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ALÉM DA CENA: A UTILIZAÇÃO DO REGISTRO ESCRITO EM TEATRO-EDUCAÇÃO
Autor: Vicente Concilio[1] - viconcilio@uol.com.br e viconcilio@ig.com.br       

Resumo:

Este texto propõe uma reflexão sobre a utilização do diário de bordo e de protocolos em processos envolvendo interação entre teatro educação, mais especificamente à luz de sua utilização por mim e pelos artistas-orientadores do Projeto Teatro Vocacional, da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, durante a fase do projeto que vai de 2002 a 2004.

Palavras chave: Teatro-Educação, Protocolo, Registro, Teatro Vocacional.

Abstract:

This paper proposes a reflection on the use of board’s diary and protocols in theatre-education, specifically its use by me and the artists of the Projeto Teatro Vocacional (Vocational Theatre Project), in São Paulo, during the period that goes from2002 to 2004.

Keywords: Theatre-Education, Protocol, Register, Vocational Theatre.

O presente texto propõe-se a problematizar a utilização dos diários de bordo e da metodologia dos protocolos pelos grupos do Projeto Teatro Vocacional da Secretaria Municipal de Cultura da cidade de São Paulo, durante sua fase inicial, de 2002 a 2004. Trata-se de instrumentos que aliam registro e documentação a uma constante avaliação e posterior reflexão dos integrantes dos grupos sobre os processos por eles vivenciados dentro de sua experimentação teatral.

Para tanto, parte-se de uma rápida exposição das dificuldades existentes em registrar e documentar uma arte do presente (o teatro), para então enveredar por questões relacionadas entre teatro e pedagogia, dentro do que se propõe o Teatro Vocacional. Finalmente, relata-se um estudo de caso, a experiência do grupo Gruda na Grade e sua relação com a prática dos registros, aqui inserido pela possibilidade de ilustrar e ampliar a discussão acerca da temática principal deste artigo: como as práticas sistemáticas de registros e avaliações do processo teatral podem auxiliar na conquista da autonomia na utilização da linguagem teatral?

Registro repele o teatro; o teatro repele o registro...

Não é necessária uma grande pesquisa para afirmar que um dos grandes problemas da arte teatral diz respeito à documentação e registro não só de suas obras finalizadas (o espetáculo), como também dos processos que os concebem (desde as reflexões de um diretor até os processos de elaboração dos atores, para ficarmos apenas com os mais evidentes).

Se, por um lado, a gravação de um espetáculo pode chegar o mais próximo daquilo que pretende ser um registro ideal, pois ela nos garante a percepção da proposta cênica como um todo (som e imagem), por outro, temos consciência de que o fenômeno teatral necessita da relação entre espectadores e ação cênica no exato momento em que ela está acontecendo. Pode-se questionar essa afirmação, mas dificilmente haverá alguém que prefira assistir à filmagem de uma peça a assistir ao próprio espetáculo, simplesmente porque um vídeo é uma outra linguagem.

Por outro ponto de vista, o literário, podemos considerar a peça escrita como uma obra em si.  Portanto, quando se pretende tratar a história do teatro como história da dramaturgia, ignora-se uma série de agentes que foram dando forma à arte cênica que se realiza hoje: o tipo de interpretação, o tipo de comunicação desejada com a platéia, as condições de encenação, os figurinos e cenários, enfim, trata-se de uma outra história do teatro, que ainda necessita de escritura.

Toda essa introdução diz respeito ao problema que é considerar a possibilidade de documentar uma arte que se constrói a partir de relações absolutamente não mediadas por outro suporte que não o contato direto entre os atores e a platéia. É por essa razão, sem dúvida, que a história do teatro acaba sendo tomada como a história da literatura dramática, uma vez que o papel possui a perenidade que não está presente em um espetáculo, que pode ser repetido diversas vezes, mas que será sempre diferente, pois, no mínimo, a platéia é outra.

A pedagogia registra e avalia; será que a pedagogia do teatro precisa disso?

Diante desse problema, a relação entre teatro e pedagogia deve atentar-se à seguinte questão: é possível uma encenação comportar toda a carga de reflexão produzida pelos desafios de se praticar teatro, uma vez que a prática pedagógica se realiza, também, a partir da avaliação do grau de significação atribuído pelos agentes do processo aos experimentos que estão realizando?

Nosso desejo é responder: sim, é possível. Mas não haveria também um modo de registrar esta reflexão coletiva, sem que esse registro seja algo exterior ao processo de construção de uma obra artística?

Nossa resposta é longa e antes de tudo é preciso afirmar que ela diz respeito aos desafios lançados pelo Projeto Teatro Vocacional, da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, que contava com 70 artistas-orientadores até dezembro de 2004, cujo desafio é possibilitar a criação e o desenvolvimento de grupos teatrais em diversos aparelhos ligados à área cultural: bibliotecas, teatros distritais, casas de cultura e, mais recentemente, os Centros Educacionais Unificados.

A proposta é que estes grupos originados a partir do Vocacional tenham a possibilidade de seguirem autônomos sua pesquisa de linguagem, a partir do momento em que o artista-orientador deixa de acompanhá-los diretamente, passando a assessorá-los, caso necessitem.

Trata-se de uma proposta ambiciosa, porém não impossível, uma vez que a condução do processo esteja voltada para uma democratização do trabalho de criação artística, ou seja, o artista-orientador não deve se limitar a conduzir uma encenação, mas também garantir o acesso dos participantes (os “vocacionados”) à elaboração do processo que conduz à cena. Assim sendo, é necessário que os vocacionados não só participem da encenação; é preciso também instigá-los a uma necessidade de compreender a condução do trabalho, a fim de que possam dominar a etapa nada simples de concepção de um espetáculo teatral.

Nesse ponto, é preciso esclarecer a importância da formação deste artista-orientador, pois o processo que ele irá conduzir não se limita a propor um espetáculo para o grupo representar. Ele é o condutor de uma proposta em longo prazo que deve necessariamente desenvolver uma encenação, mas seu objetivo é fazer com que os integrantes sejam despertados para a possibilidade de construção autônoma de um grupo interessado em continuar sua busca teatral. Ou seja, é preciso que este grupo aprenda a conduzir sua pesquisa, a estruturar seus ensaios, a dirigir seus espetáculos, enfim, é uma tarefa que necessita de atenção especial a um processo que não se limite a um modelo autoritário e centralizador de direção.

Dessa forma, quanto mais instrumentos capazes de conduzir uma reflexão contínua, integrada ao processo, e ainda mais, passível de ampla circulação por todo o grupo, maiores as possibilidades de torná-lo interessado pela própria prática teatral, e mais chances para o artista-orientador avaliar sua própria atuação pedagógica e o quanto suas propostas tornaram-se significativas para o grupo.

A produção de um diário de bordo, um caderno cuja responsabilidade é coletiva e que é lido e debatido por todo o grupo, possivelmente encontra sua gênese nos protokoll, ou protocolos, prática proposta por Bertolt Brecht a partir de suas indagações relativas à pedagogia do teatro, que o acompanhariam por toda a vida, e que produziu a escritura de uma série de peças definidas por uma tipologia dramatúrgica singular: a peça didática.

As peças didáticas são textos que não se destinam à encenação nos moldes tradicionais; elas são na verdade modelos de ação para práticas cênicas que objetivam um aprendizado quando nelas se atua, e não quando se assiste a suas versões encenadas.

Para avaliar a receptividade destas experiências, Brecht fazia uso da prática dos protocolos, onde os indivíduos que tomavam parte destes experimentos relatavam e expunham suas opiniões a partir de sua prática. Sabe-se que Brecht escreveu “Aquele que diz Não” como resposta aos protocolos que lhe foram entregues pelos alunos que tiveram contato com o material de “Aquele que diz Sim”. A partir daí, ele definiu que as duas peças deveriam ser representadas sempre juntas, formando um só texto.

Essa metodologia chegou chega até nós principalmente graças às extensas pesquisas realizadas por Koudela relacionadas à peça didática, e que possibilitaram trocas de experiências entre pesquisadores brasileiros e alemães. Sobre o protocolo, a influência do Prof. Dr. Florian Vasser, da Universidade de Hannover, parece decisiva. Koudela relata[2] que, no início de cada encontro, é lido o protocolo relativo ao encontro anterior, produzido por alguém que se habilitou a escrevê-lo e trouxe uma cópia para cada integrante. À leitura, segue um debate relacionado ao conteúdo do protocolo. No encontro seguinte, será lido um outro, relativo ao encontro presente. E assim está instaurado um ciclo infindável de reflexão produzido a partir de práticas absolutamente vivenciadas pelo grupo.

A proposta do diário de bordo é semelhante, porém adaptada à realidade sócio-econômica dos integrantes dos grupos ligados ao Vocacional: alguém leva o caderno para casa, e se pretende que ele seja trazido, no encontro seguinte, acrescido de alguma reflexão relativa à prática experimentada pelo grupo. Não é obrigatória a escritura de um texto, podemos ampliar as possibilidades de meios comunicativos: imagens, relatos pessoais, poesias... O que interessa é que o grupo vá criando vínculos com esse procedimento metodológico. Pois o diário de bordo, longe de ser apenas um portador de relatos das experiências vivenciadas pelos integrantes, também deve adquirir a função de suporte dos saberes elaborados pelo grupo ao longo de sua trajetória na construção da obra teatral. E, além disso, servir de porta voz dos questionamentos dos vocacionados em relação ao processo que estão vivenciando.

Obviamente, este envolvimento profundo com o diário de bordo não nasce espontaneamente, e tornar esta prática significativa para o grupo é mais um desafio para o artista-orientador. Em princípio, ele mesmo deve valorizar esta prática, pois através do diário, e dos debates que ele propõe, é possível estar sempre atento ao desenvolvimento do grau de consciência que o grupo vai adquirindo sobre o trabalho com teatro.

Para que o grupo seja cúmplice na elaboração deste corpo de reflexões é necessário que ele perceba o quanto este diário resulta em termos concretos dentro da prática teatral. Caso contrário, corre-se o risco de produzirmos um caderno inócuo, assim como é inócuo grande parte daquilo que se escreve, por exemplo, em redações escolares, que não possui significado real em termos de comunicação, pois nasce em uma situação artificial onde o professor propõe um tema qualquer e o estudante deve mostrar que sabe elaborar um texto.

Dessa forma, o diário de bordo deve ser encarado como forte aliado em termos de registro do processo e também como propulsor contínuo de reflexão do grupo, além de servir como instrumento avaliador das condições em que o grupo se encontra diante do desafio teatral.

Um exemplo às avessas: o grupo Gruda na Grade.

Neste ponto, seria maravilhoso revelar o quanto o diário de bordo do Gruda na Grade, grupo orientado por mim há um ano e meio, está presente no cotidiano dos ensaios e é importante para os integrantes do grupo. Mas confesso que o registro do processo de construção do espetáculo Trevas no Palco acabou relegado a um infeliz segundo plano durante longo tempo.

Desde março de 2003, na Casa de Cultura Raul Seixas, em Itaquera, Zona Leste de São Paulo, o grupo iniciou seu processo de criação teatral. Inicialmente com um número de quinze adolescentes, o processo chegou a ter trinta e cinco participantes. Hoje o grupo é composto por vinte integrantes.

Os ensaios aconteciam inicialmente aos domingos pela manhã (depois, ao longo de 2004, aconteciam aos sábados e domingos no período da tarde), e o espaço reservado a seu desenvolvimento é praticamente aberto: a Casa de Cultura é o aproveitamento de uma antiga residência, inserida no Parque Raul Seixas, que fica em um ponto central da Cohab José Bonifácio, e sua sala de ensaio possui três portas que, por servirem de acesso a outras partes da residência, estão impossibilitadas de serem trancadas.

Imaginem agora trinta pessoas tentando fazer teatro em um domingo pela manhã, em um espaço aberto à circulação. Alie a isso um artista-orientador que, na época, trabalhava pelo segundo ano consecutivo em um presídio, onde aprendeu que tudo que se é obrigado a fazer é o oposto da autonomia, portanto é contrário à filosofia do projeto Teatro Vocacional.

Façam mais um esforço e visualizem suas tentativas de leitura coletiva dos protocolos enquanto o grupo se dispersava com as revistas expostas para empréstimo, com as crianças que invadiam a sala durante o aquecimento, com os adultos curiosos que dirigiam perguntas ao grupo enquanto estavam no meio de qualquer atividade. Pensem também que, na época, o Vocacional era uma das poucas atividades oferecidas pela Casa, portanto era impossível negar a qualquer interessado a possibilidade de integrar-se ao processo, mesmo após três meses de trabalho, o que dificultava a consolidação de um corpo fixo de integrantes, e por conseqüência, de elaboração de um contrato grupal efetivamente compartilhado por todos integrantes do processo.

O resultado, naquele momento, foi de que a leitura dos protocolos mais atrapalhava que colaborava, pois existia um grupo ainda em formação, com número incerto de participantes, ainda pouco à vontade com a idéia de formarem um coletivo. Havia um prazer imenso demonstrado pelos integrantes quando eram desafiados pelas propostas de jogos teatrais e de improvisação, mas quando o caderno aparecia, era como se o universo escolar invadisse algo que deveria ser bem diferente das obrigações sem sentido que ele impõe. O diário desapareceu: alguém o levou e não o trouxe de volta. Ele só ressurgiu três meses depois, à custa de uma estratégia pouco ortodoxa: uma mentira, dizendo que se não fosse devolvido à Secretaria, era caso de demissão.

Durante o primeiro semestre de 2004, ele se fez presente ainda timidamente. A dispersão característica do grupo ainda está presente, mas ela melhorou muito, sem que fossem necessários discursos e ameaças: com o tempo, criou-se a consciência de que os encontros são mais bem aproveitados quando a concentração nas atividades é maior. Paralelamente, um certo sentido de urgência foi aparecendo quando o grupo se viu diante de diversas possibilidades de apresentar o espetáculo, que atualmente precisa ser finalizado.

Ao mesmo tempo, foi ficando patente que a presença de um registro não pode ser encarada como algo que “toma o tempo” dos ensaios. Na verdade, por diversas vezes, os protocolos anunciavam, com antecedência, temas que acabavam ocorrendo nas avaliações das cenas e das improvisações, que resultam no espetáculo. A percepção do valor da reflexão acontecia quando ela mostrava sua capacidade de elucidar a prática, porque é no embrenhar-se com nossas limitações e na luta por superá-las que se dava a elaboração de um saber significativo, capaz de fertilizar sua manifestação concreta, no caso, a cena teatral, e que certamente fará parte do acervo dos integrantes envolvidos, importante contribuição para os futuros desafios, diante de uma possibilidade de autonomia.

O desafio de criar vínculos concretos entre o diário de bordo e a prática desenvolvida ganhou diversos formatos em diferentes processos. Por exemplo, serviu inclusive de suporte para a criação da dramaturgia do espetáculo “Liberdade, Justiça e Conveniência”, do grupo Off Off Broadway, da Biblioteca Pablo Neruda, na Vila Maria, cujos diários de bordo são documentos de valor estético e literário interessantíssimos.

A conclusão, no mínimo, é de que a prática do protocolo, encarada como aliada do teatro , como regra do jogo, como suporte dramatúrgico, como processo colaborativo, como criação coletiva, como parte do aquecimento, do aquecimento da sede pelo conhecimento, vai resultar diretamente na cena, como efeito da beleza que é ver alguém pleno de consciência de seu discurso transformado em teatro, que se multiplica por cada um da platéia que percebe, no envolvimento do ator-jogador com seu fazer em cena, um sentido que muitas vezes custamos a encontrar no cotidiano.

Referências:

KOUDELA, I.D. Brecht na Pós-modernidade. São Paulo, Perspectiva, 2001.

________. Brecht: Um Jogo de Aprendizagem. São Paulo, Perspectiva, 1991.

LEITE, V.C.S. A Criação Literária e o Jogo Teatral. Mestrado, CAC/ECA/USP, 2003.

MACHADO, M.M. O Diário de Bordo como ferramenta fenomenológica para o pesquisador em Artes Cênicas. IN Sala Preta, Revista do Departamento de Artes Cênicas da USP n.2, 2002.

OLIVEIRA, U.F. de. Veredas do Estranhamento: Pedagogia do Teatro e Produção de Texto. Tese de Doutorado, Faculdade de Educação, USP, 2001.

Notas:

[1] Mestrando em Artes Cênicas na ECA/USP, na área de Teatro e Educação, sob orientação de Maria Lúcia Pupo.

[2] KOUDELA, Ingrid Dormien.Brecht na Pós-Modernidade. São Paulo: Perspectiva, 2001.

 

Revista Digital Art& - ISSN 1806-2962 - Ano III - Número 04 - Outubro de 2005 - Webmaster - Todos os Direitos Reservados

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