voltar ao menu de textos

Arte, Corpo e Subjetividade: Experiência Estética e Pedagogia
Autora: Cynthia Farina[2]

Resumo: Este texto exercita um olhar sobre a relação entre arte, corpo e subjetividade. Analiso, resumidamente, aqui alguns problemas que estive investigando sobre essa relação sob a perspectiva da formação do sujeito contemporâneo, enfocando a estética dessa formação. Trato de estabelecer conexões entre algumas práticas estéticas atuais e os processos de formação do sujeito, entre as imagens e discursos que dão forma a sua experiência estética, e o sentido que produz a partir deles. Essas imagens e discursos permitem formular perguntas sobre as complexas relações entre experiência estética e pedagogia nos atuais processos de subjetivação. Experiência estética e pedagogia se encontram e interpelam na idéia que chamei “pedagogia das afecções”.

Palavras chave: arte – corpo – experiência estética - formação – subjetividade

Abstract: This text deals with the relationship among art, body and subjectivity. In particular I briefly analyse here some related issues from the point of view of the education of contemporary individuals, focusing on the aesthetics of this education. I try to establish some connections between certain contemporary aesthetic practices and some educational processes, and between the images and the discourses that give shape to the aesthetic experience as well as to the meanings that the individuals construct from those images. Therefore, I place some questions about the complex relationship between aesthetic experience and pedagogical theory in contemporary education. All these threads meet and question themselves in a conceptual field that I have called “a pedagogy of affections”. 

Keywords: art – body – aesthetic experience - education – subjectivity

Corpo: improvisação e coreografia

A crise da modernidade fez com que a arte do século XX olhasse a experiência do sujeito com outros olhos. A condição física do seu estar no mundo assumia uma nova evidência que requeria ser interrogada. Foi inevitável que a filosofia e a arte assumissem a experiência do sujeito como algo que passa necessariamente pelo corpo e não só pela sua consciência. A formação do corpo passa a assumir um lugar destacado nestes novos posicionamentos. A arte moderna ensaia com uma multiplicidade de corpos: o corpo degradado, ensamblado, impossível, o corpo-dinâmico, participante, até chegar às práticas estéticas mutantes, pós-humanas, incertas, da pós-modernidade. A assimilação da arte pelo corpo do artista nas vanguardas supôs a assimilação da sua experimentação pela arte. Arte, corpo e subjetividade: uma relação que marca a complexidade da experiência estética, ética e política da atualidade.

A plasticidade do corpo salta à vista. As dietas e terapias alternativas para o corpo publicadas em revistas especializadas, a proliferação de séries televisivas cujo protagonista é o corpo exposto à medicina estética, à tecnobiologia e à investigação forense, dão testemunho disso. O interior do corpo emergiu à superfície tanto dos meios de comunicação como da arte. Em nossas telas, é investigado por cientistas e policiais – algo que não surpreenderia a Foucault – e, nos museus e galerias, por cientistas e médicos-artistas. É investigado, por exemplo, pelo médico Von Hagens, que criou o método de “plastinação” de cadáveres e agora se dedica a consagrá-los ao mundo da arte dando-nos a ver, literalmente, suas entranhas.

Este texto exercita um olhar sobre a relação entre arte, corpo e subjetividade. Tentarei resumir aqui alguns problemas que investigo sobre essa relação, sob a perspectiva da formação do sujeito contemporâneo, enfocando a estética dessa formação (Farina, 2005)[3]. Tratarei de estabelecer conexões entre algumas práticas estéticas atuais e os processos de formação do sujeito, entre as imagens e discursos que dão forma a sua experiência estética, e o sentido que produz a partir deles. Começarei traçando duas imagens do que a arte atual faz com o corpo, realçando as formas como o expõe às imagens e idéias que tem de si mesmo. A partir dessas imagens, iremos perguntar-nos sobre as complexas relações entre experiência estética e pedagogia nos processos atuais de formação do sujeito. As duas imagens nos conduzirão a uma idéia mais imprecisa e porosa, que chamei “pedagogia das afecções”, na qual se trata de aproximar as práticas pedagógicas das práticas estéticas. 

A primeira imagem que gostaria de “dar a ver” é de uma experiência com uma dança contemporânea bastante singular, o Contact Improvisation. Vejamos um breve relato de experiência de alguém que pratica essa dança. Trata-se “da primeira vez que o corpo de um homem lhe desliza e demora em cima sem interesse sexual. Parece que os corpos estão se escutando. O contato dá temperatura às superfícies dos corpos e faz com que se resvalem um sobre o outro. Ela trata de confiar no movimento, no desequilíbrio, no que acontece e lhes leva. A dança se incorpora pouco a pouco. Os sentidos crescem e não faz falta deter-se para pensar ou saber onde ir. Ela entrega seu peso a esse sentir. Há mais duplas como eles pela sala. Às vezes se roçam umas às outras e esse roçar não os distrai, eles o assimilam. As sensações são suas mas saem dos dois. Dão voltas pelo chão, pelas paredes, fora dos seus eixos. Para a dança não importa as arestas dos seus corpos. Flui e se improvisa sobre eles. A dança solta os corpos de seu próprio peso”.

Este fragmento foi escrito há poucos anos, segundo o hábito que tenho de arquivar impressões e reflexões sobre situações vividas que assim o requerem. Esta nota narra uma experiência com o Contact Improvisation, uma dança surgida nos Estados Unidos no começo dos anos setenta, às voltas com as experimentações entre artes visuais, música, performances, cultura de massas e os novos discursos filosóficos surgidos na Europa. Como diz seu próprio nome, o Contact é basicamente uma dança de contato entre dois ou mais corpos, na qual o movimento se gera a partir da escuta dos gestos surgidos entre os bailarinos. A dança se desenvolve a partir da escuta entre eles, que os leva a ritmos conjuntos, onde cada um oferece o próprio peso e apóia o outro. No Contact, não existem coreografias a seguir, como tampouco existe um tempo limite de baile, pois se trata de uma dança de improvisação. Ademais, não está pensada dentro do formato do espetáculo dirigido ao público, mas do participante. Por isso, o Contact nos dá mais uma idéia de fluxos contínuos de movimentos improvisados que de uma fotografia. Retenhamos, pois, essa idéia.

As pessoas que dançam Contact se reúnen para dançar nas jams, quer dizer, em espaços públicos ou privados que se difundem informalmente, onde não se dança necessariamente música, mas as sensações que surgem e circulam entre os corpos afetados de múltiplas formas. O Contact expõe os corpos a uma relação de contato sensorial e faz com que seus movimentos se improvisem a partir da perda do eixo de equilíbrio que os desestabiliza sobre seu próprio centro. E isso vale tanto para o metafórico como para o físico. Essa dança traz a dimemsão incerta do “aqui e agora” à superficie de contato entre os sujeitos e dá ênfase à percepção como uma ação que move os corpos.

A segunda imagem que gostaria de “dar a ver” é uma seqüência de um espetáculo de dança contemporânea chamado Blush (Vanderkeybus, 2005). Sobre o palco, três bailarinas realizam uma dança intensamente física. Detrás delas, de um lado, encontra-se uma grande tela branca. Inesperada e sincronizadamente, as três saltam em direção à tela e submergem nela de cabeça. A tela não se rompe, como era de se esperar, mas se permite ser atravessada pelos corpos. Neste justo momento, começam a projetar-se sobre essa tela imagens do fundo de um lago de águas ligeiramente turvas. O movimento da vegetação subaquática enreda-se nos movimentos de uma, depois de duas e, finalmente, das três bailarinas. Elas saem de cena para reaparecer no filme e saem do filme para reaparecer em cena, até que seus corpos físicos dancem com suas imagens filmadas. Seus gestos constituem uma elaborada coreografia que cria um diálogo ativo e incisivo entre o físico e o filmado. Esse diálogo preciso contrasta com a música selvagem ao vivo.

Blush é uma obra do coreógrafo belga Wim Vanderkeybus, que nos oferece material estético para reflexão. Virilio (2003) afirma que o único que merece ser visto na arte de agora é a dança. Talvez porque a estética atual da dança não reafirma a “estética da desaparição” que critica Virilio, na medida em que põe em cena a materialidade conflitiva do corpo. O espetáculo Blush lida com emoções extremas que resultam em um espetáculo intenso, tanto para o corpo dos bailarinos-performers, como para o corpo do público. Essa intensidade se potencia através de um desenho cuidadoso dos movimentos que faz fluir através da forma, através de sua coreografia.

Neste espetáculo, os corpos são lançados de um meio a outro, do gravitacional ao líquido, do físico-orgânico ao tecnológico, da presença à projeção. A dança põe frente a frente o corpo que experimenta a fisicidade do momento e o corpo anteriormente filmado, e agora projetado na tela. A dança expõe os gestos do corpo à imagem que temos dele. A arte permite esse movimento necessário de aproximação das idéias e imagens através das que nos constituímos corpo, como também permite o distanciamento com respeito a este corpo.

O formal e o aformal na formação estética  

Como em Blush, as reflexões da pesquisa sobre a qual se dedica este texto buscam expor uma prática determinada às idéias e imagens que a constituem. Este trabalho parte de minha prática pedagógica com o campo da arte e se dirige a ela. Dirige-se a repensar as idéias que a sustentam e as imagens que esta prática tem de si mesma. Busca refletir sobre a falta de sintonia entre os modos de fazer das práticas estéticas atuais e os modos como estas práticas são tratadas no campo da formação estética, entre os questionamentos que levanta a arte atual sobre a subjetividade e os modos de proceder com eles no campo da formação. Por isso, tento atender ao que a arte atual faz com a noção de sujeito e a como expor esta noção à própria experiência dos sujeitos.

Este estudo enfoca os processos de formação estética do sujeito atual. E entende a formação não só como aquilo que se leva a cabo nas escolas e instituições de ensino, mas como aquilo que configura as maneiras como nos relacionamos cotidianamente conosco e com nosso entorno. Os processos de formação concernem a cada indivíduo e, ao mesmo tempo, situam-nos como um fenômeno coletivo. Nesses processos, gera-se um conjunto de maneiras não só de fazer, mas de entender as coisas em nossa vida cotidiana, gera-se nossa própria experiência. Segundo Foucault (1996), essa experiência tem menos relação com uma acumulação de vivências, que com as maneiras com as quais lhes damos curso, com as maneiras de “cuidar” o que nos acontece e improvisar com isso, de nomeá-lo e ver-se em relação a ele.

Na arte atual, proliferam múltiplas formas de interrogar a experiência do sujeito. Proliferam maneiras de problematizar nossa identidade e as noções modernas que lhe deram uma certa estabilidade. A obra de Oleg Kulik pode ser um exemplo. Os trabalhos do artista ucraniano submetem a racionalidade, o protagonismo humanista e a moral do sujeito a uma perda radical de seu eixo de referências. Kulik (1998; 2001) problematiza em seu próprio corpo o natural e o institucional das relações que os sujeitos estabelecem, adestrando cães para que estes protagonizem relações de bestialismo com o artista. Daí que algumas práticas estéticas atuais fazem perguntar a nós mesmos como olhar o outro quando esse eu que olha já não pode ver-se de um ponto de vista no qual se sinta seguro. As formas do sujeito e sua percepção estão em questão na arte e na filosofia, do mesmo modo que em outros campos do saber. Creio na relevância das perguntas que a arte e a filosofia estão propondo atualmente ao campo da formação. Por esse motivo, tentei afrontar, abraçar ou mover-me ao lado de algumas delas.

Uma dessas perguntas refere-se à formação estética do sujeito. Vejamos, a seguir, algumas conexões que se puderam estabelecer a propósito dessa questão. Nossa formação estética dá-se através da diversidade de imagens, performances e discursos que a sustentam, e que povoam nosso cotidiano. Dá-se através de como nos afetam e de como reagimos a isso. Segundo Pardo (1991), tanto a ação das imagens (sejam visuais, metafóricas, musicais...) sobre nossas maneiras de ver e viver as coisas, como nossas maneiras de narrá-las, configuram nossa experiência estética. De fato, a experiência estética produz-se em meio a essas imagens e discursos, e de nosso exercício diário com eles. Nossa experiência estética constitui-se do conjunto de aprendizagens sensíveis e conscientes das que lançamos mão, ainda que sem dar-nos conta, para ver e responder ao que nos acontece.

Podemos ver a experiência estética como uma intrincada relação entre as duas imagens que abriram este texto, entre a experiência com o Contact Improvisation e o espetáculo Blush. A experiência estética põe em movimento as maneiras através das quais vemos, tocamos e somos tocados pelas imagens, coisas e pessoas. Esse movimento pode fazer, como no Contact, que percamos o eixo de equilíbrio pelo que nos guiamos nas relações. Essa perda de eixo pode significar pequenas ou grandes alterações em nossa sensibilidade, o que nos empurrará a reformulá-la, a improvisar ou não com esta experiência. De todos os modos, a experiência tende sempre a estabilizar-se, pois é muito complicado mover-se pela vida com a sensibilidade constantemente à flor-da-pele e sem um eixo sobre o qual manter algum equilíbrio. E assim voltamos a compor mais ou menos ativamente uma “coreografia” para enfrentar o que nos acontece. Quer dizer, voltamos a compor um ponto de vista sensível que nos permita atuar, e ao mesmo tempo, tomar distância dessa ação. Mais ou menos como em Blush.

A experiência estética contém essas duas dimensões inseparáveis: do que nos acontece e nos tira do eixo, e da “vontade de forma” que trabalha com isso para gerar um novo equilíbrio. As questões sobre a formação estética aqui propostas se apóiam em grande parte sobre a literatura filosófica deleuziana, que sublinha a “dimensão Contact” da experiência. Isso supõe um desafio no momento de abordar e analisar estas questões, que consiste em não desatender a dimensão formal da experiência estética. O pensamento estético deleuziano, e a literatura que surgiu a partir dele, enfatiza a dimensão do acontecimento como o que permite aberturas em nosso modos de vida. Porém, parece-me importante que nos estudos sobre os processo de formação também se atenda aos modos como reconfiguramos nossas formas de vida a partir do que os desestabiliza. Para que se possa acentuar a contingência das maneiras de pensar e sentir, há que se admitir a importância do trabalho com o formal nos processos de formação.

Pensar sobre as imagens através das quais nos entendemos como sujeitos da atualidade pode ajudar-nos a ver os modos de funcionamento de nossa formação. A importância de analisar a “estética de nossa formação” é que ela nos forma esteticamente. Quer dizer, forma uma determinada consciência e sensibilidade através das imagens, performances e discursos que articula. A análise e a movimentação dessas imagens, performances e discursos do presente pode ser capaz de produzir novas sensibilidades e maneiras de pensar.

A ação das imagens do mundo do cinema, da moda e dos vídeo-jogos, nos revelam que as imagens são seres de ação. As imagens e os discursos que as acompanham movem uma indústria produtora de formas de ser. Mas a ação das imagens sobre os sujeitos não corresponde apenas a uma dimensão estética. Sua performance é também ética e política, na medida em que atua sobre princípios e critérios de referência do sujeito. Essas referências servem para situá-lo com respeito a si mesmo e aos demais, como também para orientar o emprego de suas forças nestas relações. Desse modo, as imagens e discursos que compõem nosso universo estético têm o poder de orientar ética e politicamente nosso comportamento, pois nos dão referências sobre o que vemos, pensamos e fazemos. A experiência estética permite-nos fazer imagens de nós mesmos e da realidade: faz-nos ver e entender as coisas de maneira concreta.

Através do caráter ético e político da experiência estética chega-se à problematização da percepção entendida como ação política. Pois a percepção é a matéria mesma e o meio através do qual se compõem as imagens e discursos que formam a sensibilidade e a consciência com as que intervimos na realidade. A percepção constitui os modos de ver, escutar e tocar o que nos afeta sensitiva e intelectualmente, e de produzir conhecimento com eles. Daí que a ação cotidiana de perceber está ligada a uma “política das percepções”, a um uso das percepções que se emprega nas relações que a constituem e dão sentido. E esta política está ligada a um “regime do sensível” que, segundo Rancière (2002), define a legitimidade das coisas que dizemos ante os demais e que, segundo Foucault (1999), produz saber. A análise dessa política lembra o diálogo cênico do espetáculo de dança Blush: expor a coreografia que desempenhamos a nossa própria ação, para que sejamos conscientes do que nos faz capazes e incapazes.

Não obstante, algumas práticas estéticas e discursos filosóficos contemporâneos alertam-nos de que não podemos tratar a percepção como uma abstração, como se tivesse vida independente do corpo. Como a obra de Lygia Clark, por exemplo. Os períodos sensitivo e relacional da obra dessa artista ocupam-se de desnaturalizar a sensibilidade do sujeito no seu próprio corpo, oferecendo-lhe experiências estéticas que desestabilizam os planos do eixo sobre o qual se assenta a “ficção da sua lógica”, como diria a artista (Clark, 1997). Perceber é uma ação sensível que se dá no corpo, que configura concreta e fisicamente seus gestos, seu olhar, seu perfil. A percepção configura maneiras de entender as coisas que interpelam o sujeito, quem se relaciona com elas no seu próprio corpo. A percepção, ao mesmo tempo que constitui uma performance do sensível, constitui também uma performance da consciência. Essa performance produz as imagens através das quais o sujeito conhece e dá forma à realidade, produz o que Foucault chamou “estética da existência”.

As atuais transformações nos modos de tratar e recriar –cirurgicamente, dieteticamente, tecnologicamente– o corpo remetem-nos a mudanças nas maneiras de percebê-lo e experimentá-lo. Nós nos debatemos na complexidade dessas transformações e em seus efeitos desorientadores sobre nossa experiência estética. Essa complexidade aturde nossa capacidade de compreensão do que nos acontece. E isso nos remete a um problema de produção de saber. O conhecimento é também um assunto dos usos da percepção e a arte atual é um campo privilegiado para questionar tanto esses usos, como os conjuntos de saberes que promovem.

Tento escutar sem idealizar o modo como a arte atual problematiza nossa formação estética e o saber que constitui. E creio que, a partir dessa escuta, posso afirmar que não se trata de inclinar-se pelo instável da “dimensão Contact Improvisation” ou por aferrar-se à coreografia definida da “dimensão Blush” nos processos de formação. Nós, que nos dedicamos à formação de uma maneira mais sistemática, sabemos que o cotidiano dessa atividade tende a assentar-se sobre um eixo de equilíbrio, mas quando este nos é arrebatado por algum acontecimento, abre-se a possibilidade de improvisar outras imagens e sentidos para o que fazemos. O que se trata de sugerir aqui é algo realmente simples: que os processos de formação se constituem dessas duas dimensões, e que atender ao acontecimento que desestabiliza nossas formas de ser implica um cuidado com os modos pelos que nos reconfiguramos. Talvez o difícil e o complexo tenham que ver com essa simplicidade, com assumir e atuar conscientemente tanto com o poder do que irrompe na forma, como com o poder da vontade de forma nos processos de formação.

Práticas estéticas e práticas pedagógicas

Há uma dimensão pedagógica que vive na arte. A capacidade de afetar e mudar de algum modo aos que nos colocamos em relação a ela, denuncia-a. A dimensão pedagógica das práticas estéticas atuais interfere sobre nossa percepção, sobre nosso corpo e nossas formas de entender o que nos acontece. Porém, não nos diz o que deveríamos fazer, as formas de ser que deveríamos adotar ou que rumo tomar a partir de tais interferências. Creio que o campo da pedagogia tem coisas que aprender deste modo de fazer da arte. Neste sentido, parece importante afrontar as perguntas que surgem da aproximação entre os dois campos: como conciliar a fluidez e a instabilidade que desata a experiência com o desejo de orientar e custodiar da pedagogia? Como conciliar as duas dimensões da experiência estética nos processos de formação? Ou, dito de outro modo: como fazer lugar no campo da pedagogia para obras como a de Oleg Kulik, por exemplo, que questionam a razão, a moral e as formas de vida atuais de maneira tão contundente, sem pedagogizá-las?

Essas questões nos levam a outro interrogante mais geral: como gerar práticas pedagógicas capazes de lidar com o que as práticas estéticas atuais põem em movimento. A partir das investigações de campo realizadas para a tese na qual se baseia este texto, pode dizer-se que está claro que alguns museus e centros de arte contemporânea têm problemas ao afrontar esta questão. Nas práticas pedagógicas observadas –desenvolvidas por seus departamentos pedagógicos ou pelas entidades que subcontratam para essa função- não se viu o mesmo cuidado que o dedicado à complexidade de suas propostas estéticas. Promover a coerência entre a arte que essas instituições expõem e, em alguns casos, fomentam, não é um tarefa fácil. Isso já o sabemos. E é assim especialmente porque não sabemos exatamente e não queremos prescrever como se deveria fazer para se obter essa coerência. Mas creio que um dos exercícios que poderiam ajudar nesta tarefa passaria por uma experimentação das práticas pedagógicas com a mesma finura, risco e compromisso que têm algumas dessas instituições com as experimentações artísticas que nos mostram.

Uma das grandes dificuldades por parte das instituições e dos que trabalhamos nelas para afrontar o panorama esboçado é que a dimensão pedagógica do institucional procede de um modo que destoa da dimensão pedagógica da arte. O pedagógico atua sobre as maneiras de ser dos sujeitos, mas a dimensão pedagógica do institucional além de atuar sobre elas, tende a conduzi-las ao que deveriam se converter. Por isso, algumas práticas de arte atual exercem sua intervenção estética diretamente sobre o institucional: algumas funcionam como lente de aumento para dar-nos a ver seu funcionamento, outras se instalam ou se deslizam estrategicamente sobre ele para servir-se de sua estrutura ou burlar seus modos de fazer. Já não se trata apenas de resistir ao institucional. As práticas estéticas assumiram um caráter bastante complexo e ensinam-nos que se pode expor o institucional, deslizando-se sobre ele, tergiversando-o, servindo-se de suas estruturas como parasita para alcançar outros propósitos que a instrução ou regulação de nossas experiências.

Nesse sentido, uma das coisas que a pedagogia poderia aprender da arte atual teria relação não só com as maneiras de afetar os sujeitos, mas com as maneiras de tratar com o que nos afeta. Pois o que se vê afetado em nossas maneiras de ver e entender a realidade são seus procedimentos institucionalizados, é uma coreografia repetida do perceber e do pensar. Algumas práticas estéticas atuais abrem os modos de fazer do institucional que nos constituem, afetam as diversas instituições que vivem em nós sem pretender substituí-las por outras. A atenção às práticas estéticas poderia ajudar a pedagogia a problematizar e cuidar do que nos desestabiliza atualmente, não para estabilizá-lo ou reconduzi-lo, mas para experimentar com a produção de novas imagens e discursos na formação do sujeito. Porém, nós que trabalhamos mais diretamente com a pedagogia sabemos que esse tipo de proposição pode recair facilmente em idealizações da prática da arte ou em jogos fáceis de retórica. É importante que se tentem evitar ambos os perigos, tratando a perda do eixo das formas de ser na contemporaneidade e alguns efeitos de recrudescimento dessas formas, sem atribuir ou exacerbar os poderes da arte ou da pedagogia.

Para articular essa série de proposições em torno da arte atual e da pedagogia, parto de duas idéias: por um lado, da noção deleuziana de afecto e, por outro, da idéia de afecção. A partir das ressonâncias entre as duas idéias, proponho o traçado de um marco de reflexão para as práticas pedagógicas chamado “pedagogia das afecções”. Deleuze (1992, p. 203) refere-se aos afectos como “novas maneiras de sentir”. Segundo o dicionário, a palavra afecção significa tanto “a irregularidade que irrompe no curso regular de um corpo são”, como “a impressão que faz algo sobre outra coisa e que lhe causa alteração ou mudança”. A idéia de uma pedagogia das afecções se trama a partir dessas duas noções, pois atenderia a essas “irregularidades” que irrompem no curso atual de nossas formas de vida, cuidando delas, para favorecer a produção de “novas formas de sentir” e entendê-las. O componente físico da idéia de afecção reúne-se com o componente sensitivo da noção de afecto para ressaltar que o marco de referências de uma pedagogia deste tipo partiria e se dirigiria às experiências que o sujeito vive no corpo. Esse marco de reflexões seria uma espécie de terreno de experimentação com as alterações perceptivas que nos fazem perder o eixo de equilíbrio do corpo, para favorecer a produção de novas imagens e discursos que contemplem esta experiência nos processos de formação.

Uma pedagogia das afecções não estabeleceria modelos pedagógicos como tampouco moralizaria formas de comportamento, mas se proporia como um marco de ação e pensamento que partisse da prática de sujeitos concretos para a produção de estratégias de formação, intervenção e participação na realidade, cuja validez se daria nas maneiras de tratar com situações específicas. Esse marco de atividade se basearia em estratégias de participação na realidade, inspiradas em algumas práticas estéticas atuais, em sua consciência do funcionamento do institucional, em suas maneiras de dá-lo a ver, de deslizar-se ou de instalar-se sobre ele como parasita, para improvisar formas de ação coerentes com a ética e a política que tentam desdobrar.

É evidente a capacidade de improvisação com o que afeta nossa percepção nas experiências que configuram nossas formas de ser. De fato, a improvisação pode ser uma forma de cuidado dessas experiências, de cuidado das imagens e idéias com as que entramos em contato. Pode ser uma atividade formal que nos permita produzir maneiras de atuar com as coisas que nos passam e solicitam nossa atenção. De fato, a produção de referências conceituais, estéticas, éticas e políticas é algo muito parecido a traçar uma coreografia para as imagens e idéias que surgem nos processos de formação em que estamos imersos. No Contact, busca-se a redondeza dos movimentos do corpo para favorecer a circulação das sensações provocadas no contato. Esses movimentos são aprendidos. Existem cursos de Contact onde se exercitam determinados movimentos e uma percepção capaz de escutar o que faz os corpos dançarem. Há um trabalho formal com o próprio sujeito a partir dos corpos com os quais contata, não só para dar passagem ao que surja nesses encontros, mas para poder praticar com ele e incorporar a dança: para poder gerar princípios processuais de ação para o cotidiano da experiência estética do sujeito mesmo.

Referências:

DELEUZE, G. Conversações. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992

FARINA, C. Arte, cuerpo y subjetividad. Estética de la formación y pedagogía de las afecciones. 2005. 404f. Tese – Programa de Doctorado del Departamento de Teoría e Historia de la Educación, Facultad de Pedagogía, Universidad de Barcelona, Espanha.

FOUCAULT, M. Hermenéutica del sujeto. La Plata: Altamira, 1996

_______ Las palabras y las cosas. Una arqueología de las ciencias humanas. Madrid: Siglo XXI, 1999

PARDO, J.L. Sobre los espacios: pintar, escribir, pensar. Barcelona: Serbal, 1991

RANCIÈRE, J. La división de lo sensible. Estética y política. Salamanca: Consorcio de Salamanca, 2002

VIRILIO, P. Procedimiento silencio. Barcelona: Paidós, 2003

Catálogo de exposição

Lygia Clark. (Catálogo de exposição). Barcelona: Fundación Antoni Tàpies, 1997

Referências Visuais

VANDERKEYBUS, W.; EDWARDS, D.E.; VERHELST, P. Blush. (Coreografia e cenografia de Wim Vanderkeybus, música de David Eugene Edwards e textos de Peter Verhelst.) Espetáculo multimídia apresentado no Teatro Mercat de les Flors de Barcelona, janeiro de 2005.

KULIK, O. Sem título - fotografias expostas na XXIV Bienal de São Paulo, 1998; The family of the future – instalação apresentada na exposição Trans Sexual Express Barcelona 2001: a Classic for the Third Millenium, Centro de Arte Santa Mónica, Barcelona, 2001.

Notas:

[1] Este texto resume sucintamente algumas questões que desenvolvi na tese doutoral “Arte, cuerpo y subjetividad. Estética de la formación y pedagogía de las afecciones”, que apresentei no Departamento de Teoría e Historia de la Educación de la Universidad de Barcelona, em setembro de 2005.

[2]Professora efetiva de Artes do CEFET-RS. Graduada em Educação Artística/Artes Plásticas; Especialista e Mestre em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade Federal de Pelotas; Doutora em Educação pela Universidade de Barcelona, Espanha.

Revista Digital Art& - ISSN 1806-2962 - Ano IV - Número 05 - Abril de 2006 - Webmaster - Todos os Direitos Reservados

OBS: Os textos publicados na Revista Art& só podem ser reproduzidos com autorização POR ESCRITO dos editores.