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A CONSTRUÇÃO CULTURAL PELAS METÁFORAS: A MPB E O ROCK NACIONAL ARGENTINO REPENSAM AS FRONTEIRAS GLOBALIZADAS
Autor: Marildo José Nercolini[1] - marildonercolini@uol.com.br

Cavalo selado, montado, e muito chão adiante.
Viajar — mas de outras maneiras:
transportar o sim desses horizontes. Existe é homem humano. Travessia
Guimarães Rosa
.”

Resumo:

Trabalhando nos interstícios, dialogando com elementos globais, tecnologias de ponta e estratégias multidirecionais, mas sem esquecer o que lhe é diferencial e ao mesmo tempo sua moeda de troca: os elementos próprios da cultura onde vivem e criam, o Rock Nacional Argentino e a Música Popular Brasileira estão inseridos na sociedade de seu tempo e são capazes de captar as transformações pelas quais a sociedade passa, criando a partir dela. Tanto a MPB quanto o RNA têm uma grande importância no imaginário de toda uma geração pós-60 em seus países de origem. Os dois movimentos musicais ajudaram a construir um espaço de manifestação e expressão até então inexistente para uma nova geração que surgia. A partir dos anos 90, em um mundo em que as fronteiras estão rasuradas e as identidades cindidas, esses artistas, contemporâneos do tempo em que vivem, têm uma produção artística e uma postura de criação que dialogam diretamente com esse novo contexto. Transitam por diferentes gêneros, reciclam e traduzem o local de onde vêm, com seus costumes e tradições, colocando o local em contato com a cultura globalizada, dando-lhe uma amplitude cosmopolita, sem perder, no entanto, a dimensão própria.

Palavras chave: Música Popular Brasileira. Rock Nacional Argentino. Tradução cultural. Reciclagem cultural. Hibridação.

Abstract:

Brazilian Popular Music and Argentinian National Rock are, each, deeply rooted within their specific environment and time. Both MPB and RNA retain the marks of the transformations undergone by their society, and have recreated such transformations into peculiar aesthetical forms of artistic expression. Deriving from worldwide spread international music genres, MPB and RNA establish a good dialogue with globalized movements, while creating their own identity within the gaps. They abide to the state of art techniques and to marketing, but never forget that which makes them unique, and represents their power of bargaining: the elements inherent to their own culture, the culture of the places where these artists live and create. From the Nineties onwards, MPB and RNA artists hold a means of artistic creation and a kind of authorship well inserted into this new world context where the frontiers have been erased and identities have been blended. Their music travels through different places and genres, recycling and translating the places they come from, with their usages and traditions, in a way inserting these places within a globalized culture, giving them a cosmopolitan scope, without ever losing their peculiar means of expression.

Keywords: Brazilian Popular Music. Argentinean National Rock. Cultural Translation. Cultural Recycling. Hybridity.

Quando alguém decide aventurar-se numa viagem sem roteiro fechado é fundamental a atitude de abertura para o inusitado que poderá advir. O possível sucesso da empreitada vai depender em grande parte da disposição do viajante em lançar-se e estar preparado para o inesperado e para os riscos que isso implica: a transformação. O contato com o outro, o diferente, pode ampliar os horizontes do possível e trazer mudanças cujo controle pode sair das mãos do viajante. Nos tempos que vivemos se têm todos os mecanismos de previsibilidade e planejamento, com uma proliferação de dados fornecidos por livros, fotos, reportagens, imagens, internet que tornam o outro – por mais que ele esteja a muitas milhas distante - um quase presente. Basta um toque no mouse para se penetrar em sua geografia, em sua história, em seus costumes; mas mesmo assim o inusitado se faz presente e as possibilidades de perder-se, quebrar-se, reencontrar-se, refazer-se e transformar-se ainda tornam a viagem – real ou imaginária – atraente ou assustadora, dependendo da atitude do viajante e de seu desejo e condições de aceitar o desafio do lançar-se, sem certezas do resultado final.

Iniciar uma viagem nesses termos significa preparar-se para os possíveis embates, para os diálogos truncados, para as tentativas – algumas frutíferas outras nem tanto - de aproximação e compreensão, enfim, significa estar preparado para entrar no mundo da tradução de si e do outro com seus caminhos turbulentos, mas sempre instigantes.

Em pesquisa anterior havia analisado o papel fundamental que o cantor-compositor da MPB dos anos 60 ocupara no Brasil de então. Num período (1964-1969) em que o aparato repressivo cerceava o principal instrumento do intelectual – a palavra, por considerá-la subversiva pois colocava em foco a situação de autoritarismo e repressão, minha intenção foi mostrar que, impedida de ser falada, essa palavra se revestiu de linguagem poética, de sons e de imagens, passando a ser difundida pela música. Centrando a análise na trajetória e na criação musical de Chico Buarque e Caetano Veloso, pude constatar que os músicos e compositores brasileiros do período passaram a exercer o papel de intelectuais através de suas composições e de sua postura, mostrando o que em outros espaços não era permitido.

Vencida essa etapa importante da minha jornada de pesquisador, resolvi embarcar em uma viagem mais pretensiosa e desafiadora. Academicamente, decidi mudar de área, da Sociologia para a Literatura; geograficamente, mudar de cidade, de Porto Alegre para o Rio de Janeiro. Sentia a necessidade de novos aportes teóricos e também de novos ares humanos e geográficos. O Rio foi o destino escolhido pois parecia o local mais adequado para preencher esses desejos e necessidades, entre tantas razões, porque essa cidade tem sido um dos palcos privilegiados da MPB, onde ela surgiu, desenvolveu-se e projetou-se como uma das manifestações culturais mais importantes do Brasil contemporâneo.

Estava envolto pela vontade de pensar o tempo que vivia. As identidades pareciam mais fluidas, as fronteiras do conhecimento e das nações se mostravam mais móveis, as certezas se esvaíam, o contato entre culturas se intensificava de forma nunca antes vista, o processo de globalização entrava na ordem do dia, causando medo e trazendo inúmeros desafios... Envolvido por essas questões, resolvi analisá-las mais a fundo.

Como essas transformações estariam afetando a criação da cultura e da arte, sobretudo da canção? Como a América Latina, o Brasil viviam esses processos? Qual a contribuição dos pensadores latino-americanos nos estudos sobre esses fenômenos? Como a canção, que tivera papel fundamental para pensar e tentar colocar em prática os sonhos dos anos 60, estaria enfrentando esses novos tempos? Esses questionamentos foram delineando a tese de doutorado, principal objetivo da viagem, acadêmica e geográfica, que começava a trilhar.

À MPB juntou-se o Rock Nacional Argentino (RNA)[2] com o qual havia entrando em contato, como ouvinte, nos anos 80, através de Charly García, León Gieco e Fito Paez; e, academicamente, durante o mestrado quando, ao estudar e analisar o que se passava com a música no continente latino-americano, deparei-me com essa manifestação musical que, assim como a MPB no Brasil dos anos 60, tivera um papel muito importante na Argentina. O Rock Nacional se constituiu num espaço de manifestação geracional fundamental na Argentina; os roqueiros tiveram participação importante na luta pela liberdade de expressão, num país que vivia sob uma das mais cruentas ditaduras latino-americanas, mal que assolava vários países do nosso continente nesse período. 

O Rock Nacional trazia a possibilidade de romper os limites nacionais e incorporar na minha pesquisa a Argentina. Desse modo, pude estender a reflexão para a produção artística e acadêmica latino-americana, imbuído da certeza de que os laços entre os países localizados abaixo do Rio Bravo precisavam ser fortalecidos e que o fomento dessa rede imaginária poderia tornar mais eficaz  a produção artística e intelectual desse lado do mundo, dando-lhe maior poder de negociação no mundo globalizado e cada vez mais competitivo.

A reflexão teórica feita durante o curso de doutorado na UFRJ ajudou-me a trilhar esse espaço entre-cultural Brasil-Argentina, fornecendo-me cabedal teórico e metodológico necessário para melhor entender e analisar como se dava a criação cultural no mundo contemporâneo, através do estudo comparativo entre a MPB e o Rock Nacional Argentino. Durante o percurso acadêmico, novos questionamentos surgiam no contato com intelectuais, pesquisadores, colegas e com a cidade que me acolhia. Os muitos diálogos, os debates, os seminários e as leituras feitas proporcionaram-me uma maior proximidade com pensadores latino-americanos e aprimoraram o instrumental teórico para continuar a viagem e corrigir sua rota. Estudos aprofundados de García Canclini, Beatriz Sarlo, Martín-Barbero, Carlos Monsivais, Carlos Rincón, Haroldo de Campos, Silviano Santiago e Heloísa Buarque de Hollanda, que produziam um pensamento ao mesmo tempo localizado e global, descortinavam novas e instigantes questões. Os estudos de cultura por eles realizados me fizeram conectar mais adequadamente com as análises de pensadores como Stuart Hall, Raymond Williams, Andréas Huyssen e Edward Said.

Se estava disposto a falar de uma das manifestações culturais contemporâneas mais importantes para a Argentina, precisava não somente conhecê-la teoricamente e à distância, mas vivenciá-la em seu espaço privilegiado, onde se projetou e criou seus seguidores: Buenos Aires, a cidade-palco do Rock Nacional. Por um tempo, entre maio e outubro de 2001, morei na capital portenha e entrei em contato com seus costumes e tradições. Vivencie em terras portenhas um momento de profunda crise da nação argentina, que percebia crescer dia após dia. Percorri suas ruas, parques e bibliotecas; deixei-me seduzir pela “Calle Corrientes” com suas inúmeras livrarias, cinemas e salas de teatro; envolvi-me em suas lutas políticas e sociais. Conheci sua gente, intelectuais, estudantes, artistas, escritores, roqueiros consagrados e iniciantes, jornalistas, assim como as pessoas comuns, trabalhadores, artistas de rua, donos de bancas de jornal, “quiosqueiros”.

Enfim, disposto a captar e vivenciar a metrópole portenha, local privilegiado de manifestação do Rock Nacional, experimentei o estranhamento de viver numa cultura outra. Experiência que me ajudou a melhor entender a minha própria cultura e perceber o quão enriquecedor pode se tornar esse contato com o outro, desde que se esteja disposto a deixar ouvidos, mente e coração abertos para acolhê-lo em suas diferenças. Nem sempre entendendo ou concordando com tudo, nem sempre me sentindo à vontade, mas sempre disposto a dialogar, a compartilhar, a traduzir e a ser traduzido.

Antes de teorizar e escrever sobre, vivenciei o quanto pude o Rock Nacional, a MPB, a tradução, a reciclagem, a hibridação, as fronteiras culturais e as identidades mais fluidas e móveis. Os deslocamentos geográficos e teóricos realizados permitiram-me captar matizes culturais diferentes, notar os pontos de contato e as diferenças e, sobretudo, fizeram-me perceber como é produtivo e instigante criar nos interstícios, nos espaços entre-culturais, mesmo com todas as dificuldades decorrentes.

As muitas viagens e deslocamentos feitos pelos cantores e compositores da MPB e pelos roqueiros argentinos me davam a possibilidade de analisar mais profundamente todas essas questões. Zeca Baleiro vinha do Maranhão, Chico Science e o Movimento Manguebeat de Pernambuco, Divididos dos arredores de Buenos Aires, Patricio Rey y sus Redonditos de Ricota de La Plata. Essa geração dos anos 90 estava disposta a conectar o local e o global, mostrando sempre onde estavam situados, de onde vinham e abertos para o diálogo e também para o embate com outras culturas, outras vivências diferentes da sua, criando nesse espaço intersticial. Estabeleciam laços de afiliação com pessoas, propostas, locais e tradições. Refiro-me à afiliação no sentido desenvolvido por Edward Said e, posteriormente, retomado por Heloísa Buarque de Hollanda.

Edward Said (1983), ao tratar sobre afiliação, estava disposto a traçar o itinerário que idéias e teorias acadêmicas percorrem ao se deslocarem de seu local de origem para outros países e comunidades acadêmicas. Said estabeleceu quatro passos dessa jornada. Primeiro, o ponto de partida, isto é, o conjunto de circunstâncias onde a idéia/teoria nasceu ou se fez discurso; o segundo momento, a trajetória percorrida em direção a outros espaços com suas temporalidades diversas; em seguida, as condições de recepção dessa idéia/teoria nesses novos contextos, os enfrentamentos, até ser aceita; por fim, o processo de transformação que essa “teoria viajante” sofre devido a seus novos usos e pelas distintas posições ocupadas nesses diferentes tempos e espaços, gerando novas articulações.

Heloísa Buarque de Hollanda (1999), de maneira sugestiva, dialoga com esse conceito de afiliação e o relaciona com o processo de globalização. Seu enfoque permite-nos perceber como esse processo, originado no centro do poder mundial – Estados Unidos –, ao ser implantado em outros contextos com suas especificidades,  é transformado. Gerando “novos networks”, o processo de globalização forja “conexões entre indivíduos e instituições que nunca antes tiveram a chance de estabelecer contato” e promove “estratégias de ajuda ou de intercâmbios mais efetivos”, localizando “povos, pessoas, recursos, crenças e informações - e até disciplinas”[3] (Buarque de Hollanda, 1999: 346).

Em meio à onda globalizadora em que se vêem envoltos e o temor da homogeneização que ela poderia gerar, os roqueiros argentinos e os cantores e compositores da MPB sentem a necessidade de se localizar, de situar a sua produção, de mostrar que não estão soltos no mundo, que possuem o seu capital cultural próprio advindo das vivências da cultura local onde nasceram. Esses artistas estavam dispostos a conectar-se ao processo globalizador, com seus avanços e novas possibilidades, mas demonstravam enfaticamente o desejo de fazê-lo a partir do espaço em que viviam, com suas tradições e traços distintivos, afiliando-se a pessoas que os antecederam – e com as quais queriam estar associados – e a seus contemporâneos – aqueles com os quais se sentiam ligados pelos mesmos desejos e propósitos. Nesse espaço gerado entre o próprio de sua cultura e a cultura globalizada criam a sua arte.

O resultado dessa pesquisa quer dar conta da trajetória percorrida pela MPB e pelo Rock Argentino, através de um estudo comparativo desses movimentos musicais. A intenção principal foi captar, descrever e analisar como eles constroem sua arte em meio a um mundo globalizado, em que a maior facilidade do contato e das trocas entre culturas traz novos desafios, exige uma renegociação de suas prioridades e, para não cair na tão temida homogeneização, requer mudanças na sua postura de vida e de criação. A ênfase está colocada nos anos 90, período em que, na América Latina, o processo da globalização e as transformações decorrentes se implantavam, trazendo um misto de medo e desafio, pois não se sabia exatamente em que chão se estava pisando e aonde se chegaria. Pensar e produzir arte e cultura nesse contexto exigia situar-se nessa nova realidade. Como criar dentro desse processo? No processo de negociação com o global, o que manter do próprio, o que deter do alheio? Que estratégias usar para responder a essas transformações?

O itinerário da pesquisa foi construído dentro do arcabouço teórico fornecido pela Literatura Comparada, mas fazendo-me auxiliar por outros campos do conhecimento, como a História, a Sociologia e a Antropologia, por acreditar que a complexidade contemporânea exige a produção de um conhecimento não mais fechada nos rígidos limites de uma disciplina ou de uma teoria.

Consciente de que muitas abordagens seriam possíveis, estabeleço uma escolha daqueles pensadores e suas análises que me parecem mais adequados para o estudo proposto. Filiou-me a uma concepção de mundo e de cultura ligada aos Estudos de Cultura, cuja matriz está situada nos estudos de Raymond Williams e Stuart Hall e na leitura deles feita pelos pensadores latino-americanos contemporâneos.

Atenho-me fundamentalmente à noção de culturas em sentido sociológico e antropológico, designando um modo de vida global  e característico, com seu sistema  de significações e envolvendo todas as formas de atividade social. A partir dessa noção, pode-se pensar a cultura como processo de criação da diferença.  Conceber a cultura enquanto processo dinâmico de produção das diferenças nos remete ao processo da construção de identidades, identidades nacionais, de grupos específicos, de acordo com gênero, classe, objetivos, necessidades...

Fredric Jameson é contundente ao afirmar que cultura é “o conjunto de estigmas que um grupo porta ante os olhos de outros (e vice-versa)” e que ela deve ser apreciada “como um veículo ou meio pelo qual a relação entre os grupos é levada a cabo” (Jameson, 1993: 104).

Arjun Appadurai opõem-se à visão essencialista de cultura por essa privilegiar “as idéias de estar de acordo, estar unido e do compartilhado por todos” (Appadurai, 2001: 27). Esse autor sugere a apreensão da cultura não como propriedade de indivíduos ou grupos, mas enquanto dimensão dos fenômenos sociais, focalizando o seu aspecto contextual. Em síntese, Appadurai propõe que se analise cultura como:

(...) um subconjunto de diferenças que foram selecionadas e mobilizadas com o objetivo de articular as fronteiras da diferença, como tentativa de manutenção de fronteiras, tendo presente o seu caráter móvel e seu deslocamento constante (Ibid.).

A ênfase do estudo é colocada na produção musical do RNA e da MPB dos anos 90, mas para entendê-la e melhor captá-la,  volto aos anos 60-70, período em que essas manifestações iniciaram sua trajetória, para situá-las social, histórica e culturalmente. Ao apresentar a trajetória do RNA e da MPB, atenho-me a pessoas, a grupos, a fatos e a idéias que nortearam as propostas e que me pareciam fundamentais para melhor captar o que eram, a que se propunham e as transformações que vivenciaram, interna e externamente, para chegar aonde chegaram nos anos 90.

Dentro de um contexto em que as certezas se esvaíam e as fronteiras se tornavam móveis e se deslocavam,  os pressupostos modernos de nação e identidade passavam por profundas transformações, originando configurações identitárias, mais abertas e posicionais. Os roqueiros argentinos e os cantores e compositores da MPB ocupam importante papel na construção dessas novas configurações identitárias em seus respectivos países.

A Música Popular Brasileira e o Rock Nacional Argentino vêm, desde os anos 60, acompanhando e interagindo com o processo de pensar a nação e as identidades nacionais. Por caminhos às vezes divergentes outras vezes semelhantes, ambos acabam ocupando um lugar privilegiado no debate sobre a construção de novos parâmetros de análise, convergentes com o tempo em que vivemos e com a realidade que nos cerca. O Brasil e a Argentina têm na produção musical ligada à canção popular ou ao rock nacional, respectivamente, papel decisivo na gênese de novas identidades nacionais híbridas; não mais fixas, nem essencializadas, mas marcadas pela articulação do “próprio” e do “alheio”. Ambos auxiliam a quebrar as barreiras asfixiantes criadas por nacionalistas empedernidos, mas sem cair na também asfixiante aceitação cega daquilo que é produzido e entendido na metrópole como o melhor.

As análises anteriores preparam e abrem caminho para pensar a MPB e o Rock Nacional dos anos 90. Tendo presente a riqueza e a diversidade de caminhos surgidos nesse período, estabeleço a escolha de algumas propostas que me pareciam significativas para o estudo. Pela riqueza e diversidade da  produção musical e da postura criativa e pela capacidade de captar em suas criações as transformações que a sociedade passa, no Brasil a escolha recai em Chico Science – e o Movimento Manguebeat – e Zeca Baleiro; e na Argentina, nos grupos Divididos e Patricio Rey y sus Redonditos de Ricota. Diante das transformações sociais decorrentes do processo da globalização, transforma-se  a maneira de criar a arte e a cultura. As propostas musicais desses criadores são representativas dessa transformação e exercem papel importante na criação musical nos anos 90 em seus respectivos países.

Importante notar que mesmo surgidas em espaços distintos e tendo diferentes concepções criativas, a análise de suas propostas permite perceber procedimentos de criação que são recorrentes e que remetem ao que denomino de metáforas de criação cultural.

As profundas transformações acontecidas nas últimas décadas, o desenvolvimento tecnológico e dos meios de comunicação de massa - que facilitam o contato entre culturas - e também o aumento substancial das correntes migratórias entre os países, convertem-se na base da pluralidade dos mundos imaginados e passam a ter papel decisivo na criação artística e cultural de cineastas, poetas, intelectuais acadêmicos, artistas plásticos, assim como dos roqueiros argentinos ou dos cantores e compositores de MPB. Como sugere García Canclini (1999), as imagens representam e instituem o social, mas tais imagens se constituem no contato com outras culturas, as relações com o que é próprio da cultura estão marcadas pelos vínculos estabelecidos com outros territórios.

Quando a realidade se transforma são necessários novos arcabouços teóricos para apreendê-la, e o processo metafórico pode transformar-se em instrumento privilegiado para se pensar a cultura e a relação entre o social e o imaginário. Construído a partir da analogia, da semelhança, da transgressão dos conceitos e classificações vigentes, o processo de descrição e análise pelas metáforas possibilita novas chaves de compreensão e permite a construção de um pensamento que capta o que ainda não está apreendido e codificado. Esse é o caminho escolhido para analisar a produção musical dos roqueiros argentinos e dos cantores e compositores de MPB.

Afilio-me àqueles estudiosos da cultura que hoje utilizam as metáforas para descrever ou explicar os processos contemporâneos. A necessidade de contextualização e a sua capacidade de captar e tornar visível o que se move, se combina ou se mescla, possibilitam às metáforas uma percepção mais plural da cultura contemporânea. Tal análise torna-se possível ao se atribuir às metáforas valor epistemológico. Desse modo elas tornam-se aptas, por analogia, a aproximar o distante, o ainda não apreendido completamente, que passa a ser sentido como próprio. Esse distante é aproximado pela semelhança com o conhecido; não para enquadrá-lo dentro dos padrões e classificações vigentes, mas para possibilitar um acercamento do desconhecido a fim de melhor olhá-lo, dizê-lo, estudá-lo e compreendê-lo.

A reflexão acadêmica são veredas que trilhamos, que se entrecruzam com aquelas construídas e percorridas por outros que nos antecederam ou dos quais somos contemporâneos. Travessias em busca de si, do outro, do mundo, do humano. Rumos que traçamos e retraçamos levados por desejos, planejamentos e acasos.

A pesquisa realizada, que resultou na tese que aqui apresento, foi para mim uma travessia trilhada a duras penas, marcada pela vontade de contribuir para a reflexão sobre a cultura contemporânea, suas veredas, seus entroncamentos e suas mudanças de rotas. Pensar o contemporâneo e suas manifestações é um trabalho de reflexão que exige cuidado. Talvez o maior e mais importante seja o de não reduzir essas manifestações ao que já se conhece, formatando-as para poder analisá-las com as chaves teóricas previamente construídas, antes mesmo de buscar descrever e apreender essas manifestações culturais em sua inteireza e particularidades. Tarefa nada fácil pois implica em exercitar um olhar de lince, disposto a ver não somente o todo, mas as peculiaridades; lá onde as pessoas somente vêem o eterno retorno do mesmo, o nivelamento e o empobrecimento cultural, captar os elementos diferenciais, específicos. Requer um olhar atencioso que restabeleça as diferenças lá onde um olhar apressado vê somente nivelamento e empobrecimento culturais. Como afirma Raymond Williams (2000: 29), o pesquisador precisa buscar perceber nas práticas e nas relações culturais “aqueles modos de ser e aquelas obras dinâmicas e concretas em cujo interior não há apenas continuidades e determinações, mas também resoluções e irresoluções, inovações e mudanças reais”.

Ao se estudar as manifestações culturais contemporâneas torna-se ainda mais pertinente a sugestão dada por Williams, para quem a investigação acadêmica “é um conjunto de hipóteses de trabalho, mais do que [...] um corpo de conclusões demonstradas e verificadas” (Ibid.: 35). A proximidade do objeto e sua complexidade não permitem conclusões cabais e fechadas. Num trabalho criterioso e atento, o pesquisador deve buscar:

(...) reelaborar e reconsiderar todo o material e conceitos tidos como verdadeiros, e oferecer sua própria contribuição no âmbito da interação franca entre evidência e interpretação, o que constitui a verdadeira condição de sua adequação (Ibid.).

No estudo e análise do RNA e da MPB procurei imprimir o meu olhar, tendo consciência de que outros pesquisadores poderiam tê-los pensado e apreendido de outra forma. Uma das maiores riquezas dos estudos sobre manifestações culturais está exatamente nisso: a sua complexidade permite olhares múltiplos, discordâncias, embates e diálogos que, afinal, são o cerne do trabalho acadêmico, fazem-no avançar, dando-lhe vida sempre renovada.

A reflexão teórica apresentada é resultado do meu olhar, de uma leitura colocada exaustivamente e de diversas formas a dialogar com outros olhares, outras leituras, outras vozes, muitas delas incorporadas no texto, outras subjacentes. Mais do que apresentar conclusões cabais, minha intenção e desejo foi levantar novos questionamentos e fomentar a continuação da pesquisa e do debate.

O uso das metáforas como instrumento de descrição e análise da trajetória e da criação dos roqueiros argentinos e dos cantores e compositores da MPB foi fundamental para o trabalho, pois possibilitou captar o objeto de maneira menos determinista e fechada, superando noções como “cópia e original”, “apropriação”, “influência” e “hierarquização”. A utilização das metáforas da tradução cultural, da hibridação e da reciclagem cultural permitiu que viesse à tona o espaço entre-cultural e noções como “articulação”, “negociação”, “diferença”, “contato” e “trocas”.

Com as novas tecnologias, os dados de pesquisa circulam mais intensamente. Percebe-se hoje uma maior facilidade de trocas de informação entre pesquisadores que, às vezes, encontram-se em espaços geográficos bastante distintos e distantes e que, menos temerosos de perder a “aura” de autores geniais e únicos, dispõe sua pesquisa e reflexão para circular de forma mais democrática. Basta que se tenha um computador com acesso à rede e a disposição para fazer uma procura cuidadosa nas bibliotecas, sobretudo as virtuais, nos bancos de dados informatizados e disponibilizados pela internet, acessar aos “papers” dos congressos internacionais, cada vez mais freqüentes ou se inscrever em fóruns de discussões virtuais. Importante perceber que, no entanto, não há a supressão das anteriores formas de pesquisa e investigação. O livro, o jornal, a biblioteca e o contato pessoal continuam fundamentais e, quero crer, continuarão a sê-lo. Os novos instrumentos vêm somar e facilitar a aquisição de dados, antes dificultada pelas distâncias geográficas e pelos meios de troca não tão ágeis e rápidos como os que a tecnologia atualmente possibilita.

Hoje a massa de informações se multiplica em escala geométrica, trazendo com ela a necessidade de se ter critérios de seleção mais precisos para avaliar a confiabilidade da fonte e para separar o que é fundamental e pode servir para o estudo que se pretende. Esses critérios de seleção são importantes para que o pesquisador não embarque numa viagem sem rumo algum, levado pelos ventos da novidade ou então para não se perder em meio ao excesso de dados.

O mais difícil é saber distinguir, interpretar, ler as informações para selecionar quais são importantes, quais são supérfluas, quais, mesmo importantes, precisam ser deixadas de lado por serem inadequadas ao estudo e aos objetivos a que o pesquisador se propõe e, sobretudo, saber como articular as informações selecionadas. É evidente que essas questões já estavam presentes mesmo antes do advento da internet, das redes informacionais contemporâneas. Afinal, desde que alguém se dispôs a estudar determinado fato, viu-se na obrigação de selecionar dados e estabelecer critérios de seleção. Mas hoje, quando as pesquisas circulam de forma muito mais intensa e rápida e quando se tem maior facilidade de acesso a elas, a questão principal deixou de ser a dificuldade de acessar às informações e passou a ser como selecioná-las, o que aceitar, o que deixar de lado e como articulá-las.

Se a construção do conhecimento no final do milênio passado, conforme nos lembra Heloísa Buarque – resgatando Lyotard –, seria feito preferencialmente “através da competência e da criatividade na articulação das informações disponíveis e não mais na ‘descoberta’ ou mesmo na interpretação de informações e evidências empíricas” (Buarque de Hollanda, 1999: 351), hoje, quando as redes informacionais se potencializam, isso se torna ainda mais evidente. Parece-me, porém, que permanece necessária a interpretação das informações e não somente a sua articulação. Creio que o intelectual-pesquisador precisa assumir os riscos de uma leitura pessoal e tomar posição diante dos fatos estudados. Se a ele não cabe mais o papel de “profeta”, aquele que detém o saber e as respostas, a voz totalizante,  tampouco é suficiente transformar-se em "carteiro",[4] aquele que escuta  a multiplicidade de vozes da sociedade e procura interconectar esses discursos. O pesquisador-intelectual hoje supõe essa escuta da multiplicidade e essa interconexão, mas precisa ir além, assumir riscos e tomar posição a partir de seu conhecimento e de seu saber acumulado. Cabe-lhe pensar a realidade, um pensamento contextualizado; problematizando, mais do que apontando respostas prontas; fazendo perguntas, colocando em xeque as pretensas verdades estabelecidas, construindo conhecimento nas fissuras, nas dobras.

A pesquisa com os roqueiros argentinos e os cantores e compositores de MPB nos anos 90 deixou claro para mim que atualmente não somente o conhecimento, mas também a criação artística e cultural se vê fortemente marcada pela articulação das muitas e variadas informações a que seus criadores estão expostos. A criação artística resulta das muitas trocas entre distintas culturas, do contato cada vez maior entre diferentes criadores de arte espalhados pelo mundo.

Não parece casualidade que Chico Science e Nação Zumbi tenham escolhido um “Ministro da Informação”, que Science afirmasse em alto e bom som que os mangueboys tinham “fome de informação” e que o Movimento Manguebeat tenha escolhido como símbolo uma “antena parabólica enterrada na lama” para transmitir, receber e processar dados. Tampouco parece casual a atitude de abertura ao outro e a sede pela pesquisa musical assumida por Divididos. Diego Arnedo a explicita ao afirmar que a proposta musical da banda é resultado da “fascinação” diante da diversidade de manifestações musicais: “Sempre pesquisamos. Se você escutar os discos, vai perceber mudanças artísticas no caminho de um disco para o outro. Tem de tudo: muitos e distintos instrumentos; muitos e distintos ritmos” (Arnedo, apud Aguirrea e Ineillo, 2000:18).

O olhar atento e observador desses criadores levam-nos a buscar ampliar seus horizontes e seguir pesquisando e experimentando sons e ritmos, pois, como afirma Ricardo Mollo (Apud Divididos, 2001: 16), com mais elementos, obviamente você pode fazer muito mais”. Ele mesmo, porém, recorda o perigo de se deixar enredar pelo excesso de dados, afirmando que “tamanha quantidade de informações pode te imunizar e criar o efeito contrário”, paralisando a criação. O árduo trabalho de seleção e interpretação não pode ser dispensado: “Se você acatar toda e qualquer informação, você pode converter-se em vítima dela”.

Na criação desses artistas percebem-se elementos provenientes dos avanços tecnológicos, ou por eles possibilitados, que facilitam a obtenção de novas sonoridades, a gravação de seus resultados a custos muito menores do que era há poucos anos atrás e a difusão e divulgação de sua música através de meios alternativos, como a venda dos CDs em bancas de jornal sem precisar passar pelas grandes gravadoras e seus esquemas viciados ou o uso da internet, criando suas homepages para divulgar sua idéias e projetos.

Outros elementos importantes para a sua criação provêm do resgate e do contato com manifestações até a pouco deixadas de lado por serem vistas como sinais de atraso no tempo e conservadorismo tacanho: o folclore ou, melhor dito, a cultura popular. Cultura popular entendida como o resultado, sobretudo do contato do homem nativo com o seu habitat, com seus costumes e tradições e transformada ao longo do tempo à medida que aumentavam as possibilidades do conhecimento e do convívio com outros povos e culturas. Até pouquíssimo tempo atrás, a cultura popular era reduzida a objeto de estudos para antropólogos e folcloristas em seus centros acadêmicos, ou transformada em peça de exposição em museus com a intenção de preservá-la em sua pretensa “pureza”. Quando roqueiros argentinos e músicos da MPB, nos anos 90, resgatam ritmos, compositores e tradições ligados à cultura popular o fazem não como adorno ou pastiche, nem como relíquia a ser preservada. Estão dispostos a recriar a cultura popular, vivificá-la, expandir seus horizontes e presentificá-la, colocando-a em contato com a cultura globalizada, reciclando-a e traduzindo-a para as novas gerações.

A postura de vida e de criação desses artistas vem marcada por algumas características peculiares. Por um lado, mostram-se sedentos por conectar-se com os avanços tecnológicos e comunicacionais potencializados pelo processo da globalização, com sua marcha acelerada, rompendo fronteiras; são capazes de negociar com o mercado de uma maneira menos preconceituosa, cientes de sua importância e de seu papel;  tentam ocupar o seu espaço no mercado, ou criar o seu próprio nicho, de maneira a não se sentirem meros objetos e, assim, manterem o poder de decisão sobre seus rumos artísticos e de sua criação; estão abertos ao diálogo e às trocas com a cultura e a arte produzidas não somente nos países do capitalismo central – EUA e países europeus –, mas também com os africanos, os orientais e os demais países latino-americanos.

Por outro lado, esses criadores não abrem mão da sua própria cultura, das tradições, dos costumes e das criações populares advindas do local onde nasceram e foram criados ou do local onde escolheram e com o qual se identificam e querem se associar. Parecem perceber que esses elementos locais constituem seu traço distintivo. São o capital cultural capaz de marcar sua maneira própria de criar e também capaz de diferenciá-los na negociação que estão dispostos a estabelecer com outros criadores provenientes de espaços distintos do seu, dentro de uma cultura que se globaliza. Eles se propõem a fazer uma difícil mas instigante dupla tradução: primeiro, traduzir os elementos locais, usando novas tecnologias disponíveis para recriá-los, presentificá-los, dar a essas manifestações vida nova e colocá-las novamente no mercado para circular, agora em espaços enormemente ampliados. E, em seguida, traduzir os elementos das culturas forâneas, hibridando-os com a cultura local a partir do diálogo estabelecido com seus criadores. É uma proposta construída nos espaços entre-culturais, rompendo os limites geográficos – de países e culturas – e de gêneros artísticos, transformando as fronteiras em pontes que possibilitam o diálogo, o contato, as trocas, a negociação criativa.

Esses artistas estão dispostos a fazer uma criação musical que, por um lado, não sufoque a própria cultura e, por outro, que não faça desaparecer a cultura do outro, negando-se a apropriá-la e sintetizá-la de modo que seus vestígios sumam e desapareçam as diferenças. O que me parece mais importante nesses criadores é mostrarem que o diálogo e a negociação com o outro não se faz somente em cima de semelhanças ou da apropriação do outro. O elemento criativo e vivificador de sua arte reside sobretudo na convivência e no jogo que eles estabelecem com as diferenças. Arnaldo Antunes sintetiza isso muito bem ao afirmar que a tendência entre os criadores musicais da geração 90 é de romper as demarcações compartimentais, o que estaria originando artistas por ele chamado de “inclassificáveis”:

Eu acho muito saudável essa possibilidade de convívio cada vez maior com a diferença e com a multiplicidade de informações. Eu sempre me senti identificado com a possibilidade de transitar e fazer o contrabando entre os diferentes universos musicais. Isso é uma das coisas que eu acho que vem caracterizando a produção cultural dos anos 90. (...) Eu acho muito interessante essa – cada vez maior, a meu ver – impossibilidade de classificação e essa convivência não-traumática com as diferenças (Antunes, apud Gonçalves, 1997: 15).

A banda Divididos resgata o folklore, o cancioneiro latino, o tango; articula Atahualpa Yupanki, Jimi Hendrix, Joy Division e T. S. Elliot; guitarra, baixo e bateria dialogando com bombo, viola e bandoneón. Zeca Baleiro resgata a embolada, o xaxado, o coco; articula tecno, heavy metal, brega e MPB; Shakespeare, Martinho da Vila, Fagner, Gal Costa e Genival Lacerda. Os Redondos resgatam a cultura rock dos anos 60, a geração beatnik; mesclam nos espetáculos rock, poesia e monólogos, artes plásticas, rituais (pseudo) religiosos, happenings e metais. Chico Science e o Manguebeat resgatam o maracatu, com suas nações e seus tambores; Josué de Castro, Mestre Salu, Veludinho, Dona Ginga; articulam som eletrônico, rock, pop, samba e cultura popular; África, ciberespaço e psicodelia.

Esses criadores buscam deslocar o centro de produção e de interesse tanto da MPB quanto do RNA. Eles fazem uma articulação criativa entre passado e presente, entre os diversos gêneros, ritmos e sonoridades locais, nacionais e transnacionais, entre o erudito, o popular e o massivo. Não parecem estar em busca simplesmente do novo, da invenção que suplanta o que veio antes, mas sim querem criar pela costura entre diferentes propostas, temporalidades e elementos culturais. Com antenas parabólicas ligadas, captam o local - como dizia Science: “O que a rua está mandando a antena está captando” –, recriando-o e conectando-o com o global, articulando as muitas informações que recebem e enviam. Inserem-se diretamente nas discussões sobre os rumos da globalização e de seus processos correlatos, com uma proposta que busca rasurar os limites antes mais rígidos e, assim, permitir o surgimento de identidades mais fluidas e a mobilidade de fronteiras entre nações, culturas, gêneros musicais. Essa rasura das fronteiras é feita através do intercâmbio de gêneros musicais, do diálogo intenso entre gerações, reciclando compositores e canções, hibridando e traduzindo o específico de uma cultura local e o mais geral de uma cultura globalizada.

No final dessa viagem acadêmica, fico com a sensação de que muito mais resta a ser feito, sobretudo em relação ao RNA, cujos estudos acadêmicos são muito restritos diante da importância dessa manifestação cultural. Quanto mais conhecia e recolhia dados, mais percebia que há muita coisa a ser estudada e analisada. A riqueza e a complexidade de trajetórias como as de Charly García, Luís Alberto Spinetta, Litto Nebbia, León Gieco, Luca Prodán, estão a merecer estudos acadêmicos mais aprofundados.

Ficou também a constatação da importância estratégica que adquire nos tempos que correm o aprofundamento das relações sócio-culturais entre Brasil-Argentina, entre Brasil e demais países da América Latina. Percebem-se esforços para colocar essas culturas a dialogar feitos por setores governamentais, algumas universidades e centros de cultura e pesquisa, além das tentativas individuais de artistas e pesquisadores. Mas, a despeito dessas iniciativas serem cada vez mais freqüentes, fica latente que muito mais resta a ser feito. As fronteiras, mesmo se mais móveis e deslocáveis, ainda permanecem mais como muros a separar do que como pontes a possibilitar a troca, a articulação. A proximidade geográfica e os muitos pontos de contato em nossas trajetórias histórica, social e cultural são elementos que facilitariam essa aproximação, um contato que não somente deveria fixar-se nas semelhanças mas que precisa resgatar e valorizar a diversidade, as diferenças.

Em meio a uma realidade global que rearticula suas forças, seria estrategicamente producente que os países latino-americanos fortalecessem seus laços econômicos, políticos e, sobretudo, culturais. A diversidade e a complexidade de nossas criações artísticas e culturais poderiam transformar-se em nossa principal moeda de troca no mundo globalizado, pois elas são, a meu ver, nossa maior riqueza. O capital cultural, artístico e acadêmico da América Latina poderia, assim, ser devidamente valorizado e circular de maneira mais adequada e eficaz, auxiliando a superar de vez a postura subalterna que tem marcado a história latino-americana.

Deixando de lado a histórica atitude de dar as costas para os demais países latino-americanos, lenta, mas progressivamente, Brasil e Argentina estão abrindo canais e redes que possibilitam uma maior aproximação desses países, facilitando as trocas e a articulação entre eles. E o mais importante, a meu ver,  é que esse intercâmbio não está centrado exclusivamente no setor político-econômico. A cultura e a arte, nosso maior e mais rico patrimônio, aos poucos ocupam seu espaço nas negociações. Nossos criadores, artistas, poetas, pensadores estão construindo pontes, entrecruzando caminhos, aproximando nossas culturas. Minha tese busca ser uma contribuição para essa travessia.

Referências:

AGUIRREA, J. & INEILLO, Humphrey. “Divididos – Agradecer y seguir.” La García, año 1, N.28, abril 2000, Buenos Aires, p.14-25.

APPADURAI, A. La modernidade desbordada; dimensiones culturales de la globalización. Montevidéu, Buenos Aires: Trilce, Fondo de Cultura Económica de Argentina, 2001.

BUARQUE DE HOLLANDA, Heloísa. “Políticas da produção de conhecimento em tempos globalizados”. In: MIRANDA, Wander Melo (org.). Narrativas da Modernidade. Belo Horizonte: Autêntica, 1999. p. 345-356.

DIVIDIDOS. “Un lunfardo de ahora”. El Biombo, Edición Especial, Buenos Aires, ano 1, n.1., 2001. p. 14-16.

GARCÍA CANCLINI, N. La globalización imaginada. Buenos Aires, Barcelona, México: Paidós, 1999.

GONÇALVES, M.A. “Diversidade e volta à canção marcam a música dos 90.” Folha de São Paulo, Caderno Ilustrada, 21 mar. 1997, p. 14-17.

GUIMARÃES ROSA, J. Grande Sertão: Veredas. 18 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

JAMESON, F. “Conflitos interdisciplinares en la investigación sobre cultura.” Alteridades, n. 5, México, 1993, p. 93-117.

NERCOLINI, M.J. A construção cultural pelas metáforas: A MPB e o Rock Nacional Argentino repensam as fronteiras globalizadas. Rio de Janeiro: UFRJ/ LETRAS, 2005. (Tese defendida no Programa de Ciência da Literatura.)

SAID, E. “Traveling Theories”. In: ___________. The World, the Text, and the Critic. Cambridge: Harvard University Press, 1983.

SARLO, B. "Retomar el debate". In: ___________. Tiempo presente: notas sobre el cambio de una cultura. Buenos Aires: Siglo XXI Editores Argetina, 2001.

WILLIAMS, R. Cultura. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000. 2ª ed.

Notas:

[1] Doutor em Literatura Comparada pelo PPG em Ciência da Literatura – UFRJ; Mestre em Sociologia – UFRGS.

[2] Cabe esclarecer que a sigla RNA não é usada na Argentina para se referir ao Rock Nacional, mas a uso em alguns momentos do texto por opção pessoal, com o único propósito de ser mais cômoda.

[3] Como é o caso dos Estudos Culturais, analisado mais detidamente nesse texto por Buarque de Hollanda.

[4] Expressão que tomo emprestada de Beatriz Sarlo (2001a: 220). Para Sarlo, na perspectiva pós-moderna, ao intelectual caberia “escutar a multiplicidade de vozes da sociedade e tecer a rede de interconexão destes discursos: intelectuais carteiros” e continua afirmando que "os intelectuais, se ainda querem fazer algo que ninguém lhes pede, podem colaborar para que os que não se ouvem bem entre si, por razões de distância ou de traduzibilidade, se escutem", o que, para Sarlo não passa de uma utopia, possivelmente um pouco mais amável que a dos “profetas” e também, ainda que muito necessária, seria tarefa insuficiente nos tempos que correm.

Revista Digital Art& - ISSN 1806-2962 - Ano III - Número 04 - Outubro de 2005 - Webmaster - Todos os Direitos Reservados

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