voltar ao menu de textos

ARTE & HISTÓRIA: A CONCEPÇÃO DE ARTE NO OITOCENTOS E A SUA RELAÇÃO COM A CULTURA HISTÓRICA
Autora:
Isis Pimentel de Castro[1] - isispimentel@yahoo.com.br

Resumo:

A pintura histórica alcançou no século XIX um importante lugar no projeto político do Segundo Reinado devido ao trabalho realizado por Araújo Porto Alegre, durante a Reforma Pedreira. Este gênero artístico foi responsável pela formação de uma memória nacional e mantinha um intenso diálogo com a produção do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). A pintura histórica foi essencial na construção de uma identidade nacional, porque através dela foi forjado um passado épico e monumental onde toda a população pudesse se sentir representada nos eventos gloriosos da história nacional. O trabalho de Porto Alegre como crítico de arte e diretor Academia Imperial de Belas Artes (Aiba) possibilitou a visibilidade da pintura histórica com seus pintores oficiais, Pedro Américo e Victor Meirelles.

Palavras chave: pintura histórica, Araújo Porto-alegre, arte brasileira.

Abstract:

The historical painting has reached in the 19th century an important place in Second Reign’s political project due to the work made by Araújo Porto Alegre, during the Pereira Reform. This artistic genre was responsible for the formation of a national memory and has maintained an intense dialogue with the production of the Historical and Geographical Brazilian Institute (IHGB). The historical painting was essential in the building of a brasilian identity, because through it an epic and monumental past was forged where all the population could feel represented in the glorious events of  national history. The Porto-alegre’s work as critic of art  and director of the Imperial Academy of Fine Arts (Aiba) enabled the visibility of the historical painting with its official painters, Pedro Américo and Victor Meirelles.

Keywords: historical painting, Araújo Porto-alegre, brasilian art.

Os campos artístico e historiográfico alcançaram tal grau de autonomização que são raros os profissionais que conseguem circular com desenvoltura nesses dois espaços. O processo de especialização, intensificado no último século, dividiu em disciplinas saberes que até então, não se reconheciam como distintos entre si. A autoridade conferida ao especialista naturalizou um isolamento entre áreas de conhecimento que nem sempre foram autônomas, como por exemplo, a arte e a história. Nesse sentido, a própria concepção de “arte brasileira” no século XIX, é rica para se pensar a relação entre essas duas esferas.

O próprio termo “arte brasileira” somente pôde ser pensado no oitocentos, concomitante ao processo de construção de uma identidade nacional. O primeiro autor a se dedicar ao estabelecimento de uma história da arte brasileira foi Manuel de Araújo Porto-alegre. Com uma vida intelectual intensa, assumiu posições de destaque nas duas instituições mais importantes do Império: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) e a Academia Imperial de Belas Artes (Aiba), lugares de produção de símbolos nacionais, que mantinham um diálogo intenso entre suas produções.

Porto-alegre foi um dos primeiros membros do Instituto Histórico, assumiu a função de orador da instituição por quase quatorze anos, até tornar-se secretário e vice-presidente da casa. Ao passo que na Aiba, além de ter obtido a formação de pintor histórico, ocupou o cargo de professor de pintura histórica entre os anos de 1837 e 1848. Somente em 1854, assumiu a direção da academia, sendo o primeiro brasileiro a alcançar esta posição. Durante sua administração, iniciou uma ampla mudança estrutural no ensino artístico da instituição, conhecida como Reforma Pedreira.

Porto-alegre pode ser tomado como um exemplo da inexistência de campos de conhecimento totalmente autônomos durante o XIX, pois além de pintor histórico e professor, foi arquiteto, caricaturista e escritor. É considerado o fundador da história e da crítica de arte brasileira, responsável pela edificação da idéia de “arte brasileira” no oitocentos. Criou e dirigiu alguns dos principais periódicos da época, como a revistas “Niterói” (1836), “Minerva Brasiliense” (1843), “Lanterna Mágica” (1844) e “Guanabara” (1849). Em todas as suas atividades buscou imprimir na produção cultural oitocentista uma “marca nacional” e investiu na criação de uma “cultura brasileira”. Em suas palavras: “A arte não progride, não forma escola, não adquire um caráter de superioridade e de permanência enquanto se não nacionaliza: apressar este passo é conquistar o futuro, é encurtar o tempo” (PORTO-ALEGRE, 1850, p. 141). Essa marca nacionalista na obra de Porto-alegre também pode ser observada no poema “Colombo”, escrito no ano de 1866. Aqui, assim como nos demais artigos que escreveria ao longo de sua vida, enfatiza que só foi possível pensar numa nacionalidade brasileira, graças à ação civilizatória dos colonizadores europeus, responsáveis por trazer o progresso e as luzes aos trópicos. Somente na medida em que o país se igualasse às nações civilizadas seria possível pensar em arte brasileira.

Desde sua atuação como crítico de arte Porto-alegre procurou unir história e arte. Essa união pode ser pensada por dois caminhos: o primeiro, centra-se na própria concepção de “obra de arte”, que deveria ser antes de tudo uma “obra histórica”, não somente por pertencer ao seu tempo, mas principalmente porque caberia à história o papel de civilizar os homens por meio dos exemplos do passado. A arte, a serviço da história, tornava-se um instrumento fecundo ao esclarecimento e ao progresso da humanidade. O segundo, entende que a história possibilita o estabelecimento de uma linha evolutiva no tempo por meio da criação de marcos históricos. A construção de um passado artístico glorioso tornava possível o estabelecimento de uma evolução artística, necessária à edificação de uma “arte brasileira”. Uma vez que, somente quando fosse criado um marco fundador para a produção artística do país, poderia ser instituída uma linha progressiva no tempo, que tornaria o presente “habilitado” para o desenvolvimento das belas artes. Esta linha evolutiva começava com as primeiras peças confeccionadas no período colonial e culminava, obviamente, com a produção dos artistas do Império.

Empenhado na tarefa de estabelecer as origens da produção artística brasileira, Porto-alegre criou o que até hoje se chama de Escola Fluminense de Pintura, termo empregado pela primeira vez no ano de 1841[2]. Esse ensaio foi o primeiro esforço de sistematizar o passado artístico brasileiro reconhecido como o artigo fundador de uma história da arte brasileira. Em sua narrativa, o autor ocultou tudo aquilo que pudesse colocar em xeque o emprego do termo “escola fluminense”. A existência de poucas referências cronológica serve, justamente, para evitar o questionamento do estilo, já que os artistas que o compunham, nem ao menos tiveram uma formação artística comum.

Ao elevar os artífices setecentistas ao status de “artistas”, Porto-alegre acabou por fundar uma arte brasileira antes mesmo da chegada da Missão Artística Francesa, sublinhou, desta forma, a genuína vocação artística nacional. Não eram raros os momentos em que igualava os artistas da Escola Fluminense aos grandes nomes da arte européia, como é possível ver no texto abaixo:

Valentim elevou a arte borromínica a um ponto tal, que rivaliza com as maravilhas de Versailles e a Capela Real de Dresda. (...)

José de Oliveira é o Pozzo brasileiro (...)

José Maurício foi o homem que nasceu como Dante em uma época bárbara para a música (PORTO-ALEGRE, 1845, p. 241-248).

Os artífices setecentistas eram em suas maioria negros ou mulatos. Igualar negros escravos, mulatos e forros aos “gênios” da arte européia, não aproxima o autor de uma postura abolicionista, pois, se, no passado, circunstancialmente, os artistas nacionais eram escravos ou forros, no presente eles deveriam ser formados pela Academia de Belas Artes, única instituição capaz de dar-lhes a educação adequada. Ao fazer tal comparação, tinha como objetivo inserir a arte brasileira em uma tradição já consolidada (SQUEFF, 2003). A Europa servia de parâmetro no momento de criação de uma história da arte brasileira. O que não significa pensar essa “aproximação” como uma “imitação”, pois seu intuito ao construir um passado artístico glorioso era colocar o jovem Império em consonância com as nações civilizadas.

O termo “arte brasileira” caberia às obras que preferencialmente representassem temáticas da história nacional, o que pressupunha a apropriação de elementos do passado para a construção de uma identidade que habilitasse os trópicos a comungar dos mesmos valores dos países europeus. Desta forma, o estilo artístico deveria ser de inspiração européia, para marcar esse pertencimento junto às nações civilizadas, mas os motivos deveriam valorizar a paisagem e os feitos históricos do Império. Somente com a crise do sistema monárquico e o advento da República esta concepção de arte foi modificada e fundada em novos termos, a criação de técnicas e a utilização de materiais genuinamente brasileiros foram valorizadas (ZÍLIO, 1997, p. 238-239).

Uma concepção de arte tão distinta daquela naturalizada nos dias de hoje, causa um certo estranhamento, mas para compreender a emergência desse conceito faz-se necessário sublinhar o lugar da cultura histórica no século XIX. O Brasil oitocentista foi fundamentalmente marcado pelo que Carl Schorske (2000) chamou de um “pensar com a história”, que possibilitou não só o surgimento da História enquanto disciplina, mas também a emergência de uma gama expressiva de produções relacionadas à história[3]. Pode-se citar como exemplos: a arquitetura, que através do neoclássico buscava resgatar a grandeza e serenidade das construções da Antigüidade; a significativa demanda por romances históricos; e, sobretudo, a visibilidade que as pinturas voltadas para a história nacional tiveram nesse século.

A pintura histórica era considerada o gênero artístico mais nobre e completo, não só por incluir em sua constituição todos os demais gêneros da pintura[4], mas também por abordar em suas telas as cenas mais virtuosas da ação humana. O ensino artístico da academia seguiu os moldes do neoclassicismo, que tinha inspiração, sobretudo nos estudos de Winckelmann, considerado o principal teórico do estilo. O neoclássico caracterizou-se pelo desejo de elevar o terreno ao divino através das artes, aperfeiçoar o mundo por meio da razão e da moral e constituir-se como um importante instrumento de civilização. A missão do artista era instruir moralmente por meio da arte aqueles que a observam, tal como frisa Winckelmann (1975, p.69); “o pincel que o artista manejar, deverá ser mergulhado na inteligência”.

O discurso visual possuía uma função pedagógica, primordial na inspiração de virtudes e ideais civilizatórios. De acordo com a Regra de Horácio, utilizada com freqüência durante o século XIX, as noções transmitidas através visão seriam sedimentadas de maneira mais rápida e eficaz na memória, enquanto aquelas adquiridas por meio da audição seriam facilmente esquecidas. A visão era apreciada enquanto instrumento de conhecimento mais confiável e legítimo. Desta forma, a arte torna-se fundamental na consolidação de valores como ordem, patriotismo e civilidade, tão caros a uma nação em construção.

Inspirada na filosofia clássica, a compreensão de que a arte é uma imitação das coisas e ações humanas, impregna-a de valores morais. Na medida em que as artes superiores seriam aquelas que se propusessem a representar ações humanas virtuosas. Capazes de sublimar o espírito na busca da “bela alma”, ideal só alcançado por meio da imitação das obras de arte da Grécia Antiga. O aprendizado do artista deveria ser feito a partir da observação da arte grega, pois esta teria em si a soma de todos os ângulos perfeitos da natureza e superaria, desta forma, a realidade em beleza e perfeição. A imitação aqui se aproxima mais da idéia de inspiração, no sentido de alcançar o pensamento grego: “O importante, quando se faz arte não consiste em simplesmente copiar os antigos, e sim em pensar como os gregos, em comportar-se como eles, exigindo da arte uma missão semelhante à dos gregos” (Winckelmann Apud BORNHEIM, 1998, p. 93). A pintura histórica por estar diretamente envolvida com a exaltação dos momentos gloriosos da nação e dos atos heróicos de grandes homens, torna-se o espaço privilegiado para gravar na alma de seus observadores os nobres sentimentos de amor à pátria. De acordo com Winckelmann (1975, p. 69),

todas as artes têm dupla finalidade: devem ao mesmo tempo agradar e instruir. Por essa razão, acharam muitos dentre os maiores paisagistas que se desincumbiriam apenas de metade das suas obrigações para com a arte, se deixassem as suas paisagens sem nenhuma figura humana.

Justamente por tratar diretamente dos grandes momentos da história da humanidade, a pintura histórica se configura como peça-chave da relação entre a Academia Imperial de Belas Artes e o Império. Sua narrativa era balizada por parâmetros estabelecidos pelo Instituto Histórico. Tudo aquilo que ferisse os ideais de ordem e patriotismo, como por exemplo, as revoltas regenciais, deveriam ser apagadas da narrativa oficial. Somente seriam exaltados os grandes momentos históricos que despertassem o patriotismo.

As principais referências de pintura histórica são as telas de Victor Meirelles e Pedro Américo, artistas que produziram num período em que a pintura de história era uma das principais ferramentas na construção de uma identidade nacional. Porém, para que esse gênero artístico alcançasse tal expressividade com as obras “A Primeira Missa no Brasil”, de Victor Meirelles, ou, “Batalha do Avahy”, de Pedro Américo, foi necessária uma iniciativa que colocasse em harmonia arte e história. Esse movimento das artes em direção a Clio foi posto em andamento por Araújo Porto-alegre, tanto nos seus trabalhos como crítico de arte, como na ocasião em que foi diretor da Academia Imperial de Belas Artes.

Sua compreensão de arte enquanto relação com a história fez com que no período em que foi diretor da Aiba, de 1854 a 1857, procurasse estimular a produção de pintura histórica no Brasil. Somente quando arte e história caminhassem juntas, seria possível criar um passado glorioso que conferisse ao Brasil seu lugar junto às nações civilizadas e construir uma identidade nacional. A Reforma Pedreira foi um momento de esforço da Academia no sentido de revestir a arte de uma identidade nacional, cabia à pintura de história um lugar privilegiado nesse projeto, pois configurava-se como a forma mais eficaz de incutir na população sentimentos patrióticos. Segundo Carlos Zílio (1997, p.237):

A proposta de Porto-alegre visava dotar a arte brasileira de uma identidade própria capaz de fornecer uma imagem a um país recém independente, baseado ao mesmo tempo no estilo acadêmico com uma temática histórica. Este projeto terá seu coroamento nas pinturas de Pedro Américo e Victor Meirelles e seu apogeu na consagração pública e no debate crítico que teve como objeto as batalhas do Avaí e dos Guararapes.

Reforma Pedreira: o estímulo à produção artística nacional

A Reforma Pedreira, decretada em 14 de maio de 1855, orientou as atividades da Academia de Belas Artes até a emergência da República, buscou harmonizar a instituição com o projeto civilizatório do Império por meio do estímulo à industrialização e à construção de uma iconografia nacional. De acordo com os estatutos da reforma, cabia à Aiba: “promover o progresso das Artes no Brasil, combater os erros introduzidos em matéria de gosto, dar a todos os artefatos da indústria nacional a conveniente perfeição, e enfim auxiliar o Governo em tão importante objeto”[5].

A reestruturação do ensino artístico se integrava a uma ação mais ampla, que visava a reformulação das instituições de ensino do país, chamada de Reforma Couto Ferraz (SQUEFF, 2000). Esta, visava difundir a instrução e criar mecanismos de fiscalização das instituições de ensino existentes, além de unificar e centralizar a instrução nas mãos do governo central, de modo a adequar a nação brasileira ao modelo de civilização européia por meio da instrução pública. A difusão homogênea de valores e padrões de comportamento a partir de uma única matriz, ditada pelo Estado, poria fim aos “localismos” e serviria à consolidação de um sentimento de identidade.

Porto-alegre procurou adaptar a instituição aos progressos técnicos do oitocentos, aumentar a ascendência de professores brasileiros e criar uma nova forma de expressão artística que correspondesse à realidade nacional. Redefiniu o papel das atividades manuais, dividiu o ensino da instituição entre as atividades técnicas e as artísticas, por conseguinte delimitou o espaço de artistas e artífices até então indefinido. Criou cadeiras voltadas ao ensino técnico, desta forma, os artífices receberam uma formação acadêmica, importante no desenvolvimento industrial e conseqüentemente no advento do “progresso”. Além de ampliar os conhecimentos e o campo de atividades dos artistas. O artigo 79 da reforma de 1855 estabelecia que nas cadeiras destinadas ao ensino industrial:

Haverá sempre nestas três últimas aulas duas espécies de alunos: os Artistas e os Artífices, os que se dedicaram as Belas Artes e os que professam as Artes mecânicas. Os alunos desta segunda espécie terão um livro próprio de matrícula, na qual se declarará a profissão que seguem, para que os professores o saibam e o possam dirigir os seus estudos convenientemente[6].

Embora os artífices freqüentassem algumas das aulas ministradas aos artistas, ficavam restritos às cadeiras técnicas, não podiam freqüentar, em nenhuma hipótese, as cadeiras destinadas ao ensino artístico (DENIS, 1997). O curso teórico de História das Belas Artes, Estética e Arqueologia, seria destinado somente aos alunos-artistas. Os artífices possuíam um livro de chamada separado, neste deveria constar a profissão que seguiam, para que os professores lhes ensinassem o que fosse útil a sua atividade.

Talvez, sua maior contribuição para a história da arte brasileira tenha sido a definição do espaço social do artista, visto de maneira pejorativa por estar vinculado ao trabalho manual. A própria ênfase dada pelo diretor ao gênero de pintura histórica serviu para valorizar o status do artista, já que caberia aos pintores históricos difundir as virtudes e os ideais civilizatórios.

A Reforma estabeleceu a divisão do curso em cinco sessões: Arquitetura, Escultura, Pintura, Ciências Acessórias e Música. Introduziu as cadeiras de Desenho Geométrico, Desenho Industrial, Teoria das Sombras e Perspectiva, Matemáticas Aplicadas, Escultura de Ornatos e História das Artes, Estética e Arqueologia. Incorporou também, o Conservatório de Música à academia, buscou fazer da instituição não apenas uma escola de artes, mas também um centro cultural. Reforçou a política de intercâmbio da Aiba com os centros artísticos europeus por meio de relações diplomáticas e acadêmicas.

Criou uma biblioteca e uma pinacoteca, instituiu o cargo de restaurador de quadros e de conservador da pinacoteca. Pôs em vigor um grande número de normas de conduta, com o intuito de moralizar a instituição. Aproximou o ensino artístico de uma formação industrial.

Ampliou o prazo das bolsas concedidas aos artistas que conquistassem o prêmio de viagem. Pois, segundo ele, o período de dois anos era muito curto e insuficiente para o aprendizado de uma língua estrangeira e para a formação do artista.

Estabeleceu uma série de medidas, que privilegiaram a constituição de artistas “nacionais”, como por exemplo, estímulo à entrada de brasileiros no seio da instituição, seja como alunos ou como professores. A partir destas mudanças, houve uma significativa ascendência de professores brasileiros. O artigos 56 dos estatutos da reforma, regulamentam a participação nos concursos da Aiba, favorecem os artistas nacionais, já que não era permitido o ingresso nas competições: “Os que tiverem feito seus estudos fora do Império; Os estrangeiros que não forem filhos da Academia”[7].

Porto-alegre reformulou o ensino artístico oferecido na Aiba, ampliou a formação do artista. Sua reforma teve um papel fundamental no processo de definição da atividade artística. Pois, ao dividir o curso da Aiba entre técnico e artístico, definiu e separou artistas de artífices. Elevou a atividade do artista, concedeu-lhe status. Promoveu a arte a uma posição de superioridade e concedeu ao pintor histórico o mais alto lugar nesta hierarquia dos gêneros artísticos.

Fisiologia das Paixões e Modelo Vivo

A Reforma Pedreira impulsionou de maneira significativa a produção de pintura de história, na medida em que investiu na formação de pintores desse gênero, por meio da ênfase dada às aulas de Anatomia e Fisiologia das Paixões e, de Modelo Vivo. Essas disciplinas visavam aprimorar o desenho do corpo humano, inclusive a representação das emoções por meio das feições do rosto. Segundo o artigo 45 dos estatutos da reforma, “os alunos (...) desenharão e esculpirão ossos e músculos, exercitar-se-ão em desenhar o modelo vivo e descrevê-lo anatomicamente a fim de conhecerem perfeitamente o arcabouço humano e, seu revestimento”[8].

A perfeita representação do corpo era a base da produção de pintura histórica. Preocupado com o descaso em que se encontravam as aulas de anatomia e de modelo vivo, logo que assumiu o cargo de diretor da instituição, Porto-alegre estabeleceu em um dos estatutos de sua reforma, que todas as cadeiras deveriam ter um programa que estivesse em harmonia com a proposta de ensino da casa. Uma de suas maiores preocupações era romper com o modelo de ensino baseado na cópia, com o objetivo de incitar nos alunos a criatividade. Pois, entendia que somente desta forma poderia conduzir a produção da casa ao progresso artístico, pois formaria “criadores em vez de copistas”.

Porto-alegre chamava também a atenção para a urgência de dotar a instituição de gravuras da fauna e flora nacionais, com intuito de valorizar a natureza brasileira. A pintura de paisagem desempenharia duas funções primordiais à construção de uma identidade nacional: 1) o conhecimento dos espécimes da natureza nacional; 2) a afirmação do caráter nacional da arte. São conhecidos os incentivos do Imperador à pesquisas sobre a fauna e a flora brasileira.

A Reforma de 1855 também agiu na direção de estabelecer pré-requisitos mais exigentes para aqueles alunos que desejassem ocupar a cadeira de pintura histórica, investiu, desta forma, em uma formação mais demorada, porém mais completa. Porto-alegre estabeleceu que para cursar a cadeira de pintura histórica, o aluno deveria obter boas notas nas seguintes matérias: Matemáticas Aplicadas, Desenho Geométrico e Desenho Figurado. Depois de admitido no curso teria que assistir aulas de Modelo Vivo e de Anatomia e Fisiologia das Paixões, matérias obrigatórias a quem pretendesse seguir nesse gênero.

O exaustivo estudo do corpo humano é fundamental para a pintura histórica. Como foi observado, este gênero artístico foi marcado pela preocupação em representar eventos gloriosos e marcantes, que inspirassem nobres sentimentos. Sendo assim, as aulas de Modelo Vivo e de Anatomia e Fisiologia das Paixões constituíam-se como esteios na execução dessas telas. Os movimentos do corpo teriam que ser perfeitamente delineados, as expressões faciais comoveriam, o panejamento das roupas pareceria mover-se com a silhueta do corpo, bem como a paisagem, que seria cuidadosamente “reconstituída” para abrigar os atores da cena, tal como num palco. O observador deveria ter a impressão de ser testemunha ocular do evento. Nenhum detalhe poderia ser mal representado, a identificação do espectador com a cena dependia disso. Um trecho da carta escrita por Porto-alegre a Victor Meirelles, em 1855, mostra o destaque dado à representação do corpo e da emoção:

A figura do algoz tem uma boa cabeça; o pescoço, o tórax e o abdômen estão sofrivelmente modelados e melhor coloridos (...) parece-me que há uma falhazinha miológica na região intercostal. O braço direito, no que toca ao antebraço, punho e mão, esses não foram estudados com tanto amor como o abdômen. O panejamento está bem lançado, bem dobrado, e de um bonito tom, porém, o esbatiamento, ou a sombra que lhe projeta o braço não está muito exato: deveria seguir as curvas das pregas e não apresentar uma linha reta, como a figura em sua generalidade. (...) Antes de compor, veja a ação em geral, veja, depois, cada uma de suas personagens; estude-as moral e fisiologicamente para que elas possam, cada uma per si, compor um todo harmônico e verdadeiro (Apud GALVÃO, 1959, p.72-73).

Os estudos sobre anatomia eram a base da produção de pintura histórica. Por este motivo, quando Porto Alegre dedica especial atenção a este gênero artístico, cria e incentiva as cadeiras de Anatomia e Fisiologia das Paixões e de Modelo Vivo. É necessário chamar novamente a atenção que a importância dessas matérias reside em promover a ligação entre o observador e a pintura, ou melhor, a identificação do cidadão com os eventos da história nacional, representados na tela.

Pintores de História: entre o historiador e o artista

A ligação entre pintura histórica e a disciplina História vai além das evidentes pistas que o próprio nome leva a pensar. Não se trata apenas da temática das telas, mas também de uma ligação estreita entre o trabalho do artista e do historiador. Ambos, engajados na construção de uma memória nacional e no estabelecimento de uma identidade. Como forma de legitimarem a autoridade sobre o passado, o historiador e o pintor de história procuraram marcá-la por meio da investigação científica.

A disciplina História nasceu no século XIX e procurou consolidar seu lugar enquanto ciência por meio das fontes, único elo de ligação entre o historiador e o “fato histórico”. A fonte nesse sentido não era entendida como representação, mas como a própria materialidade do passado. A pintura histórica por lidar com os “fatos históricos”, também deveria utilizar-se de fontes e buscar a “verdade”. Tanto a Academia de Belas Artes quanto o IHGB, são herdeiros dessa tradição, pois ambos são responsáveis pela narrativa do passado nacional. Mais do que isso, essas duas instituições lidam com o elo entre o passado e o presente. Quando Victor Meirelles reinterpretou um episódio como o da Invasão Holandesa, na tela “Batalha dos Guararapes”, ele os fez “reviver”, construiu uma memória que se apoiava na (re) constituição desses momentos a partir de uma narrativa oficial.

As produções da Aiba e do IHGB estavam carregadas de uma dimensão didática, a escrita e a imagem serviam ao esclarecimento dos seus cidadãos, pois gravavam em seus espíritos as virtudes de uma boa sociedade, ditadas, é claro, pela elite do Império. Desta forma, tanto o Instituto Histórico quanto a Academia Imperial, tornaram-se instâncias de controle social, exatamente por se constituírem como lugares de construção do passado. Nesse sentido, as duas instituições detinham o domínio sobre a escrita desse passado, enquanto a Aiba a escrevia na tela a óleo, o IHGB a fazia no papel. Qualquer outra visão que não a oficial, não encontrava espaço para florescer.

A pintura histórica procurou marcar sua legitimidade por meio da investigação científica. Essa tradição buscou distanciar-se de categorias como “imaginação”, carregadas nesse momento de uma conotação negativa. Os pintores de história empenhavam-se representar “o que realmente aconteceu” e deveriam, portanto, afastar-se de tudo que pudesse “falsear” ou “camuflar” esse passado. O pintor deveria permear todo seu trabalho por uma minuciosa pesquisa histórica e atenta observação, pois seriam elas que “resgatam” e “provam” a existência do fato que deseja retratar. De nada adiantariam todos os seus estudos de anatomia e de claro-escuro, se na representação de um grande momento da história nacional, não vestisse seus atores com a roupa da época ou não reconstituísse o ambiente o mais fidedignamente possível. As fontes tornavam-se seu refúgio, quando a critica o atingia, sua defesa era toda pautada no arrolamento dos documentos nos quais se baseou, quão mais “original”, mais legítimo seu trabalho.

No ano de 1868, Victor Meirelles permaneceu cerca de seis meses em Humaitá, Paraguai, onde realizou estudos sobre o território para compor a tela “Passagem de Humaitá”. Ao voltar, embarcou num navio a vapor que percorreu o Rio Paraná. Colheu novamente informações, porém desta vez para o quadro “Combate Naval de Riachuelo”. O mesmo tipo de apreço pela precisão histórica pode ser percebido em Pedro Américo, que trocou correspondências com o mordomo do príncipe Gaston d’Orleans, Sr. José Maria Jacintho Rabello, e pediu-lhe informações sobre o traje que o Conde d’Eu vestia, os nomes e postos das pessoas próximas a ele durante o episódio da batalha na região do Campo Grande, entre outros dados que julgava necessário para confeccionar a “Batalha de Campo Grande”.

A tela não poderia ser puro exercício da “imaginação” do artista, mas sim fruto de pesquisas documentais, de leitura de textos sobre a época e de observação dos personagens e do local onde o evento ocorreu. Nesse sentido, a crítica do jornal italiano “Corriere Italiano” (26/abril/1888) sobre o quadro “Proclamação da Independência”, de Pedro Américo, exposto em Florença no ano de 1888, fazia a seguinte afirmação:

A ação foi estudada no próprio cenário e habilmente representada com todo rigor histórico. (...) Em resumo, a nova tela de Pedro Américo é uma obra colossal... e que traz o cunho de uma imaginação criadora e de um robusto engenho; qualidades que se manifestam na concepção, no desenho, na verdadeira reprodução dos tipos e dos costumes locais assim como do cenário onde se passou o fato histórico e que o autor faz representar com tanta robustez de idéia e de execução (Apud ROSEMBERG, 2002, p. 72-3, grifo nosso).

O rigor no estudo da anatomia e a busca pela veracidade são dois lados de um mesmo objetivo, que é promover a ligação entre o observador e a pintura, ou melhor, a identificação do cidadão com os eventos da história nacional representados na tela, são esses dois elementos que fundamentaram a pintura histórica, enquanto produtora de uma imagem oficial da nação a partir de 1870.

Pintura Histórica: a construção de uma memória nacional

Embora as mudanças introduzidas com Reforma Pedreira não tivessem resultados imediatos, estabeleceram as bases sobre as quais o ensino das belas artes atingiu o auge de sua vocação nacionalista a partir da década de 70. Foi neste período que a pintura histórica ganhou expressão com seus artistas oficiais – Victor Meirelles e Pedro Américo – e quando as Exposições Gerais tornaram-se os grandes eventos do Império. Segundo Debret (1989, p.104), foi graças à direção de Porto-Alegre que a pintura histórica conseguiu popularidade e prestígio.

(...) os pintores, que não eram até então apreciados, foram admitidos nas sociedades mais brilhantes, gozam agora de estima e da consideração geral. O Imperador manda parar sua carruagem na rua para conversar com pintores; deixando um deles cair o pincel num momento de inspiração, o Imperador se abaixou, ergueu-o e o devolveu.

A Reforma Pedreira forneceu as bases sobre as quais as pinturas históricas se consolidariam de tal forma na memória nacional, que se desvinculariam de sua dimensão histórica original. Ou seja, ao invés, de serem encaradas como frutos de uma determinada concepção artística e histórica oitocentista, são tomadas como reflexo daquilo que representam.

Estas imagens acompanham a trajetória de grande parte da população brasileira, seja por meio de livros didáticos, de revistas, de cenas da televisão ou mesmo através do cinema, como é o caso do filme “Descobrimento do Brasil” (1937), do diretor Humberto Mauro. Imagens, que de certa forma, se eternizaram no imaginário com tal força que é quase impossível pensar na missa realizada por ocasião do “Descobrimento”, sem nos remetermos automaticamente à tela de Victor Meirelles, “A Primeira Missa no Brasil”. É importante refazer o percurso que as levou a possuir tamanha força e importância, desnaturalizar seu lugar de “imagens canônicas”, devolver-lhes sua historicidade.

O movimento no sentido de historicizar não só o que é entendido como “arte brasileira”, mas conseqüentemente as telas de pintura de história, é uma forma de compreender esses símbolos enquanto construções históricas. Tomar essa memória como questão é ao mesmo tempo problematizá-la enquanto fruto de uma experiência histórica, constituidora de nossa própria identidade.

Referências:

BORNHEIM, Gerd. Páginas de Filosofia da Arte. Rio de Janeiro: UAPÊ, 1998.

DEBRET, Jean Baptiste. Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1989.

DENIS, Rafael Cardoso. A Academia de Belas Artes e o ensino técnico. In: 180 Anos da Escola de Belas Artes. Anais do Seminário EBA 180. Rio de Janeiro: EBA/UFRJ, 1997, p. 127-146.

GALVÃO, Alfredo. Manuel de Araújo Porto-Alegre: sua influência na Academia Imperial de Belas Artes e no meio artístico do Rio de Janeiro. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Rio de Janeiro, nº 14, p. 19-120, 1959.

PORTO-ALEGRE, Manuel de Araújo. Santa Cruz dos militares. Ostensor Brasileiro: jornal literário pictorial, Rio de Janeiro, ano 1, nº 1, tomo 1, 1845.

________. Algumas idéias sobre as Belas Artes e a Indústria no Império do Brasil. Revista Guanabara, Rio de Janeiro, ano 1, nº 1, p. 114-115, fev. 1850.

ROSEMBERG, Lilia Ruth Bergstein. Pedro Américo e o olhar oitocentista. Rio de Janeiro: Barroso Edições, 2002.

SCHORSKE, Carl. E. Pensando com a História. Indagações na passagem para o modernismo. Tradução Pedro Maia Soares. São Paulo: Cia. das Letras, 2000.

SQUEFF, Letícia Coelho. A Reforma Pedreira na Academia de Belas Artes (1854-1857) e a constituição do espaço social do artista. Caderno CEDES. ano 20, n.51, p. 103-118, nov. 2000. Acesso em: 19 jul. 2004. Disponível em <http://www.scielo.br./scielo.phd?script=sci_arttext&pid=S0101-2622000000200008&Ing=nrm=isso&tlng=pt>.

________. Quando a história reinventa a arte: A escola de pintura fluminense. Rotunda, Campinas, ano 1, nº 1, p.19-31, abril. 2003. Acesso em: 9 jul. 2004. Disponível em <http://www.iar.unicamp.br/rotunda/rotunda01.pdf>.

WINCKELMANN, J. J. Reflexões sobre a arte antiga. Porto Alegre: Movimento, 1975.

ZÍLIO, Carlos. A modernidade efêmera: anos 80 na Academia. In. 180 anos da Escola de Belas Artes. Anais do Seminário EBA 180. Rio de Janeiro: EBA/UFRJ, 1997. p. 237-242.

Notas:

[1] Mestranda em História pelo Programa de Pós-Graduação em História Social (PPGHIS), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

[2] PORTO-ALEGRE, Manuel de Araújo. Sobre a antiga escola de pintura fluminense. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo III, Rio de Janeiro, 1841.

[3] Cf. BANN, Stephen. Romanticism and the rise of history. New York: Twaine Publishers, 1995; GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. A cultura histórica oitocentista: a constituição de uma memória disciplinar. In: PESAVENTO, Sandra Jatahy (org.). História Cultural: experiências de pesquisa. Porto Alegre: Editora UFRGS, 2003.

[4] Em ordem decrescente a hierarquia dos gêneros de pintura estava desta forma estabelecida: pintura histórica; pintura de paisagem, de retrato e de gênero; Temas oriundos da imaginação, ligados a temáticas populares. Com o advento de movimentos como o Realismo, por exemplo, essa hierarquia é invertida, e temas do cotidiano são valorizados.

[5] ESTATUTOS DA ACADEMIA DAS BELAS ARTES. Decreto nº1603 de 14 de maio de 1855. Dá novos estatutos à Academia das Belas Artes.

[6] Ibid, nota 4.

[7] Op. cit, nota 4.

[8] Op. cit, nota 4.

 

 

Revista Digital Art& - ISSN 1806-2962 - Ano III - Número 04 - Outubro de 2005 - Webmaster - Todos os Direitos Reservados

OBS: Os textos publicados na Revista Art& só podem ser reproduzidos com autorização POR ESCRITO dos editores.