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Fiandeiras do cotidiano. Cruzando olhares: Educação, Literatura e Arte*
Autora: Teresinha França Resende de Ozcariz - ozcariz@terra.com.br

Resumo:

O presente ensaio é uma reflexão sobre a minha prática docente em Literatura Espanhola no cotidiano da sala de aula e sobre a Educação como um processo de transformação e construção do conhecimento centrado no aluno. Ele foi elaborado permeando os temas: educação transformadora e reflexiva, texto literário intertexto, e a arte pictórica. Tem como objetivo tecer o conhecimento e fazer novas leituras por meio da intertextualidade, do texto literário e da arte para atingir um desempenho mais significativo do nosso aluno no seu processo de ensino aprendizagem

PALAVRAS-CHAVE: Educação transformadora -reflexiva, intertextualidade, arte.

RESUMEN

El presente ensayo es una reflexión sobre mi práctica docente en Literatura Española en el cotidiano del aula y sobre la Educación como un proceso de transformación y construcción del conocimiento centrado en el alumno. Él fue elaborado permeando los temas: Educación transformadora y reflexiva, texto literario ínter texto y arte pictórico. Tiene como objetivo mostrar como el conocimiento puede ser tejido a partir de la incorporación de nuevas lecturas por medio de la intertextualidad, del texto literario y del arte de modo que venga a lograr un desempeño más significativo en su proceso de enseñanza aprendizaje.

Palabras-clave: educación transformadora- reflexiva; intertextualidad; arte

Fig. 1- Las Hilanderas o "La Fabula de Aracne" de Diego Velásquez Fecha de la obra, alrededor de 1657. Reproduced with permission of Museo del Prado- Madrid

O OLHAR DA ARTE

A arte está presente em todas as culturas, e ela concretiza, em formas, o mundo dinâmico do sentir humano. Por meio da arte os diversos aspectos de nosso sentir nos são mostrados numa determinada conformação, que se oferece à nossa percepção de maneira mais abrangente que outras espécies de símbolos.

Cruzando olhares: educação e arte, uso a obra “Las Hilanderas” para evocar uma série de reflexões pertinentes à educação e ao processo de aprendizagem. Educação é construir o aprendizado por meio de reflexão, da experimentação da observação e, da interação entre educador e educando. O aprendizado não pode ser dirigido e imposto. Esse processo do conhecimento articula-se entre o que é vivido e o que é simbolizado. Assim, permitir por meio da arte uma vivência dos sentimentos é abranger o processo de aprendizado como um todo, e não apenas como disciplinas entendidas como fragmentos empacotados em compartimentos fechados.

Então, pensando em um trabalho pedagógico que intercruze os sentidos da Literatura, da Educação e da Arte, apresentamos para essa abordagem a tela das fiandeiras, figurativizando o fazer pedagógico no cotidiano de nossas salas de aula.

A figura das Fiandeiras representa a fábula de Arácne, de Ovídio, poeta latino, Séc XLIII a.C. Minerva, deusa das artes, que se disfarça de anciã e compete com Arácne, famosa tecelã, na confecção de uma tapeçaria, sendo, por isso transformada em aranha.

Essa tela é um importante suporte para que o aluno se sensibilize e a utilize no decorrer do seu processo de aprendizagem. Ao estabelecer a analogia entre a construção do conhecimento com a produção da teia feita pela aranha, reforçamos a importância do tecer, do pensar e repensar o aprendizado. Nessa imagem, em que as fiandeiras tecem a sua trama, é possível refletir com o aluno como a arte pode integrar conhecimentos e estabelecer relações de significados em uma linguagem pictórica.

Assim, a analogia traçada com o tecer do conhecimento pode ser apresentada, suscitando a compreensão sobre a complexidade dos assuntos que permeiam essa teia, e ressaltada a importância das trocas e inter relações entre aluno e professor. Na sua tarefa, a aranha fabrica o fio, no início, frágil, mas reforça no ir e vir a sua construção. A teia, por ser contínua, de construção gradativa, ligada por pontos estratégicos que recebem influências do meio externo e interno em constante modificação, serve como imagem metafórica desse processo e exemplifica uma concepção de aprendizagem.

Assim reportamo-nos à descrição da obra “Las Hilanderas”, de Velásquez, ressaltando o que afirma Gregolim (1999, p. 57), citada por Ribeiro (2003, p. 22):

“O poder da imagem é o de possibilitar o retorno de temas e figuras do passado, colocá-los insistentemente na atualidade, provocar sua emergência na memória presente. A imagem traz discursos que estão em outros lugares e que voltam sob forma de remissões, de retomadas e de efeitos de paráfrases. Por estarem sujeitas aos diálogos inter discursivo, elas não são transparentemente legíveis, são atravessadas por falas que vêm de seu exterior. A sua colocação em discurso vem clivada de pegadas de outros discursos”.

Nesse sentido, observamos que as imagens, mais do que simbolizar, podem nos levar a outras dimensões do conhecimento, quando provocam as incontáveis possibilidades de leitura e de releituras, propiciando a tessitura de redes de sentido e de significados para além do dizível do texto.

O OLHAR DA LITERATURA NAS LENTES DE PABLO PICASSO, SALVADOR DALÍ E CÂNDIDO PORTINARI

Fig. 2 Pablo Picasso - Don Quixote, 1955.

Ao olhar para a Literatura, nas aulas de língua e de literatura espanholas, evocamos as lentes de Picasso, Dalí e Portinari, para refletirmos sobre a obra de Miguel de Cervantes, D. Quixote de la Mancha. Cada um desses artistas, a seu modo, teve uma forma de ver o Quixote. Com esses olhares transgressores, fazemos um paralelo sobre a prática docente, que também deve ser renovadora, transformadora, buscando sair da mesmice, da repetição de conteúdos, para conseguir um melhor desempenho do nosso aluno no seu processo de aprendizagem.

Fig. 3 - D. Quixote - Salvador Dali.

Miguel de Cervantes usa da intertextualidade para fazer uma releitura das obras de cavalarias, de sua época, criando uma nova história. Por meio de uma paródia, cria uma das mais fascinantes histórias humorísticas de todos os tempos, faz uma crítica severa da sociedade na qual vivia, encarando como uma burla o gosto desmedido de seus contemporâneos por essas obras e mostra-lhes como estavam bestializados por aqueles feitos enlouquecidos.

Rompe com os paradigmas da época, usando a figura de um cavaleiro andante frágil, Dom Quixote, um escudeiro gordo e simplório, Sancho Pança, e uma amada de hábitos comuns e bem humildes, como sua encantadora Dulcinéia de Toboso.

Poucas obras literárias expressam tão claramente e com tanta insistência o objetivo com que foram escritas como o Quixote de Cervantes, reiterativo nesse propósito. No prólogo da 1ª parte, Cervantes afirma que “...que todo ele é uma investida contra os livros de cavalarias”... e que tudo o leva a um olhar mais crítico e disposto a derrubar essa situação exagerada e enaltecedora desses livros, concluindo que:

“Não há sido outro o meu desejo que ressaltar e afirmar as falsas e disparatadas histórias dos livros de cavalarias e que através de D. Quixote já vão tropeçando, e hão de cair totalmente, sem dúvida alguma”.

Fazendo analogia com a nossa ação docente e com a construção do conhecimento, vemos como a obra é pertinente a nossa prática em sala de aula, e como configura um suporte para exercermos as funções didáticas com coragem, rompendo modelos antigos, acomodados na prática docente, para buscar o novo, para renovarmos e superarmos as dificuldades e a passividade que muitas vezes é característica de nossa postura pedagógica. 

Sábio, o Quixote ensina a importância dos sonhos, de acreditar neles, e a necessidade de lutar para que se tornem realidade. O que reitera Freire (2000, p. 25): "O necessário é que o educando mantenha vivo em si o gosto da rebeldia, que, aguçando sua curiosidade e estimulando sua capacidade de arriscar-se, de aventurar-se, de certa forma o “imuniza” contra o poder apassivador do 'bancarismo'".

Em suma, o encanto das palavras (do Quixote) leva o leitor (nosso educando) para além de si mesmo, enriquecendo o seu mundo e as suas expectativas.

O NOSSO OLHAR NO COTIDIANO DA SALA DE AULA

Fig. 4- Picasso/Les Demoiselle d'Avignon, 1907.

Na tela Les Demoiselles d’Avignon, Picasso subverteu o sentido da arte moderna. Rompe com tudo que fora feito até então, abolindo a perspectiva tradicional e sugerindo a terceira dimensão. Daí surgem novos caminhos, novas formas de ver a arte.

Da curiosidade insaciável de Picasso nasce um sopro de audácia, de liberdade, de renovação no qual se misturam lições do passado e o gosto pela inovação[1]". Ele expressou com rara lucidez as tensões do ser humano tomado por seus desejos, suas angústias, seus sofrimentos, suas alegrias. Razão pela qual é apresentado como um ícone para reflexões acerca da necessidade de se romper com os paradigmas durante a construção da aprendizagem no cotidiano da sala de aula, buscando a inovação, a audácia para realizar uma aula mais interativa, mais crítica e reflexiva, em que a perspectiva do saber e da troca entre educandos e educadores seja freqüente. Evocamos novamente as palavras de Paulo Freire para fundamentar essa reflexão.

Faz parte das condições em que aprender criticamente é possível a pressuposição por parte dos educandos de que o educador já teve ou continua tendo experiência  da produção de certos saberes e que estes não podem a eles, educandos , ser simplesmente transferidos. Pelo contrário, nas condições de verdadeira aprendizagem os educandos vão se transformando em reais sujeitos da construção e da reconstrução do saber ensinado, ao lado do educador, igualmente sujeito do processo”.  (FREIRE, 2000, p. 26)

O OLHAR DA EDUCAÇÃO

Ninguém melhor que Pablo Neruda, com sua vida e obra, para orientar o Olhar da Educação, pois pela sua postura crítica, por onde passou, quer em sua terra natal, quer no exílio, promoveu e vivenciou mudanças significativas, assumindo um olhar de compromisso social. E um olhar de Paz, posto que toda sua vida foi uma busca infindável do saber e do redescobrir o mundo. Esse redescobrimento contínuo e surpreendente do universo foi o impulso que o levou a escrever. Ser lúcido, considerava um dever em sua poesia, insistindo em olhar o mundo de olhos bem abertos.

Em sua obra poética exalta o amor apaixonado e mergulha nos abismos da alma, procurando conhecer profundamente o homem inserido num mundo caótico e com preocupação constante pelo compromisso social e político. Ao propagar, em sua poesia, as  belezas da terra sul americana, a realidade cotidiana e os sentimentos desse povo, como ninguém, sempre manteve seu olhar atento a realidade que o rodeia.

O seu maior prêmio foi ser compreendido pelas pessoas analfabetas, descalças, humildes de sua terra, durante tanto tempo maltratadas e negligenciadas pelos governantes.

Dizia que não inventou nada e que escreveu a partir de experiências  de observação sobre a natureza: o mar, os insetos, as pedras , os pássaros. Escreveu também a partir de suas experiências pessoais, de seu conhecimento de mundo, de suas relações com as pessoas “Quando não houver mais olhos sobre a terra, eu seguirei olhando”. (NERUDA, 1998, p. 80)

O seu olhar é como deve ser o olhar do educador, investigador, criativo, perscrutador, indagador.

Nesse sentido, cruzamos também a leitura do livro “A Pedagogia da autonomia, saberes necessários à prática educativa", de Paulo Freire, que aborda temas tais como a ética, o respeito à dignidade, o amor ao educando. Anuncia a solidariedade como compromisso histórico de homens e mulheres como uma forma de promover e estabelecer a ética. Dele queremos deixar registradas estas palavras.

Quando vivemos a autenticidade exigida pela prática de ensinar-aprender participamos de uma experiência total, diretiva, política, ideológica, gnosiológica, pedagógica, estética, e ética, em que a boniteza deve achar-se de mãos dadas com a decência e a seriedade”. (FREIRE, 2000, p. 24)

CRIANÇA GEOPOLÍTICA OBSERVANDO O NASCIMENTO DE UM NOVO HOMEM

Fig. 5- Criança Geopolítica Assistindo ao Nascimento do Novo Homem - Salvador Dali -1943

Este quadro, segundo Nathaniel Harris, soa como uma paródia de todas as previsões otimistas feitas durante a Segunda Guerra Mundial sobre o “novo mundo” que emergiria depois da derrota do fascismo.

Por meio de sua obra, Dalí nos revela a sua conexão com as teorias científicas do século XX, e que chegou a estabelecer relações estreitas com alguns dos matemáticos e físicos mais importantes desse século.

A ciência para Dalí foi uma obsessão, tão importante quanto sua companheira Gala”, lembra Joan Ubeda, produtor de Dimensió Dalí, documentário, exibido em Barcelona por ocasião da celebração do 1º centenário de seu nascimento. “Ele realmente tinha grande prazer em ler sobre ciência e conversar com cientistas[2]”.

Buscava sempre inspiração nas modernas idéias científicas. “No trabalho dele, há uma mistura de discursos diferentes sobre morfologia, biologia, física, psicanálise”, explica o historiador de arte Gavin Parkinson. As descobertas científicas continuavam sua evolução particular na cabeça de Dalí, de onde emergiam transformadas.

No quadro, o novo homem está saindo do globo, cuja pele mole é diferente de uma casca de ovo. Os continentes são fluidos a ponto de se derreterem. A África ocidental deixa cair uma lágrima. O toldo pontiagudo e a mulher, uma figura renascentista, ajudam a dar ao quadro uma atmosfera bastante ameaçadora (as guerras, o terrorismo, a fome, a AIDS) do nosso tempo, mas a presença de uma criança assistindo ao nascimento de um novo homem, serve de suporte para justificar essas reflexões e reforçar a esperança de que essa criança geopolítica seja um modelo para nossas crianças, esperando que de fato possam se transformar em indivíduos mais integrados com o seu mundo.

À guisa de conclusão, com essa tela, chamamos a atenção para a importância dos diálogos que podem ser estabelecidos com artistas que reinventam, ao seu tempo, a sociedade e promovem uma mudança profunda na maneira de olhar o mundo e o ser humano.

Nossos diálogos com Cervantes, Neruda, Paulo Freire, Afonso Romano de Sant' Anna, Dalí, dentre outros, são fundamentais, tanto para a prática pedagógica, quanto para o estabelecimento de uma relação mais criativa com os educandos, pois instiga-os a serem mais críticos, mais reflexivos, mais preocupados com o contexto social, e desperta-os para outros mundos, principalmente para a literatura e culturas hispano-americanas e a arte universal.

 

Referências:

CERVANTES, M. Dom Quixote de la Mancha. Buenos Aires: Biblioteca La Nación. Planeta, 2000.
ESCRIVA, A. Direção do Documentário sobre Pablo Neruda. Produção Les Films D'ici. Paris, 1999.
FREIRE, P. Pedagogia da autonomia, saberes necessários à prática educativa. 28. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2000.
FOLHA DE SÃO PAULO. Caderno Ilustrada. 06/09/2004.
HARRIS, N. Vida e obra de Dalí. Cidade: Ediouro, 1995.
LUCA de Tena, C.M.M. Guía del Prado. Madrid: Ed. Silex, 1980.
NERET, G. Salvador Dalí. São Paulo: Editorial Taschen, 1996.
NERUDA, P. Antologia Poética, 1 e 2. Madrid: Alianza Editorial, 1998.
RIBEIRO. O.M. Pintando com novas cores. Um esboço de leitura em "Las Meninas". In: Revista Fluxos. V. 1, Uberaba, 2003, p. 19-23.
SANT’ANNA, A.R. Paródia, Paráfrase & Cia. São Paulo: Ática, 1995.

Notas:

* Ensaio escrito a partir das reflexões feitas para a elaboração do Trabalho de Conclusão de Curso de Especialização em Docência Universitária "O Fazer e o Pensar no Cotidiano da Sala de Aula", na Universidade de Uberaba, sob a orientação da Profª Ormezinda Maria Ribeiro.

1] Guia da exposição Picasso na Oca, março de 2004, em São Paulo.

[2] Folha de São Paulo, Caderno - Ilustrada, 06/09/04)

 

Revista Digital Art& - ISSN 1806-2962 - Ano III - Número 03 - Abril de 2005 - Webmaster - Todos os Direitos Reservados

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