessoas a arte está ligada ao belo e quando indagadas acerca do que se entende por arte, rapidamente, os grandes mestres da Renascença (Leonardo da Vinci, Rafael, Michelangelo) são usados como referência.

Segundo esta concepção, que é a de muitos professores, as obras de arte da Renascença são vistas como belezas a serem contempladas e reproduzidas pelos alunos. E ainda, a criação artística deve seguir rígidos padrões associados ao ideal de beleza, que em verdade é histórico e muda de sociedade para sociedade e ao longo do tempo. E mais, o que é belo para o professor pode não ser para o aluno, e desta forma o professor ignora as culturas jovens por querer impor a sua, em geral, a dominante.

Esta reflexão pode ser ampliada se trouxermos as idéias de Duarte Jr, sobre o que é beleza, ele nos ajuda a pensar que a beleza não tem a ver com formas, medidas, proporções, tonalidades e arranjos pretensamente ideais que definem algo como belo, a beleza não diz respeito às qualidades dos objetos, mensuráveis, quantificáveis e normalizáveis; a beleza diz respeito à forma como nos relacionamos com os objetos – que não precisa ser necessariamente uma obra de arte –, é a relação entre sujeito e objeto. Se tal relação for determinada pela função das coisas teremos simplesmente uma experiência, mas se for determinada pela sua forma, viveremos uma experiência completa, ou seja, uma experiência estética, como nos coloca Dewey:

Nenhuma experiência poderá constituir-se numa unidade, amenos que apresente qualidade estética. (...) Os inimigos do estético são o monótono, a submissão à convenção nos procedimentos práticos e intelectuais.   (DEWEY, 1974, p.251)

Com a noção de belo ampliada a partir do pensamento destes autores poderíamos dizer que arte é mais do que entrar em contato com um quadro de um artista da Renascença, arte é viver uma experiência estética.

Arte é contágio

Outra noção importante de ser ampliada é a de que Arte é contágio; arte não é o simples contágio, simples emoção, como defende Tolstoi, na Teoria do Contágio:

É nessa capacidade dos homens para se deixarem contagiar pelos sentimentos dos outros homens que se baseia a atividade da arte. Os sentimentos, dos mais variados, muito fortes e muito fracos, muito significativos e muito insignificantes, muito maus e muito bons só constituem o objeto da arte se contagiam o leitor, o ouvinte, o espectador. (TOLSTÓI, 1951, p.65)

Esta concepção proposta por Tolstoi limita o sentimento como único objeto da arte. É Vigotsky quem nos ajuda a ampliar esta concepção, trazendo uma comparação de duas impressões artísticas do próprio Tolstoi, uma, suscitada pelo canto de um grande coro feminino que celebrava o casamento de sua filha, e a outra causada pela execução da sonata de Beethoven, por um músico magnífico. O canto das mulheres expressou um sentimento de alegria, ânimo e energia que Tolstoi foi para casa cheio de bondade e alegria. Deste ponto de vista, o canto das mulheres é para ele a verdadeira arte, pois transmite um sentimento forte, enquanto a sonata de Beethoven é uma tentativa fracassada de arte, sem nenhum sentimento definido, sem nada de notável.

Se na minha prática de sala de aula eu tivesse como fundamentação esta teoria, não acrescentaria nada ao universo dos alunos, porque com certeza será muito mais contagiante para eles um rap ou um cantor em destaque na mídia do que Beethoven, Bach, Mozart. Além do mais eu estaria contribuindo para que sofressem mais uma exclusão, a exclusão cultural. Além das tantas que já sofrem!

Portanto, o simples contágio é insuficiente para entender o que é arte.

Em realidade, como seria desolador o problema da arte na vida se ela não tivesse outro fim senão o de contagiar muitas pessoas com os sentimentos de uma. Seu significado e seu papel seriam extremamente insignificantes, porque em arte acabaríamos sem ter qualquer outra saída desses limites do sentimento único, exceto a ampliação quantitativa desse sentimento. (VIGOSTKI, 2001, p.307).

É Vigotsky quem continua a nos ajudar a ampliar esta concepção, trazendo do Evangelho o do milagre da multiplicação dos pães e dos peixes, associado à arte como contágio; caso em que o milagre é apenas quantitativo, pois pães e peixes cada um dos que presenciaram o milagre comia em sua casa, sem qualquer milagre. 

Podemos comparar a arte a um outro milagre, o da transformação da água em vinho, já que o sentido vital da arte implica transformações: a arte recolhe da vida o material, mas produz algo que está acima desse material; como o próprio Vigotsky nos coloca: “a arte está para a vida como o vinho para a uva”. (VIGOTSKI, p.307)

Estas breves comparações propostas por Vigotsky nos fazem entender que:

(...) a verdadeira natureza da arte sempre implica algo que transforma, que supera o sentimento comum, e aquele mesmo medo, aquela mesma dor, aquela mesma inquietação, quando suscitadas pela arte, implicam algo a mais daquilo que nelas está contido.  (VIGOSTKI, 2001, p.307).

A arte transforma quem faz, quem vê e a própria matéria usada. Sendo assim, arte vai além do contágio, é um fazer humano, é uma prática, e como prática, tem uma finalidade, um objetivo, uma intenção.

Arte é livre expressão

A idéia de arte como livre expressão, ainda muito presente nos espaços escolares, surge em decorrência da criação de Lei 5692/71, lei que instituiu a Educação Artística no currículo oficial das escolas de Ensino Fundamental e Nível Médio. Mas a lei limitou-se a implantar os cursos de Licenciatura e sem grandes reflexões acerca da complexidade da arte contemporânea, do seu papel nas escolas e principalmente na vida dos alunos, com raríssimas exceções, o que se via e muitas vezes ainda se vê, é um “laissez-faire”. Um deixar fazer qualquer coisa a partir de uma sensibilização simplista ou da apropriação de sucatas, pouco se importando com a pessoa criadora, nos seus tempos e espaços situacionais e contextuais, como revela a fala de um professor, da rede estadual de ensino da cidade de São Paulo, quando questionado sobre a sua concepção de arte: “Educação Artística deve ser dada de forma mais aberta, respeitando a vontade e o gosto do aluno”.

Agindo desta forma, os professores se omitem e acabam traduzindo o fazer artístico a um simples meio de liberar emoções; levando à alienação da realidade e retirando do processo criativo a importância de aspectos cognitivos.

As artes fornecem um dos mais potentes sistemas simbólicos das culturas e auxiliam os alunos a criar formas únicas de pensamento. Em contato com as artes e ao realizarem atividades artísticas, os alunos aprendem muito mais do que pretendemos, extrapolam o que poderiam aprender no campo específico das artes. E, como o ser humano é um ser cultural, essa é a razão primeira para a presença das artes na educação escolar. (FERREIRA, 2001, p32)

Numa sociedade em que há o predomínio de uma concepção de educação voltada ao cientificismo, o reconhecimento da Arte e de suas especificidades de linguagens, acaba não existindo e ela passa a ser condenada como mero apêndice pedagógico, ou como oposição à ciência.

Quando na verdade, arte e ciência são faces do conhecimento, que se complementam e ajustam-se  perante o desejo de compreender o mundo. A arte não é oposição, nem contradição à ciência, todavia nos faz entender certos aspectos que a ciência não consegue fazer.

Sem uma concepção clara do que é arte, sem conteúdos e objetivos definidos, os professores acabam deixando os alunos se expressarem livremente, como revela a fala de um outro professor, também da rede estadual na cidade de São Paulo, quando questionado sobre sua concepção de arte: “O aluno coloca seus sentimentos mais profundos. O professor, embora sem preparo, faz o papel do psicólogo”.

Estas reflexões ajudam-nos a entender que a idéia de arte como livre expressão trabalha apenas com a dimensão afetiva do ser humano, ignora que no homem, três dimensões estão presentes – a afetiva, a cognitiva e a social – e todas devem ser consideradas no processo de ensino e aprendizagem da arte.

Arte é interdisciplinaridade

Outra idéia bastante presente no espaço escolar é a de que arte é interdisciplinaridade, mas antes de seguir adiante com esta discussão acredito ser importante uma breve explanação deste conceito.

Um texto de Ivone Mendes Richter, publicado no livro Inquietações e Mudanças no Ensino da Arte, pode nos ajudar a entender tal conceito. A autora começa chamando atenção para o prefixo utilizado que pode dar enfoques diferentes, se pensarmos no prefixo “multi”, do termo multidisciplinar, estamos pensando num trabalho entre muitas disciplinas, sem que cada uma perca suas características ou fronteiras; já o prefixo “inter”, do termo interdisciplinar, indica a inter-relação entre duas ou mais disciplinas, sem que nenhuma se sobressaia sobre as outras, mas que se crie uma relação de colaboração, com o desaparecimento de fronteiras entre as áreas do conhecimento.

Com o conceito de interdisciplinaridade mais claro, podemos entender a metáfora que nos apresenta Sandra Lúcia Ferreira de que trabalhar com interdisciplinaridade é como executar uma sinfonia:

Para a execução será necessária a presença de muitos elementos: os instrumentos, a platéia, os aparelhos eletrônicos etc... Todos os elementos são fundamentais, descaracterizando, com isso, a hierarquia de importância entre os membros... Para que a sinfonia aconteça será preciso a participação de todos. A integração é importante, mas não é fundamental. Isto porque na execução de uma sinfonia é preciso a harmonia do maestro e a expectativa daqueles que assistem. (FERREIRA, 2001, p. 34)

A interdisciplinaridade não pode ignorar as especificidades de cada área. Se a interdisciplinaridade acontecer da forma como FERREIRA propõe, ótimo! O que é muito diferente de usar a arte para decorar as festas da escola, para ilustrar texto de Português, ou para ensinar princípios matemáticos via origami, como revela a fala de alguns professores da rede estadual de ensino na cidade de São Paulo sobre sua concepção de arte:

Ela deve concretizar conceitos abstratos das outras disciplinas para facilitar a sua compreensão pelo aluno. Ela é fundamental para ajudar as outras disciplinas”.

 A arte serve como auxiliar das demais disciplinas, pois ela não tem conteúdos próprios”.

Contrário ao que pensam muitos professores a Arte tem conteúdo próprio. Mas, muitas vezes não é isso o que percebemos nas falas dos professores de Arte, como revelou a pesquisa de mestrado de Regina Célia Almeida Rego Prandini (2000). As entrevistas feitas por PRANDINI com professores de uma escola estadual do centro da cidade de São Paulo mostraram que os professores de Arte não têm claros os conteúdos da disciplina que ministram e acabam aceitando, como seus, os conteúdos dos Temas Transversais, como cidadania, sexualidade, ecologia, os conteúdos das demais disciplinas, bem como aqueles referentes as datas comemorativas.

Trabalhar de forma interdisciplinar não quer dizer partir das outras disciplinas e integrá-las à Arte ou colocar a Arte a serviço das outras disciplinas. A Arte não é um meio, é um fim em si. Ela não serve nem é servida. Ela é ela!

Vista desta forma, a interdisciplinaridade será uma questão de atitude. Atitude frente ao conhecimento. É a substituição de uma concepção fragmentada por uma única de ser humano.

Arte é objeto de consumo

Outra idéia presente no nosso meio é aquela que apresenta a arte como um objeto a ser consumido, como um bem a ser adquirido para proporcionar status.

Sabemos que o homem relaciona-se com a arte segundo as influências do seu tempo e no mundo contemporâneo e capitalista em que vivemos tal relação se dá através do consumo, quando tem ou deseja ter uma gravura, um disco, um livro muito bem ilustrado, quando deseja ir a uma exposição, assistir a uma peça de teatro, quando adquiri um quadro para combinar com a parede da sua casa, quando compra uma escultura porque o tamanho dela será perfeito para colocar no corredor... É uma relação puramente consumista, e, muitas vezes elitista.

Sendo considerada como objeto de consumo, como fica a situação dos economicamente desfavorecidos frente à arte? Neste aspecto, a arte passa a ser elitizada, já que os de um nível econômico baixo, não têm acesso a ela. A arte passa a ser mais uma forma de exclusão! Exclusão social e cultural.

O professor deve apropriar-se da cultura de seus alunos, vista muitas vezes como inferior, para poder ampliá-la e fazer com que eles se apropriem da arte de uma forma significativa. Não como um objeto a ser comprado, pelo simples status que ele pode proporcionar, mas como uma área de conhecimento capaz de prepará-los para fruírem e refletirem sobre a produção dos artistas, para olharem dentro de si e para entenderem o emaranhado de coisas que estão no mundo afora.

ARTE É CONSTRUIR, É CONHECER, É EXPRIMIR

Para superar algumas visões de senso comum e não correr o risco de reduzir a arte a apenas um aspecto, recorreremos a um dos mais penetrantes pensadores italianos do nosso tempo, Luigi Pareyson, para ajudar-nos a refletir sobre a arte como construção, como conhecimento e como expressão. Didaticamente separadas, mas que acontecem de forma imbricada, num encontro entre objetividade e subjetividade, consciente e inconsciente, razão e emoção.

Um trabalho artístico passa pela mente, pelo coração, pelos olhos, pelos ouvidos, pela garganta, pelas mãos; que pensa, recorda, sente, observa, escuta, fala, toca e experimenta. Um processo que desenvolve um campo de conhecimento tão importante quanto inatingíveis pela linguagem lógica e científica, tão presentes nos currículos escolares, que ainda são embasados por uma visão positivista, com ênfase no aspecto técnico, importando-se apenas com a mera transmissão de conhecimentos prontos e acabados.

A partir das descontruções do que é a arte, feitas até aqui, pretendo agora, aproximar-me de uma concepção de arte mais completa, que considere o homem um todo que possui três dimensões: a afetiva, a cognitiva e a social. 

Arte como construção

A primeira idéia que PAREYSON nos apresenta é que arte é construção, arte é um fazer, um conjunto de atos pelos quais se muda à forma, se transforma a matéria oferecida pela natureza ou pela cultura, se constrói algo. Essa transformação se dá através do trabalho, de uma techné, que, segundo os gregos, é um modo exato de perfazer uma tarefa.

Segundo esta concepção, tanto os artistas quanto os artesãos tem um processo de produção que envolve uma techné – que para os gregos era um modo exato de perfazer uma tarefa – e também possuem um processo de criação que envolve uma poiesis – conceito de criação –. Em outras palavras: a arte tem tanto um caráter técnico, racional; quanto outro mais subjetivo, ligado ao prazer estético, de quem faz ou de quem frui arte. Com essas palavras verifica-se a limitação da concepção que considera a arte apenas como livre expressão.

Como nos revela PAREYSON, um processo de criação artístico é uma construção que tem dois grandes e fortes alicerces: a imaginação e o trabalho. Desde a Antiguidade houve uma preocupação com a técnica. Podemos perceber isso na Renascença italiana, com preocupações racionais ligadas à perspectiva e à proporcionalidade. Esse caráter sistematizado permanece até os dias de hoje, como um abc do processo de aprendizagem da pintura. A arte do século XX relativiza essas “leis” estéticas, mas como os padrões da Renascença permaneceram resistentes por vários séculos ainda estão presentes no discurso de muitas pessoas, aquelas que têm a primeira concepção de arte apresentada neste artigo, “Arte é o belo”.

Com esta reflexão podemos concluir que arte envolve técnica, mas é importante uma outra reflexão: o grau de subjetividade presente no uso da técnica, como propõe Alfredo Bosi no livro Reflexões sobre a Arte: Até onde chegam as técnicas aprendidas e onde começa a poética pessoal, a forma viva? PAREYSON se encarrega de responder, “o fazer do artista é tal que, enquanto opera, inventa o que deve fazer e o modo de fazê-lo”.(BOSI, 2003, p.16)

 A práxis estética envolve potências lúdicas, críticas e existenciais, envolve também o modo único de ser de cada pessoa. Este pensamento nos chama a intenção acerca da importância de se oferecer aos alunos um contato cada vez mais íntimo com a arte, e isso implica incluir no processo de ensino e aprendizagem algumas questões técnicas, alguns procedimentos artísticos para que a partir deles o aluno crie a sua forma pessoal, única e reveladora de quem ele é.

Arte como conhecimento

Outra questão abordada por PAREYSON é a que apresenta a arte como conhecimento. Iniciaremos com uma análise apresentada por BOSI, feita pela Lingüística indo-européia do termo arte em vários idiomas, começando pelo termo alemão para arte kunst, que partilha com o inglês know, com o latim cognosco e com o grego gignosco da raiz gno, que indica a idéia geral de saber, saber teórico ou prático, portanto um conhecimento. E mais, ars, palavra latina, matriz do português arte, está presente na raiz do verbo articular, que denota a ação de fazer junturas entre as partes e o todo. Mas, como entender este saber?

Desde as mais antigas tradições teóricas, este saber do qual estamos falando, esteve ligado à representação, ou como mímesis, como mera imitação de traços e gestos humanos; ou como reprodução seletiva, do que parece ser mais característico em uma pessoa ou coisa, mas sempre preocupado com o realismo.

Alguns nomes da historiografia moderna, entre eles PANOFSKY, negam tais teorias que reduzem a arte à esfera da pura imitação, pois desde a pré-história os homens usavam a arte de forma diferente, usavam-na para registrar a existência humana.

O ver do artista é um ver afetado pelo pensar; um ver que analisa as formas e cores da natureza e as recompõe com uma nova inteligência do real. Assim, o ver-pensar é um combinar, um repensar, um transformar os dados da experiência sensível, pensamento bem claro na frase de BOSI: “Arte: percepção aguda das estruturas, mas que não dispensa o calor das sensações”. (BOSI, 2003, p.41)

A partir desta frase podemos diferenciar percepção estética e percepção científica. A última apenas manipula as coisas, enquanto que a primeira é causadora de uma experiência singular e poderosa, com presença ativa e pensante do sujeito no mundo. O artista vive o seu tempo, com as visões de mundo, o espírito da época, ideologias de classe e de grupo..., Com universos de valores que se fazem presentes na hora da criação artística e que são vividos com todo o seu empenho intelectual e ético, revelando a idéia de que arte é conhecimento.

Arte como expressão

Você pode estar se perguntando: Arte é expressão?! Mas a idéia de arte como livre expressão não foi desconstruída em páginas atrás? Neste caso uma única palavra altera muito, agora estamos referindo-nos a expressão, anteriormente referíamo-nos a livre expressão. Será que temos claro o termo expressão? O que significa, em geral, “expressão”?  Iremos recorrer ao BOSI para clarificar esta idéia:

A idéia de expressão está intimamente ligada a um nexo que se pressupõe existir entre uma fonte de energia e um signo que a veicula ou a encerra. Uma força que se exprime e uma forma que a exprime. (BOSI, 2001, p.50)

Há uma força e uma forma envolvidas na expressão e dependendo do seu grau de mediação a expressão será do tipo efusão emocional, simbólica ou alegoria. Usaremos um exemplo que BOSI coloca no livro Reflexões sobre a Arte para entendermos esses graus e como proporcionar que nossos alunos passem por todos eles.

Um grito de dor pela morte de um ser amado e uma oração fúnebre recitada em sua memória não são formas expressivas da mesma qualidade. Ambos, o grito e a oração, compõem-se de signos; ambos remetem a uma gênese psíquica, o luto experimentado por quem os proferiu. Mas diferem visivelmente quanto ao grau de mediação que intercorre entre a fonte e a forma. (BOSI, 2001, p.51)

No caso do grito, dizemos que há uma projeção ou efusão emocional, em que a expressão é direta, imediata. No segundo caso, no caso da oração, a expressão foi articulada pela escrita de frases com base em um ponto de vista, desta forma a expressão será simbólica. Mas suponhamos que a mesma pessoa mande esculpir sobre o túmulo do ser amado, uma figura que “interprete” o seu modo de ser, por exemplo, uma águia à qual se associe as virtudes de força e ousadia; nesta caso a expressão será denominada alegoria, pois alcançou uma distância ainda maior entre a imagem e o conteúdo ideal.

Tendo claro estes três graus da expressão ao trabalhar com nossos alunos não devemos limitá-los a efusão, mas propiciar uma abstração tal, que passe pela expressão simbólica e chegue à alegoria.

Outra reflexão importante de ser considerada quando falamos de arte como expressão é a que considera a linguagem como energeia, como “força em ação”, “produção”; opondo-se a dynamis, cujo sentido é o de “força em estado potencial”. A expressão é mais do que um impulso. É um trabalho. E se arte é expressão, neste sentido, é também construção e conhecimento.

Esta reflexão ajuda-nos a entender a diferença entre livre expressão e a expressão de que nos fala PAREYSON, como uma expressão que vai além do simples grito de dor, para chegar à escultura de uma águia.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os currículos atuais, organizados segundo uma visão positivista, para atender os interesses de uma sociedade capitalista, privilegiam o caráter racional e útil das disciplinas, um útil que não vai além do sentido prático que o termo propõe, pois se ampliarmos esse conceito, para além do utilitarismo, veremos o quanto a arte pode ser “útil” para o desenvolvimento de crianças e adolescentes.

Diante desta situação, há um apelo, por parte dos arte-educadores, para que os valores estéticos sejam incluídos no currículo escolar das instituições de ensino brasileiras. Instituições essas que valorizam uma educação baseada numa concepção cientificista, em que muitos professores, inseridos nesta ideologia, deixam seu imaginário ser contaminado pelo mercado e pela mídia, encaram a educação como um caminho para se chegar a um bom emprego e assim conseguir prestígio econômico. Nesta visão simplista e capitalista de sucesso, ignoram a arte e seu potencial, ignoram-na como enriquecedora da prática individual, prática no que diz respeito à construção de sentido, de significado no que fazem, observam e pensam, não no sentido mecânico e imediato que o termo prático sugere.

Numa sociedade em que a divisão do trabalho é fator determinante e as pessoas estão cada vez mais especializadas, a arte seria uma forma de resgatar a totalidade. Totalidade esta, que envolve as várias dimensões do ser humano: afetiva, cognitiva e social, numa relação integradora de emoção e razão, afetividade e cognição, subjetividade e objetividade, conhecimento e sentimento...  Fragmentam-se as funções, fragmentam-se os olhos, fragmenta-se o pensamento e assim as pessoas se tornam incapazes de perceber e atuar na sua totalidade. São pilotos, engenheiros, agrônomos, professores de artes visuais, professores de artes cênicas... São indivíduos fragmentados.

É preciso repensar a educação sob esta perspectiva. Pensar a atividade estética como um brinquedo, como um fim em si. Isso exige contrariar os princípios da sociedade industrial e capitalista em que vivemos, em que tudo é linha de montagem. A arte, assim como o brinquedo, existe em função dela mesma, da alegria que faz brotar.

Esse prazer da experiência estética e lúdica foi banido das escolas e da experiência de vida dos alunos, que amedrontados com o vestibular e com a exigência da eficácia passam sua escolaridade fazendo coisas sem entender, sem rir, sem sentir, sem brincar...

Portanto, o conhecimento artístico não deve ser considerado como um meio para outras áreas do saber, ele não pode ter como objetivo ilustrar os trabalhos de português, geografia, história ou mesmo formar hábitos de limpeza, ordem, atenção, concentração e ser usado como um instrumento para relaxar. O conhecimento artístico deve ser visto como um fim em si, como um saber carregado de especificidades, com objetivos e conteúdos próprios e que, se fundamentado numa concepção estética, que vai além da própria disciplina escolar, que envolve beleza, símbolo e diversidade de linguagens, pode ser considerado como uma forma de sensibilização para além do ensino de artes.

Arte é um trabalho do pensamento, um pensamento emocional e específico que o ser humano produz, com relação ao seu lugar no mundo. Daí a importância de repensar a educação sob a perspectiva da arte e transformá-la numa atividade estética, num ensino criador, em que haja uma integração entre a aprendizagem racional e a estética, para além do ensino de Arte. Assim, conhecer será também se maravilhar, divertir-se, brincar com o desconhecido, indagar a existência humana, interpretar diferentes papéis, arriscar hipóteses ousadas, trabalhar duro, esforçar-se e alegrar-se com descobertas.

Com esta reflexão busquei distanciar-me das visões simplistas e de senso comum que circundam o ensino de arte e aproximar-me de uma visão mais ampla, que considera a arte como via de conhecimento, como capaz de causar uma experiência singular, poderosa e total do sujeito ativo, pensante e transformador que é o ser humano em relação ao mundo em que vive.

Estarei coletando e analisando os dados da minha pesquisa, que tem como objeto de estudo “o papel da arte na educação de crianças econômica e socialmente desfavorecidas”, segundo esta concepção. Foi uma reflexão importante de ser feita, pois o ensino de arte e, conseqüentemente, o seu papel, estão associados à concepção que se tem da arte.

Arte como conhecimento, como a mais importante concentração de todos os processos biológicos e sociais do indivíduo na sociedade, como um meio de equilibrar o homem com o mundo nos momentos mais críticos e responsáveis da vida.  Como motivo de transformação do homem e conseqüentemente da sociedade. É esta transformação pela arte que busco alcançar com as crianças com que trabalho, pois considero que a aprendizagem artística envolve um conjunto de diferentes tipos de conhecimento que visam à criação de significações, exercitando fundamentalmente a constante possibilidade de transformação do ser humano.

“A arte dirá a palavra decisiva e de maior peso. Sem a nova arte não haverá o novo homem”. (VIGOTSKI, p.329)

Referências:

BARBOSA, A. M. (Org.) Inquietações e mudanças no Ensino da Arte. São Paulo: Cortez, 2003. 184p.
BOSI, A. Reflexões sobre a Arte. São Paulo: Ática, 2003. 80p.
COELHO, J. G.; BROENS, M. C.; LEMES, S. S. (Orgs.) Pedagogia Cidadã: Cadernos de Formação – Metodologia de Pesquisa Científica e Educacional. São Paulo: UNESP, 2004. 192p.
DUARTE JUNIOR, J. F. Fundamentos Estéticos da Educação. Campinas: Papirus, 1988.150p.
________. O que é beleza. São Paulo: Brasiliense, 1998. 94p.
FERREIRA, Sueli (Org) O Ensino das Artes: Construindo Caminhos. Campinas: Papirus, 2001, 224p.
MARTINS, M. C.; PICOSQUE, G.; GUERRA, M. T. T. Didática do Ensino da Arte: A Língua do mundo – Poetizar, Fruir e Conhecer Arte. São Paulo: FTD, 1998. 197p.
PANOFSKY, Erwin. Significado nas Artes Visuais. São Paulo: Perspectiva, 2001. 439p.
PARÂMETROS Curriculares Nacionais: Arte / Secretaria da Educação Fundamental. Rio de Janeiro: DP&A, 2000. 130p.
PAREYSON, Luigi. Os Problemas da Estética. São Paulo: Martins Fontes, 2001. 180p.
VIGOTSKI, L. S. Psicologia da Arte. São Paulo: Martins Fontes, 2001. 377p.
ZAMBONI, Silvio. A Pesquisa em Arte: um paralelo entre arte e ciência. Campinas: Autores Associados, 2001. 107p.

Notas:

[1] Graduada em Design pela UNESP / Bauru. Atualmente, é mestranda em Arte Visuais pelo IA / UNESP.

 

Revista Digital Art& - ISSN 1806-2962 - Ano III - Número 03 - Abril de 2005 - Webmaster - Todos os Direitos Reservados

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