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A BELA E A FERA, DE JEAN COCTEAU: CINEMA E ARTES PLÁSTICAS
Autora: Luciene Guimarães de Oliveira[1] - luciennegui@hotmail.com

Resumo:

O filme de Jean Cocteau, A Bela e a Fera, traduz visualmente os universos das pinturas de Jan Vermeer, Marc Chagall e das gravuras de Gustave Doré para os contos de Perrault.

Palavras chave: Cinema, artes plásticas, Jean Cocteau, Gustave Doré, pintura holandesa sec. XVII.

Abstract:

The Jean Cocteau´s french film, Beauty and the Beasty, translates in a visual form, Jan Vermeer and Marc Chagall canvas and also Gustave Doré’s illustration to the Perrault fairy tales.

Keywords: Cinema, arts, Jean Cocteau, Gustave Doré, pintura holandesa sec. XVII.

Ao investigar uma possível interação entre diferentes artes, especificamente ao se tratar da relação do cinema e artes plásticas, podemos perceber uma tradução visual. Como se daria uma transposição das artes plásticas para o cinema?  Um amálgama entre diferentes linguagens - as telas de pintura,  gravuras e a tela de cinema? Buscamos essa relação em um filme  dirigido pelo cineasta francês  Jean Cocteau, em 1946 e que é também uma transcriação de um reconhecido conto de fadas, “A Bela e a Fera” (La Belle et la Bête) de Jeanne-Marie Leprince de Beaumont.

Em uma época pós-guerra, Jean Cocteau surpreende ao filmar uma estória de encantamento. “A Bela e a Fera”, que por sua beleza plástica, figurou na lista dos melhores filmes, citado por Jean-Luc Godard em seu livro Introdução a uma verdadeira história do cinema em que ele elabora uma lista pessoal dos clássicos que fizeram a história do cinema.[2] Para recontar tal conto de fadas, Cocteau, que também transitava por outras linguagens, como o desenho, escultura, teatro e a poesia, se vale da pintura holandesa do século XVII - telas de Jan Vermeer, Pieter de Hooch, Marc Chagall e ainda gravuras de Gustave Doré para criar a ambientação do seu filme. Valendo-se de uma estética pictórica, Cocteau estreita as relações entre o cinema e a pintura, transpondo o universo das telas desses pintores holandeses, além das gravuras de Gustave Doré que ilustraram o livro dos contos de Perrault, para o filme. Dessa forma, Cocteau não transcria apenas o literário, mas também o pictórico em La Belle et la Bête, numa tradução intersemiótica das telas de pintura para as telas do cinema.

Jakobson, ao considerar a tradução intersemiótica, também admite que “as diferentes artes são comparáveis”,[3] e podemos assinalar que o termo adaptação, comumente usado para designar a re-elaboração  de um texto literário para o cinema, é muito genérico e não atende às singularidades da transposição de um meio verbal para o não-verbal.  Tratar, então, do filme A Bela e a Fera é lidar com uma tradução intersemiótica que é também uma transcriação, pois, numa operação dessa natureza, traduz-se o próprio signo, em sua materialidade como nos lembra Haroldo de Campos, operação criativa que escapa à fidelidade.

Se, para Haroldo de Campos, na transcriação traduz-se o próprio signo, “propriedades sonoras, de imagética visual, enfim, tudo aquilo que forma a iconicidade do signo estético, entendido por signo icônico”,[4] no cinema tudo são signos: figurinos, cenários, gestos, iluminação, tudo é significação e linguagem, tudo nos convida a leituras. Cocteau parece assim entender a concepção de um filme, pois no diário das filmagens de La Belle et la Bête, ele registra a proeza do seu diretor de arte que conseguiu fundir as ilustrações de Gustave Doré para o livro de “capa vermelha dos contos de Perrault”[5] com o estilo do pintor holandês Jan Vermeer.         Para Jakobson, há uma equivalência entre as artes: “o fato de discutir-se se as ilustrações de Blake para a Divina Comédia são ou não adequadas é prova de que as diferentes artes são comparáveis.”[6] Tanto Vermeer quanto De Hooch eram holandeses contemporâneos e pintaram interiores domésticos. Ambos primam pela luz em suas telas: em De Hooch, “há uma atmosfera clara de vida cotidiana comum”, suas primeiras telas mostravam “duas ou três pessoas envolvidas em tarefas domésticas, num quarto banhado em luz”;[7] em Vermeer, por outro lado, há “uma poesia de sua visão” e a presença de um “esplendor da luz” no que ele capta. Cocteau parece transpor essas luzes para o filme. Tanto o interior da casa da Bela quanto as cenas do exterior são bastante iluminados. Os cenários e figurinos da casa de campo da família da Bela são baseados no universo doméstico de Vermeer e Hooch. Uma das telas mais conhecidas de Vermeer, “Moça com brinco de pérola”, em que uma jovem exibe um turbante sobre a cabeça, pode certamente ter tido sua imagem transcriada por Cocteau, ao compor a Bela de Beaumont em seus afazeres domésticos. Já as ilustrações de Gustave Doré são muito pouco iluminadas, pois até mesmo a técnica de gravura em preto e branco utilizada parece não permitir uma iluminação clara e favorece as sombras. Em seu diário, Cocteau chega a lembrar que algumas cenas de exteriores próximos ao castelo são o “puro Gustave Doré das imagens de Perrault”,[8] especialmente as que ele desenhou para o conto “A Bela Adormecida” e “Pele de Asno”. Cocteau, no filme, alude a essas ilustrações de Doré. No filme de Cocteau, as cenas em volta do castelo da Besta têm uma iluminação fechada, acinzentada, que evoca essa atmosfera das gravuras de Doré — “sob o signo desse objeto de arte (Doré), eu fiz meu filme”, registrou Cocteau em diário sobre o filme, o “Journal d’un film.[9]

Observando um contraste entre a iluminação das cenas do universo da Bela e as cenas de pouca iluminação da floresta e do castelo da Fera, podemos entrever uma poética da luz no filme de Cocteau, que evoca o claro e o escuro, um mundo iluminado que envolve o universo de Bela, e um mundo sombrio que é o da Fera. O mundo da Bela é, portanto, o da iluminação, com cenas externas do pátio da casa de campo, bem delineadas pela luz natural, sendo que a luz do interior de sua casa é marcada por uma transcriação do universo de Vermeer.

Já as cenas da Fera são um jogo de luz e sombra — com predominância da sombra — criando uma atmosfera esfumaçada e misteriosa, bem à maneira das ilustrações de Doré. Tal mundo sombrio evoca o mistério nas cenas do castelo e da floresta, que o pai de Bela teria percorrido até perder o rumo e deparar-se com o castelo da Fera. Ao adentrar esse universo da Fera, encontra um outro mundo: o do fantástico e do mistério. Quando o pai de Bela começa a explorar o castelo, uma sombra imponente se inscreve na porta. Ao adentrar a porta que se abre sozinha, depara-se com um cenário onde Cocteau explora plenamente o “realismo irreal”: candelabros são suspensos por braços humanos, estátuas têm rostos com expressão; na mesa, uma mão humana serve vinho ao mercador; tudo iluminado pela chama das velas dos candelabros vivos, cujo cenário num jogo de luz e sombra lembra o cinema expressionista.

Cocteau também se recusa a fazer, da fotografia do filme, uma uniformidade. Ele prefere, então, escapar ao que se convencionou chamar de estilo, pois, segundo seu diário, “um filme deve distrair o olho pelos contrastes, pelos efeitos que nem sempre imitam a natureza”.[10] Valendo–se disso, Cocteau, para expressar sua linguagem, transcria o claro da pintura de Vermeer e De Hooch, e o escuro das gravuras de Doré. Tal poética da luz expressa o contraste dos mundos e dos sentimentos da Bela e da Fera. Dois mundos, que a princípio são quase incomunicáveis, separados pelo distanciamento entre beleza e feiura, encantamento e horror.

Além das pinturas de Vermer e gravuras de Doré, outra alusão se inscreve no filme, dessa vez ao universo de Marc Chagall, que recriava a atmosfera de contos de fadas em sua pintura, e figurava, em algumas telas, personagens voando. Chagall, por sua vez, já ilustrou fábulas de Fontaine. A cena que remete aos quadros de Chagall celebra a magia do conto de fadas, em que uma fada, através da sua clássica vara de condão, faz transportar Bela e o príncipe para o reino.  Cocteau, no seu “conto de fadas sem fadas”, preserva a magia: sob um céu que se esfumaça em nuvens, voam a Bela e o príncipe Ardent.

Portanto, podemos concluir que o filme de Jean Cocteau consegue traduzir visualmente os elementos da pintura holandesa e das gravuras de Doré, consumando assim uma relação entre duas linguagens, dois suportes. Duas formas artísticas diferentes em uma só tela: a do cinema.

Referências:

CAMPOS, H. de.  Metalinguagem & outras metas. São Paulo: Perspectiva, 1992

COCTEAU, J. La Belle et la Bête: journal d´un film. Monaco: Editions du Rocher, 1958.

GODARD, J.L. Introdução a uma verdadeira história do cinema. Trad. DANESI, A. de P. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

JAKOBSON, Rn. Lingüística e comunicação. Trad. Izidoro Blikstein, José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 1971.

 O LIVRO da Arte. Trad. Mônica Stahel. São Paulo: Martins Fontes, 1999. (sem autor).

Nota:

[1] Mestre em Teoria da Literatura pela UFMG.

[2] GODARD. Introdução a uma verdadeira história do cinema, p. 95.

[3] JAKOBSON. Lingüística e comunicação, p. 119.

[4] CAMPOS. Metalinguagem & outras metas, p. 35.

[5] Em francês: “(...) le style de Vermeer et celui des illustrations de Gustave Doré dans le grand livre à couverture rouge et or des contes de Perrault.” COCTEAU. Journal d’ un film, p. 20.

[6] JAKOBSON. Lingüística e Comunicação, p. 119.

[7] O Livro da Arte, p. 229.

[8] “C’est le pure Gustave Doré des images de Perrault”. COCTEAU. Le journal d’un film, p. 171.

[9] COCTEAU. Le journal d’un film, p. 219.

[10] Em francês: “Un film doit distraire l’oeil par des contrastes, par des effects qui ne cherchent pas à copier ceux de la nature”. COCTEAU. Journal d’un film, p. 151.

 

 

Revista Digital Art& - ISSN 1806-2962 - Ano III - Número 04 - Outubro de 2005 - Webmaster - Todos os Direitos Reservados

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