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Rubens e as representações da figura humana: uma contribuição para o ensino de desenho
Autora: Angela Maria Rocha[1]

Resumo: O desenho de observação é uma prática tradicional para o estudo das artes visuais. No ensino, o uso de esculturas representando figuras humanas como modelo para o desenho ou a pintura sempre foi uma prática comum. O pintor Rubens dedicou alguns comentários a respeito dessa prática. Esses comentários críticos, redigidos em latim, foram publicados em 1708 em Paris por Roger de Piles, em seu Cours de peinture par principes, ao lado de uma tradução sua para o francês. Este trabalho apresenta a tradução para o português do texto de Rubens, realizada a partir de fac-simile da edição de 1708, publicado em Genebra, em 1969. A partir desse texto de Rubens, propomos a experiência atual do desenho com modelo vivo e com modelo de gesso, procurando resgatar a matéria e a corporalidade para a concepção da prática do desenho e da percepção, tendo em vista o mundo da virtualidade que caracteriza o imaginário contemporâneo.

Palavras chave:

Abstract: The observation drawing is a traditional practice for the study of visual arts. In teaching, the use of sculptures representing human figures as a model for drawing and painting has always been a common practice. Rubens, the painter, made some comments concerning this practice. These critical comments written in Latin were published in 1708 in Paris by Roger de Piles in his Cours de peinture par principes next to his translation into French. This work presents the translation into Portuguese of Ruben’s text, which was done from the facsimile edition of 1708, published in Geneva in 1969. Taking Ruben’s text as a starting point, we propose the current practice of drawing from live models and plaster models experienced by students, aiming at recovering the matter and corporality to the conception of the drawing practice and perception, considering the world of virtuality which characterizes our contemporary imaginary. 

Keywords:

Depois do advento da fotografia, os processos técnicos de reprodução de imagens diversificaram-se, desenvolveram-se, ganharam processos industriais e conquistaram a cultura de massas. Paralelamente, as imagens como representações técnicas bidimensionais, como virtualidade, passaram a participar do nosso cotidiano e não provocam tanto estranhamento se confrontadas com a realidade. O francês Roger de PILES, crítico e historiador da arte, teórico da Academia de Belas Artes, publicou em 1708 o Cours de peinture par principes, que foi reimpresso em Genebra em 1969. Nesse livro, ele apresenta a tradução para o francês de um manuscrito que tinha em seu poder, de autoria do pintor Rubens, escrito originalmente em latim e também apresentado nessa língua no livro, “para autorizar a fidelidade da tradução”, segundo as palavras do autor. Proponho retomar esse texto de Rubens para subsidiar a reflexão sobre os processos de representação em nossos dias. Distante no tempo, proveniente de uma outra época, esse texto tem o poder de presentificar o estranhamento entre a realidade e suas imagens, desentranhar do hábito esse distanciamento provocado pela reprodução, pela representação do mundo através das imagens, essa coisificação do real que as imagens podem evocar quando objetivadas em um suporte qualquer. A experiência e o conhecimento tradicional do fazer na arte podem oferecer contribuições para o ensino em nossos dias: o contato com esse texto sugeriu um processo de abordagem no ensino do desenho para estudantes de arquitetura que procurou mostrar e resgatar as implicações da materialidade para a representação. A materialidade é elemento essencial para a arquitetura e deve ser considerada desde os primeiros esboços. É sobre esses aspectos que desenvolvi o presente trabalho.

À época em que Roger de PILES escrevia sobre a pintura, a representação do mundo em acordo com nosso entendimento através da retina era uma das suas atribuições. A fixação de imagens em um suporte como representação da realidade e das coisas percebidas pela retina e por instrumentos ópticos se tornara uma direção verdadeiramente poderosa para a pintura. A pesquisa empreendida por HOCKNEY (2001) a esse respeito evidencia o quanto os instrumentos ópticos usados na pintura incidiram no seu emprego como meio privilegiado para a percepção retiniana, conferindo e possibilitando maior naturalismo à pintura. A verossimilhança passou a ser uma exigência e uma razão para a pintura.

Em seu livro, Roger de PILES (1969) aborda os princípios que considera relevantes para a elaboração de uma boa pintura, e também estabelece critérios que orientam o olhar dos espectadores, capacitando-os a atribuir o devido valor àqueles pintores considerados por ele como os mais significativos. Por vezes relata procedimentos de ateliê e orientações para o aprendizado da pintura. É assim que traz o testemunho de autoridade do pintor Rubens, emprestando o olhar do artista conhecedor de seu ofício para abordar a questão do uso de estátuas antigas como modelo para a pintura. Trata-se de uma situação curiosa: a representação de uma representação. Essa última condição para a representação deve considerar o contexto em que ocorre. Lembremo-nos que a reprodução de imagens em suportes diversos daqueles em que foram criadas já é bem conhecida e praticada nessa época. A gravura, antes do advento da fotografia, também foi empregada como meio de acesso e divulgação da pintura. Os artistas realizavam cópias das pinturas em gravuras e muitas vezes as apresentavam invertidas. Também estátuas foram usadas como modelo para a pintura, considerando que as esculturas da Antigüidade foram significativos modelos para a procura da beleza, nelas identificada. Para o aprendizado do desenho e da pintura, o emprego do modelo vivo é usual e tradicional até o presente e, na sua ausência, estátuas ou modelos esquemáticos flexíveis em madeira também puderam ser empregados com freqüência.

A pintura reproduzida em gravuras divulga e assinala uma imagem. Mas ao mesmo tempo, enquanto gravura, ganha autonomia pela sua própria materialidade diversa da pintura, obrigando-se a interpretar as manchas coloridas que constituem a pintura através de sinais gráficos monocromáticos modelando claros e escuros. A pintura se sustenta autônoma e insubstituível nesse processo, um modelo, e a gravura expressa sua autonomia, mesmo tendo a pintura como sua referência. A despreocupação com a apresentação da inversão da pintura na gravura parece testemunhar a convivência dessas duas diferentes expressões para o registro e a fixação da imagem. Ambas são representações e, como tal, remetem, nesse caso, uma à outra, e as duas a uma terceira que é imaginada, inventada, fundada no real – mas de qualquer modo, diferentemente delas, volátil e impermanente no tempo. Essas experiências com a representação, ao fixar imagens através de materiais e maneiras tão diversos, com ou sem auxílio de instrumentos ópticos, revelam a compreensão do mundo como acontecimento fugaz, como mobilidade e aparência de difícil apreensão pelo homem. A representação aparece nessas condições como atividade intelectual, como momento necessário da comunicação ou de reflexão sobre o mundo que nos cerca, fixado em palavras ou imagens. Há aqui um mistério que se mantém, entre mundo e suas representações. E o texto de Rubens acresce a esse mistério a especificidade da cada meio de expressão na fixação de imagens, estabelecendo limites para essas “representações de representações”, retomando a impenetrabilidade desse mistério que está na materialidade das coisas, dos objetos do mundo e até mesmo da escultura e da pintura. Para ele, o uso de estátuas em substituição ao modelo vivo se constitui num recurso limitado para o aprendizado da pintura, arriscando-se o futuro artista a apresentar o “mármore pintado de diversas cores” em lugar da figura humana apresentada em uma pintura. Como interpretar, traduzir, fixar e transmitir através de outra matéria essa experiência do olhar debruçado sobre a realidade? A imediaticidade e o amplo emprego atual da fotografia e de outros meios técnicos dela provenientes parecem não ter necessidade dessa experiência; ao contrário disso, parecem colocar a realidade ao nosso alcance e identificada com a sua imagem.

A abordagem de Rubens sobre o emprego da escultura como modelo para a pintura – como poderá ser observado em seu texto, cuja tradução do francês apresento a seguir – não se detém na questão da representação, mas lança um olhar crítico que avalia também a realidade por representar, indagando-se sobre o homem seu contemporâneo, descrevendo-o e avaliando sua figura e confrontando-a com a do homem da Antigüidade, para compreender ou justificar o recurso às estátuas antigas como opção de modelo para a pintura, problematizando também aqui o sentido e a percepção da beleza. As figuras femininas bem fartas da pintura de Rubens têm sido referência para muitos que querem demonstrar a historicidade dos critérios de beleza femininos que, em nossos dias, têm valorizado as figuras esbeltas, enquanto o pintor, no século XVI, teria testemunhado outros valores, vigentes em seu tempo, ou ainda possivelmente seus próprios valores. No texto apresentado aqui, entretanto, ele comenta criticamente a silhueta das figuras de sua época, como se verá.

O que pode ocorrer com o emprego das estátuas antigas como modelo? Se por um lado elas representam ou imitam a figura humana, por outro, são também algo em si, e que revela de qualquer modo a pedra, o mármore, a matéria de que é feita essa figura conformada pela mão do homem. O mármore aparece no templo grego, e o templo revela o mármore enquanto materialidade, enquanto natureza, elemento natural. A indicação de HEIDEGGER (1992)[2] com sua observação do templo grego lembra-nos que o mármore é matéria, matéria e matéria, à qual não associamos normalmente sua forma como atributo, como sua qualidade, mas só depois quando deixa de ser apenas pedra vemos o mármore através da forma que assume. Não uma forma casual, mas forma artificiosamente trabalhada por intenção humana: que descobrimos enquanto matéria e desvelamos através de uma forma que nos remete a outro espaço, a outra realidade e, como matéria, diversa das outras coisas que são matéria e forma no mesmo movimento, por exemplo, uma folha ou um tronco de árvore. Nessa ordem de raciocínio, é possível pensar que o mármore pode ou tornar-se forma pela mão do artista ou artífice, ou então manter-se como matéria bruta, amorfa.

O emprego de estátuas como modelos para a pintura não é, a princípio, invalidado por Rubens, que alerta sobre esse uso que envolve alguns riscos “destrutivos da arte”. Segundo ele: a indistinção entre matéria e forma, entre pedra e figura, entre necessidade do mármore e habilidade do artesão. Rubens parece identificar como sustentáculo da arte a presença tanto do fenômeno matéria, quanto o da representação, sendo essa capaz de guardar o testemunho de um mundo. Não duvida que as estátuas antigas revelem não só a estatura do homem da Antigüidade, mas também um mundo, do mesmo modo como acredita HEIDEGGER (1992) com relação ao templo, nesse texto a que nos referimos anteriormente.

Matéria, pedra e necessidade são aqui os termos que nos remetem à atividade do artista que modelou, configurou a obra. Mas também é o lugar em que a matéria pode mostrar sua presença. Para usar a estátua como modelo, haveria então necessidade de discriminar e abstrair tudo o que caracteriza a concretude da estátua, ou o que revela a sua matéria, a sua formação como estátua, para empregá-la apenas pelo que representa, por sua forma, por seu desenho. A estátua, assim desmaterializada, pode tornar-se somente um suporte para a imagem fixada da figura humana, para então poder ser usada como modelo para a pintura.

Apresento a seguir o texto de Rubens ao qual venho me referindo:

“Da imitação das estátuas Antigas

Há pintores para os quais a imitação das estátuas antigas é muito útil, enquanto para outros é danosa até a destruição de sua arte. Concluo entretanto que para a última perfeição da Pintura, é necessário haver a inteligência dos Antigos, dela até mesmo estar compenetrado, mas é necessário também que o seu uso seja judicioso, e que não manifeste a pedra de nenhum modo. Pois se vêem Pintores ignorantes, e mesmo sábios, que não sabem distinguir a matéria da forma, a figura da pedra, nem o que é necessidade do escultor ao se servir do mármore, do artifício por ele empregado.

É constante que as estátuas mais belas sejam muito úteis, como as más são inúteis e mesmo perigosas: há jovens Pintores que se imaginam muito avançados quando tiraram dessas figuras um não sei quê de dureza, de terminado, de difícil e daquilo que é mais espinhoso na Anatomia: mas todos esses cuidados vão à vergonha da Natureza, pois que em lugar de imitar a carne eles não representam senão o mármore pintado de diversas cores. Pois há muitos acidentes a notar, e a evitar, nas estátuas, mesmo as mais belas, as quais não provêm de deficiências por parte do artífice. Eles consistem principalmente na diferença de sombras, visto que a carne, a pele, as cartilagens, por sua qualidade diáfana, suavizam, por assim dizer, a dureza dos contornos e evitam muitos dos problemas que se encontram nas Estátuas e que, mais por causa de sua sombra negra do que pela obscuridade, fazem parecer a pedra, posto que muito opaca, ainda mais dura e mais opaca do que ela é de fato. Ajunte-se a isso que há, no natural, certos lugares que mudam segundo os diversos movimentos e que, por causa da flexibilidade da pele, se mostra  algumas vezes, ora unida e tensa, ora dobrada e encurvada e os escultores por ordinário tomam cuidado em evitar, mas que os mais hábeis não os negligenciam, e são absolutamente necessários na Pintura, contanto que disso se faça uso com moderação. Não somente as sombras das estátuas, mas ainda suas luzes são de fato diferentes daquelas do natural, tanto assim que o brilho da pedra e a aspereza da luz do dia pela qual ela é tocada elevam a superfície mais que o necessário, ou ao menos fazem parecer aos olhos as coisas como não deviam ser.

Aquele que, por madura prudência, souber fazer o discernimento de todas essas coisas, não pode considerar com muita atenção as Estátuas Antigas, nem estudá-las tão cuidadosamente: uma vez que, nos séculos errôneos em que vivemos, estamos muito distantes de produzir algo semelhante, seja porque o rebaixamento de nosso gênio nos tenha tomado e não nos permita chegar onde os Antigos chegaram por seu engenho e espírito, ou porque estejamos envolvidos pelas mesmas trevas em que nossos pais viveram, ou porque Deus permita que, tendo deixado de nos retirar de um erro no qual caímos, nós vamos de mal a pior; seja ainda que por um dano irreparável aconteça que nossos espíritos se enfraqueçam e se ressintam da velhice do mundo; seja enfim, que os corpos humanos tenham estado nos séculos passados mais próximos de sua origem e de sua perfeição, e neles sejam encontrados os modelos perfeitos que tenham fornecido naturalmente todas as belezas que nós não reconhecemos mais hoje na Natureza. A perfeição que era una se torna possível dividir e enfraquecer pelos vícios que lhe sucedem insensivelmente, de sorte que essa corrupção seria chegada a tal ponto, que parece que os corpos não são mais os mesmos, assim como se poderia conjeturar pelos escritos que nos deixaram muitos autores, tanto sacros como profanos, os quais nos têm falado da estatura antiga dos homens na pessoa dos Heróis, dos Gigantes e dos Ciclopes; e se eles nos contaram muitas fábulas, disseram-nos, sem dúvida, algumas verdades.

A principal razão pela qual os corpos humanos de nosso tempo são diferentes daqueles da Antigüidade é a preguiça, a ociosidade e o pouco exercício que se faz: pois a maioria dos homens não exercitam seus corpos senão a beber e a fazer boa refeição. Não vos espanteis, portanto, se, acumulando gordura sobre gordura, se obtenha um ventre grande e carregado, as pernas moles e enervadas, e os braços que se censuram a si próprios sua ociosidade. Enquanto que na Antigüidade os homens se exercitavam todos os dias nas Academias e lugares públicos destinados aos exercícios do corpo, e levavam com freqüência esses exercícios até à transpiração e a latitudes extremas. Vejam no livro que escreveu Mercurialis sobre a Arte Ginástica, de quantas maneiras diferentes trabalharam seus corpos e quanta força se precisava ter para isso. Na verdade nada seria melhor para fazer derreter as partes mais moles e mais gordas de ociosidade que essa espécie de exercício: a barriga se vai e todos os lugares sendo agitados se transformam em carne e fortificam os músculos: pois os braços, os ombros e tudo aquilo que trabalha, tendo ajuda da Natureza que atrai pelo calor um sumo que os mantém e nutre, tomam força, crescem e aumentam extremamente, como vemos no dorso do getulos[3], nos braços dos Gladiadores, nas pernas dos dançarinos e em quase todo o corpo dos remadores.”

O desencanto de Rubens com a aparência física de seus contemporâneos em contraposição às formas humanas reveladas pela estatuária produzida na Antigüidade evidenciava o estado de vitalidade impossível de ser encontrado na humanidade em seus dias. O mundo que o cerca parece não poder mais oferecer ao olhar as formas capazes de dispensar o uso dos recursos apontados – a cópia de modelos da Antigüidade produzidos em mármore – para a aprendizagem das formas desejadas na pintura. Todo o seu texto é voltado para as recomendações aos pintores principiantes, explicando como abstrair a forma da matéria, considerando o recurso válido para poder tratar cada um desses aspectos segundo as exigências da pintura, pois a boa forma revelada nas obras antigas estava desaparecida do físico do homem contemporâneo, tornando os modelos em pedra praticamente insubstituíveis. Ao mesmo tempo, ao descrever os atributos de uma outra matéria diferente do mármore, a carne, contrastada com o mármore, ele oferece seu olhar de pintor aos alunos e leitores, como um testemunho verbalizado do artista, como se com isso nos assegurasse de que é possível ver o que ele, como artista, está vendo. Não seria essa a missão do pintor?

Já o trabalho do arquiteto depende de representações daquilo que pretende realizar. Seu compromisso, por intermédio das representações, é com o pensar através das imagens que vai registrando, inicialmente por meio de esboços. Nesse processo, deve chegar em alguns momentos a um resultado que, em termos de desenho, ofereça as indicações necessárias para tornar-se obra construída. Assim sendo, o desenho é ainda hoje considerado um instrumento fundamental para o exercício profissional do arquiteto.

Como a formação dos pintores, escultores e arquitetos era a mesma, desde a Antigüidade, a base comum do desenho se forjava em estreita relação com a materialidade das coisas. A partir dessa formação comum, tornar-se pintor ou escultor ou arquiteto parece ter sido fortuito, e somente no mundo moderno ocorre a autonomização da formação desses profissionais, acompanhando a desvinculação da pintura e da escultura do suporte da arquitetura. Com a diferenciação entre estas formações, inclusive no campo das práticas profissionais, o desenho, o traço comum que persiste nesses processos de formação e também no exercício profissional parece ter assumido o estatuto de ferramenta, atividade antes manual que intelectual, menos nobre, menor. Etapa intermediária na realização material da obra acabada, essa sim realizada em materiais nobres e definitivos, menos frágeis ou voláteis que o papel – onde os desenhos se realizam e permanecem, aproximando-se da virtualidade das imagens eletrônicas, inadequadas a essa reconhecida vocação da arte: a duração. Para os arquitetos, a perda dessa formação em que o desenho se prolonga e dá continuidade para sua realização na matéria – e é esse o teor do alerta de Rubens, discriminando as especificidades das matérias e do fazer do pintor ou do escultor perante a matéria – deve ser compreendida e retomada. Não é suficiente que os alunos tenham a oportunidade de freqüentar o canteiro de obras, conhecer materiais e processos construtivos. É preciso que se tenha também em vista que o desenho, realizado como projeto, há de se desdobrar em matérias, texturas e cores e que, portanto, deve registrar e considerar essa materialidade. Com esse propósito, a prática do desenho de observação para os estudantes de arquitetura mantém-se como articulação para o desenvolvimento da experiência do olhar, para as diferenças provenientes do caráter material de sua prática, tentando desvendar, interpretar e traduzir o registro dessa experiência através de meios gráficos bidimensionais. Entretanto, procurando incidir com maior insistência nessa experiência do olhar, procurando evidenciar os aspectos apontados por Rubens quanto à materialidade nas representações, empregamos o desenho de observação de modelo vivo e, paralelamente, de modelo escultura representando a figura humana. E, por fim, o modelo vivo com uma figura humana em escultura. A experiência de confrontar o desenho de modelo vivo com aqueles realizados a partir de escultura da figura humana é exemplar (fig.1). A partir dessa experiência observa-se uma efetiva descoberta dessa relação e das distâncias entre desenho e modelo, desenho da escultura, escultura e modelo – relevando a questão dos processos e meios de representação, a imagem realizada e a percepção do real. O desenho de observação pode ser compreendido como um suporte para o estudo e registro de proporções e relações espaciais – ou seja, os aspectos morfológicos que são, por excelência, atribuições do desenho voltado para a pesquisa e para a produção de conhecimento. Mas o desenho deve poder também ultrapassar esse limite e recuperar para a arquitetura, pensando desse modo na incidência atual da “cenarização” dos espaços construídos, a materialidade do espaço vivido proveniente da distinção entre forma e matéria, e que é relembrada na tradição da experiência da prática artística.

Fig.1: Escultura e modelo vivo lado a lado (desenho em grafite realizado por aluno)

Referências:

HEIDEGGER, M. Origem da obra de arte. Lisboa: Edições 70, 1992.

HOCKNEY, D. O conhecimento secreto. São Paulo: Cosac & Naify, 2001.

PILES, Roger de. Cours de Peinture par principes. Genebra: La Haine Reprints, 1969.

Nota:

[1] Professora Doutora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo.

[2]“Ali de pé repousa o edifício sobre o chão de rocha. Este repousar da obra faz sobressair do rochedo o obscuro do seu suporte maciço e, todavia, não forçado a nada. Ali de pé, a obra arquitetônica resiste à tempestade que se abate com toda a violência, sendo ela quem mostra a própria tempestade na sua força. O brilho e a luz da sua pedra, que sobressaem graças apenas à mercê do sol, são o que põe em evidência a claridade do dia, a imensidade do céu, a treva da noite.”

[3]  Antigo povo nômade de berberes, que vivia nos confins do Saara e que forneceu tropas auxiliares ao exército romano, segundo a enciclopédia Larousse.

 

Revista Digital Art& - ISSN 1806-2962 - Ano IV - Número 05 - Abril de 2006 - Webmaster - Todos os Direitos Reservados

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