voltar ao menu de textos

CULTURA TRADICIONAL E PÓS-MODERNIDADE: ESTUDO DO RESGATE DE DANÇAS E FOLGUEDOS TRADICIONAIS NA CIDADE DE SÃO PAULO
Autores:
Cynthia Elias Taboada[1] - cynthia_eliastaboada@hotmail.com e Alberto Tsuyoshi Ikeda[2].

Resumo:

O estudo enfoca um movimento, voltado para a prática de danças e folguedos tradicionais (folclóricos), ocorrido na cidade de São Paulo, nos anos 90. Especificamente, foram estudados os grupos Cupuaçu e Cachuera, que se dedicam, respectivamente, às danças e aos folguedos do Maranhão e danças negras da região Sudeste. O trabalho compõe-se de: a) um perfil sociográfico dos participantes desses grupos, aliado às suas motivações para a prática da cultura popular; b) uma análise da maneira como realizam o resgate de cultura popular em São Paulo, atentando para questões como a pesquisa, a reprodução, a recriação e a retransmissão da cultura popular; c) uma sucinta análise comparativa entre aspectos das práticas ritualizadas e os “espetáculos” por eles apresentados e d) uma análise sobre a busca desses grupos por uma identidade nacional, ligada à cultura popular. Por último, o estudo revela a inserção desses grupos na sociedade dita pós-moderna, apontando os níveis de incorporação dessa prática cultural pelo sistema capitalista de consumo.

Palavras chave: Danças folclóricas, danças populares; identidade nacional; cultura alternativa; pós-modernidade; folclore.

Abstract:

The study focuses a movmente, gone back to the practice os traditional dance amd playing (folk-dances) that happened in the city of São Paulo, during the 90’s years. Specifically, were studied the Cupuaçu and Cachuera groups, that have been dedicating, respectively, to the Maranhão folk-dances and black dances of Southeast São Paulo. The work includes: a) A social profile of these groups, linked to their motivation for practicing of popular culture; b) An analyses of the way they rescue the popular culture in São Paulo city, considering questions such as research, recreation, reproduce and transmission of popular culture; c) A brief comparative analyses among ritual practice aspects and the “living shows” presented by them, and d) An analyses about the search of these groups for a national identity, linked to the popular culture. Lastly, the study will reveal the insertion of these groups in so called post-modern society, showing the incorporation and absorption of such cultural practice by the capitalist system of consumption.

Keywords: Folk-dance; traditional dancing; national identity; alternative culture; post-modern society; folklore.

INTRODUÇÃO

Desde os anos 90 se pôde notar no Brasil uma sensível valorização da cultura popular tradicional brasileira e das culturas étnicas em geral. Esse fato se verificou tanto em escala nacional como também em dimensão mais ampla, mundial podemos dizer. Tal interesse pôde ser percebido pela internacionalização da oferta de CDs, discos, vídeos e outros materiais referentes às diversas culturas “do mundo”; podendo ser demonstrado ainda, por meio dos programas de ecologia que comumente se veiculam nas televisões, em que se destaca a divulgação da vida e cultura de "nativos". No âmbito nacional, percebe-se uma grande procura pela cultura popular brasileira tradicional nos últimos anos, principalmente nos meios universitários.

Em São Paulo, destarte, este interesse pôde ser confirmado pela criação de grupos “parafolclóricos” (alguns deles foram enfocados na pesquisa), que se dedicam a danças e folguedos populares, tais como: Bumba-Meu-Boi, Tambor de Crioula, Batuque de Umbigada, Jongo, Congada e Maracatu "Nação".

A partir disso, o estudo visou a analisar como se dão os processos de aprendizagem não formal (a retransmissão da cultura popular) nesses grupos, introdutoriamente, bem como avaliar os aspectos da integração social (sob o enfoque da busca por uma identidade nacional e/ou identidade de grupo) e da sensibilização artística, por meio da reprodução e a recriação da cultura popular. O estudo abrangeu tanto as pessoas que nascem já convivendo com essas culturas tradicionais como os praticantes recentes, advindos notoriamente dos meios universitários. Afinal, uma das motivações da pesquisa é entender esse fenômeno de revivificação da cultura popular nesses setores mais intelectualizados, que acabam interagindo, por meio dessas danças e folguedos, com os segmentos mais simples da sociedade brasileira. Pretendeu-se traçar um quadro abrangente dos aspectos que geram o "renascimento" e a crescente valorização da cultura popular brasileira por esses setores da sociedade.

HIPÓTESE

O sentido investigativo dessa pesquisa apontou para um processo sócioeconômico que tem ocorrido desde meados do século XIX, ou seja, o neocolonialismo, que agora em escala extraordinária e com pequenas modificações, denomina-se globalização.

É nessa direção que caminhou a hipótese geradora desse estudo: o estopim do movimento de valorização e exaltação das culturas populares e étnicas se dá por um certo temor da massificação da cultura e do conseqüente esquecimento e desaparecimento destas, em função do processo da globalização. Haveria, assim, uma busca pela identidade nacional e/ou regional, indo aparentemente na "contramão" desse processo social, econômico e cultural globalizante. Tal movimento poderia ser exemplificado por alguns desses grupos que foram estudados.

METODOLOGIA

A pesquisa baseou-se, fundamentalmente em: a) trabalho bibliográfico; b) registro etnográfico, de observação direta junto aos grupos escolhidos (registro fotográfico e gravações) e c) entrevistas.  

Na primeira etapa da pesquisa, foram selecionados, a partir da bibliografia proposta, alguns aspectos do fenômeno da globalização, a fim de que isso auxiliasse no processo de investigação e comprovação da hipótese formulada.

Preparou-se um breve resumo, enfocando as origens e a forma de cada uma das manifestações que esses grupos têm reproduzido. Além disso, foram presenciadas várias festas e eventos nos quais os grupos enfocados se apresentaram, realizando um relato “de campo” de cada uma delas, registrando por meio de fotos e buscando informações mediante entrevistas rápidas e informais, inicialmente.

Para poder adquirir uma visão mais abrangente do fenômeno de resgate da cultura popular, tradicional, por universitários e intelectuais, foram observadas algumas festas tradicionais em cidades do interior de São Paulo, quais sejam, Nazaré Paulista, Piracicaba e Guaratinguetá, realizadas em datas comemorativas por grupos folclóricos e pela comunidade do local[3]. Nestas festas, pôde-se inclusive notar a presença de membros dos grupos “parafolclóricos” estudados, pesquisando, gravando e até mesmo interferindo diretamente na infra-estrutura das festas.

Para apurar dados primários, que permitiram a composição de um perfil sóciopolítico da população estudada, elaborou-se um questionário-base, que foi sendo aplicado nos ensaios dos grupos. Os dados passaram por uma fase de tabulação e posterior interpretação, o que propiciou a elaboração do relatório final de pesquisa. 

Na segunda metade da pesquisa referente ao relatório final, foram acompanhadas as atividades (ensaios e apresentações) dos grupos Cupuaçu e Cachuera, escolhidos como focos predominantes da pesquisa (pela importância que adquiriram em São Paulo), o que permitiu uma avaliação do nível de freqüência com que atuaram na cidade. Diversos membros foram entrevistados, conforme a programação previamente estabelecida no projeto de pesquisa e um perfil sociográfico foi realizado, traçando um quadro geral das pessoas que participam e se interessam por cultura popular em São Paulo, bem como de algumas de suas motivações para a prática de cultura popular.

Foram colhidas também algumas informações sobre os grupos Maracatu Baque Bolado, Companhia de Artes Tambores, Abaçaí, Saia Rodada e Boizinho de Cofo, para estabelecer comparações entre as experiências de formação e o modo como praticam a cultura popular em cada grupo. As entrevistas gravadas foram realizadas no período de novembro de 1999 a fevereiro de 2000.

Durante a pesquisa, diversas questões, além daquelas propostas inicialmente, foram se mostrando essenciais para a boa realização do trabalho. Questões como a reprodução e a recriação da cultura tradicional pelos grupos estudados; aspectos rituais e de espetáculo por eles apresentados; a interferência dos grupos “parafolclóricos” nas comunidades tradicionais, entre outras, impuseram uma reorganização dos dados levantados, a fim de que houvesse uma maior coerência reflexiva, que levasse a um resultado final mais aprofundado.

A inserção da cultura popular, como cultura “alternativa”, no capitalismo, bem como uma rápida análise dos efeitos da globalização na sociedade pós-moderna, foram expostos como fechamento da reflexão e preparação para a conclusão.

OS GRUPOS ESTUDADOS

Grupo Cupuaçu

O grupo Cupuaçu foi formado na década de 1980 por maranhenses recém-chegados a São Paulo e por universitários, predominantemente das áreas de artes e educação, tendo como líder do grupo o maranhense Tião Carvalho. Atualmente, além do núcleo original, integram o grupo pessoas que exercem profissões variadas, algumas delas possuindo somente o primeiro ou segundo grau, e pessoas advindas de outros Estados, como Minas Gerais e Pernambuco, ou do interior de São Paulo. 

O trabalho realizado por esse grupo envolve a pesquisa e divulgação das danças maranhenses principalmente, a exemplo do Tambor de Crioula e do Bumba-meu-boi. Realizam apresentações para a comunidade do Morro do Querosene (Butantã/SP) nas chamadas “Festas do Boi” (festas de “nascimento”, “batizado” e “morte” do Boi), que reúnem alguns milhares de pessoas todos os anos, nas quais o grupo arrecada dinheiro por meio da venda de CDs, vídeos, camisetas e instrumentos musicais. Muitas vezes são contratados para realizarem oficinas de danças populares e/ou percussão e espetáculos em centros culturais como os Sescs, Casas de Cultura e escolas, adequando para isso o tempo de apresentação, ou então são chamados a participar, juntamente com outros grupos, das festas realizadas no Parque da Água Branca (Barra Funda/SP)[4].

As oficinas de danças são ministradas tanto por Tião Carvalho como por alguns de seus alunos, que utilizam um método de ensino informal, ou seja, ensinam por meio da observação e reprodução dos passos de dança, privilegiando, segundo eles, o movimento livre, espontâneo.

Pode-se dizer que já existe um Bumba-meu-boi próprio do grupo Cupuaçu, uma vez que eles incorporam ao seu repertório de toadas tradicionais algumas composições próprias, reinventam alguns passos de dança e confeccionam as próprias roupas. Muitas pessoas que participaram do Cupuaçu formaram posteriormente novos grupos, a exemplo dos grupos Saia Rodada e Boizinho de Cofo.

Grupo Cachuera

O grupo Cachuera foi formado no início da década de 1990, inicialmente por alunos das aulas de ritmos brasileiros, ministradas por Paulo Dias no Coral USP. Quando o espaço das aulas se tornou pequeno, algumas pessoas resolveram formar o grupo fora do Coral, mas dentro das dependências da USP, onde começaram a realizar ensaios periódicos de danças populares da região Sudeste, como o Batuque de Umbigada, a Congada, o Moçambique e o Jongo.

A partir desse ponto, os integrantes do grupo, na sua maioria formado por estudantes da USP, resolveram se aprofundar na pesquisa dessas danças e passaram a contatar com algumas comunidades do interior de São Paulo, participando de festas como do Divino, de santos católicos, como São Benedito, Santo Antônio, São João etc., nas quais procuravam obter informações, gravando as músicas, filmando as danças e, posteriormente, dançando e cantando junto das comunidades e até mesmo auxiliando monetariamente na realização de algumas festas (Paulo Dias já foi o “festeiro”, ou seja, o patrocinador da festa de Guaratinguetá, onde se realizou o Jongo).

Nos ensaios realizados na USP, o grupo procurava reproduzir as informações de dança e música adquiridas nas comunidades tradicionais e muitos integrantes incorporaram até mesmo alguns comportamentos religiosos que faziam parte. Junto a isso, Paulo Dias fundou, com recursos próprios, a partir do acervo de pesquisa que já havia acumulado (gravando e filmando várias festas populares), a Associação Cultural Cachuera e, então, o grupo Cachuera começou a ministrar remuneradamente oficinas de danças populares e percussão e a realizar espetáculos em Sescs, Casas de Cultura, no Parque da Água Branca etc. O grupo Cachuera projetou culturalmente o trabalho da Associação Cultural Cachuera e esta, sob a direção de Paulo Dias, tornou-se um meio de promoção cultural de algumas comunidades tradicionais, trazidas a São Paulo para se apresentarem.

Após uma grande reformulação interna, ocorrida no segundo semestre de 1999, o grupo Cachuera montou uma sede onde realizam ensaios técnicos, tentando aperfeiçoar os passos de dança e toques de percussão. Ainda realizam apresentações, que oscilam entre um espetáculo e uma prática ritual, com músicas pesquisadas das comunidades tradicionais e composições próprias. Muitos membros, em duplas ou em grupo, ministram oficinas nos centros culturais, repassando o que pesquisaram e vivenciaram até então. A Associação Cultural Cachuera, por sua vez, produziu uma série de três CDs, em meados de ano 2000, pelo Instituto Itaú Cultural, de São Paulo.      

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os resultados obtidos durante a pesquisa possibilitaram as seguintes conclusões.

Há um resgate de danças e folguedos populares na cidade de São Paulo, realizada por vários grupos “parafolclóricos”, dentre eles, os grupos estudados, Cupuaçu e Cachuera.

De maneira geral, os grupos se conhecem e se integram, sendo este um aspecto relevante na existência deles, que pesquisam, reproduzem, recriam em graus diversos e transmitem o conhecimento que obtiveram da cultura popular através do ensino informal.

Esses grupos, em sua maioria, são formados por pessoas mais intelectualizadas, com grau superior (3o grau) de formação, exercendo profissões diversas, mais ligadas à área das humanidades. No entanto, há também pessoas de camadas mais simples, que possuem somente o primeiro ou segundo graus, e que realizam funções como babá, empregada doméstica etc. ou então são técnicos, vendedores e funcionários públicos. Quanto à faixa etária, ela varia entre dezoito e cinqüenta anos, havendo uma predominância de pessoas entre vinte e trinta anos.

Essas pessoas utilizam a cultura popular muito mais como um resgate pessoal do que como uma resistência coletiva de militância categórica contra os efeitos da globalização, dentro da sociedade pós-moderna. Ou seja, o resgate que realizam da cultura popular não está voltado para a coletividade. Parece que a intenção primeira para essa prática está ligada muito mais à satisfação de um gosto pessoal dos praticantes do que por uma vontade coletiva de transformação social ou de militância contra a globalização. Poderíamos, no entanto, dizer que a resistência acaba acontecendo pelo fato de que há nesses grupos uma adesão geral a um mesmo discurso, contra aspectos políticos e econômicos da sociedade, tornando-o internamente homogêneo. Isto quer dizer que, independentemente do que digam, os grupos mantêm um discurso externo bastante homogêneo, portanto nada espontâneo, o que, em última instância, revela uma mesma concepção ideológica, pelo menos em linhas gerais.

A questão do resgate pessoal, que envolve uma “busca das raízes”, pode ser analisado através das entrevistas, nas quais se flagram as motivações dos praticantes. Há um predomínio de respostas que indicam um resgate pessoal como motivação principal, em detrimento de uma motivação relacionada à socialização e identidade de grupo; ou seja, o que leva os indivíduos a esses grupos parece satisfazê-los muito mais no campo individual do que no coletivo[5].

Esse resgate pessoal (ocorrido por uma identificação tanto “natural”[6] quanto induzida) gera a possibilidade da adesão geral a um mesmo discurso, tornando-o coletivo. Esse pensamento, por sua vez, está ligado a pressupostos do pensamento filosófico e estético romântico, caracterizado por uma busca da unidade nacional, de valores essencialistas e, portanto, por uma volta para o “natural”. Até mesmo por conta desses fatores é que os grupos mantêm uma conformação de comunidade, com suas próprias estruturas simbólicas e relações de poder, se aproximando ao máximo do referencial adotado, que são as próprias comunidades tradicionais, nas quais buscam a identidade nacional.

De fato, percebemos que o pensamento do grupo em geral retoma preceitos do romantismo, em que há, sem dúvida, uma exaltação das tradições, uma busca pelas “raízes” culturais brasileiras, vislumbrando, de forma pouco dialética, a cultura popular como símbolo da identidade nacional. No Brasil, o pensamento romântico perdura nas conceituações de teóricos da cultura como Gilberto Freyre (1900-1987) e Mário de Andrade (1893-1945), este último tido pelos grupos como modelo de condução de pensamento sobre a cultura popular.

Para entender a conceituação de identidade nacional e a necessidade por parte dos grupos de buscá-la é preciso relembrar algumas outras questões. O Estado brasileiro se formou como uma Federação, após uma intensa “miscigenação” (arbitrária ou não) entre as culturas indígenas, africanas e européia no período colonial. Esse tipo de Estado impôs, por razões políticas e econômicas, o estabelecimento de uma ideologia que permitisse considerá-lo como uma unidade, para a qual os cidadãos deveriam manter fidelidade. Para dar esse suporte ao Estado, adota-se o conceito de Nação, envolvendo a idéia de que a Nação estabelece a unidade por meio de “laços naturais”, ou seja, de elementos ligados à “raça”, aos costumes, às tradições e à língua. Cabe lembrar aqui que esse tipo de idéia faz da Nação uma entidade ilusória, uma vez que não se aplica de fato a praticamente nenhum exemplo concreto. Uma vez “formada a Nação brasileira” e o Estado brasileiro, foi necessário identificá-lo enquanto conjunto nacional, buscando uma cultura nacional. Isso acaba por gerar uma exaltação nacionalista, primeiramente se adequando o estilo do século XIX (época em que o romantismo é introduzido no Brasil) e posteriormente pelo modernismo.

Esse nacionalismo brasileiro vai construir um modelo de identidade nacional a partir dos mesmos elementos estabelecidos pelo conceito de Nação adotado. Dessa forma, os intelectuais românticos vão exaltar, em um primeiro momento, o índio como “raiz” cultural, como essência da cultura brasileira, enquanto Mário de Andrade vai exaltar, com esse mesmo pensamento, as culturas populares, durante seu trabalho de registro das manifestações populares brasileiras.

É por esse viés que, ainda nos tempos atuais, muito do pensamento romântico se faz presente no discurso de grande parte das pessoas envolvidas com a cultura popular, estabelecendo a identidade nacional a partir dela e até mesmo idealizando-a.

Outra questão importante, que se pode trazer à conclusão, é a incidência de um modismo, que ocorreu em função da comemoração dos 500 anos de “descobrimento” do Brasil, no qual pouco se viu de uma postura crítica em relação à colonização européia/portuguesa, à dizimação indígena e à exploração africana, mas que acabou por exaltar, no ano 2000, as culturas populares, as nações indígenas e africanas, estabelecendo-as como símbolos da essência da nacionalidade, como exemplos indubitáveis da identidade nacional, retornando, mais uma vez, ao pensamento romântico.

De fato, podemos perceber que a incidência do modismo em torno da cultura popular se deu dentro de uma seqüência cronológica. Primeiramente vimos, nos anos 80, a projeção cultural do movimento da música afro-baiana, a exemplo do grupo musical Olodum, que divulgou em larga escala o ritmo samba-reggae. Esse ritmo foi logo incorporado por um outro movimento, o Axé, que, por sua vez, foi aderido e “patrocinado” pelas mídias de massa, o que propiciou sua grande veiculação no meio nacional. Em seguida, vimos outro movimento musical, proveniente de Recife-Pernambuco, denominado “Mangue Beat”, liderado por Chico Science e Nação Zumbi, que trazia em sua música elementos da música tradicional pernambucana, a exemplo do maracatu. Por fim, percebemos a reincidência sazonal do forró (música nordestina em voga desde os anos 70) nos anos 90, ao ser aderido, primeiramente, nos meios universitários, e depois levado às grandes casas noturnas de São Paulo.

Por fim, uma última questão levantada se refere à inserção desses grupos dentro da sociedade dita pós-moderna. Vemos que, de certa forma, os grupos também têm sido incorporados pela estrutura capitalista, que os faz se manterem como núcleos de cultura “alternativa” que pode também ser consumida. Isso estabelece um interessante paradoxo com o próprio pensamento romântico, ou neo-romântico que possuem. Os grupos exaltam as tradições populares, buscam valores essencialistas, voltam-se para o “natural” e para uma estrutura de comunidade que visa à unidade e à integração. Porém, ao mesmo tempo, acabam querendo fazer parte e participando da estrutura capitalista, uma vez que oferecem apresentações e oficinas remuneradas, produtos comerciais como instrumentos musicais, camisetas, CDs, vídeos e outros, desejando mesmo serem reconhecidos como ativos no meio cultural hegemônico.

De fato, os grupos não são como as comunidades que adotam como modelo, na medida em que vivem num espaço diferente e de maneira diferente, permanecendo, portanto, como um agrupamento que produz cultura “alternativa” dentro de uma sociedade pós-moderna, que lhe dá espaço.       

Assim, pôde-se avaliar o processo de resgate da cultura popular por esses grupos muito mais como um movimento conservador, dado o retorno a preceitos românticos do século XIX, do que revolucionário, combatendo politicamente aspectos da sociedade globalizada.

Referências:

ADORNO, Theodor W. Indústria cultural e sociedade. São Paulo: Paz e Terra, 2002. 119p.

AZEVEDO NETO, Américo. Bumba-Meu-Boi no Maranhão. São Luís: Alumar, 1997.

BAKHTIN, Mikhail. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento. O Contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec; Brasília: Universidade de Brasília, 1993.

BENJAMIN, Walter. Reflexões sobre a criança, o brinquedo, a educação. São Paulo: Summus, 1984. 176p.

BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. Brasília:Universidade de Brasília, 1995. 1318p.

BOSI, Alfredo. A Dialética da Colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. 408p.

BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Memória e sociedade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil S/A, 2000. 316p.

CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário de Folclore Brasileiro. Rio de Janeiro: Ediouro, 1999. 930p.

FERRETI, Sérgio Figueiredo. Tambor de Crioula: ritual e espetáculo. São Luís: Comissão Maranhense de Folclore/SECMA/LITHOGRAF, 1995.

GARCÍA CANCLINI, Néstor. As Culturas Populares no Capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1983. 150p.

LIMA, Rossini Tavares de. Folguedos Populares do Brasil. São Paulo: Ricordi, 1962.

LIMA, Rossini Tavares de. Folguedos de São Paulo – melodia e ritmo. São Paulo: Ricordi, s/d.

MAFFESOLI, Michel. O Tempo das Tribos. O declínio do individualismo nas sociedades de massa. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1987. 244p.

WEBER, Max. Metodologia das Ciências Sociais. Parte 1 e 2. São Paulo: Cortez; Campinas - Universidade Estadual de Campinas, 1995. 453p.

Nota:

[1] Licenciada em Educação Artística com habilitações em Artes Cênicas e Artes Plásticas pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” - São Paulo. Bolsista FAPESP (Iniciação Científica). Menção Honrosa no XXI Congresso de Iniciação Científica UNESP/2000 com a pesquisa Cultura Tradicional e Pós-Modernidade: estudo sobre o resgate de danças e folguedos tradicionais na cidade de São Paulo.

[2] Prof. Dr. da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. Departamento de Artes Cênicas, Educação e Fundamentos da Comunicação – São Paulo. Orientador da pesquisa.

3]Estas festas tradicionais acontecem de acordo com o calendário religioso católico, predominantemente. Por exemplo: dia de Santo Antônio, dia de Nossa Senhora do Rosário etc. No caso dos folguedos, quem os realiza são os grupos folclóricos, constituídos por membros da comunidade do local, e em outras manifestações, como o jongo, não há a formação prévia de um grupo, a prática se dá pelos membros da comunidade em geral.

[4] Trata-se de um parque público, no bairro de mesmo nome, no qual o pesquisador-folclorista Antônio Macedo ensaia o Balé Folclórico Abaçaí, realizando mensalmente encontro de grupos similares de São Paulo.

[5] Já em relação aos líderes dos grupos mais atuantes, podemos perceber que há uma preocupação voltada para a coletividade, com princípios de conscientização política, porém expostos de maneira sutil. De fato os líderes estabelecem uma identidade para seus grupos, a fim de que se portem como unidade coletiva.

[6] É importante ressaltar que a vontade individual, considerada “natural”, também foi ou ainda é, de alguma maneira, determinada historicamente por um sistema ideológico que reproduz a estrutura hegemônica vigente.

Revista Digital Art& - ISSN 1806-2962 - Ano III - Número 04 - Outubro de 2005 - Webmaster - Todos os Direitos Reservados

OBS: Os textos publicados na Revista Art& só podem ser reproduzidos com autorização POR ESCRITO dos editores.