voltar ao menu de textos

A Construção do Olhar pela Poética: Uma experiência pedagógica
Autora: Cristiane Herres Terraza[1] - crisherres@hotmail.com  e mterraza@abordo.com.br

Resumo: Este trabalho relata uma atividade pedagógica escolar como possibilidade de conhecimento do influxo desta conjuntura midiática visual como elemento que pode facultar a constituição/restituição do olhar crítico e singular e como a construção de uma participação social, cultural e política mais autêntica. A experiência relatada e apreciada no presente trabalho foi realizada durante dois semestres nas aulas de ensino-aprendizagem da arte, em uma escola pública de Brasília, com alunos na faixa etária de treze a dezesseis anos.

Palavras chave: Imagem, mídia, educação pela arte.

Abstract: This work account a pedagogic activity is proposed as a possibility for becoming aware of the influx of this media-led visual conjuncture as an element that could pave the way for the constitution/restoration of a critical and unique look on things and for fostering a more authentic social, cultural and political participation. The experience reported and considered in this paper was carried out over two semesters in teaching-learning art classes in a public school in Brasília with students in the 13-16 age bracket.

Keywords: Image, media, art education.

Uma verdadeira educação é a educação liberal: isto é, uma educação planejada para que prepare a pessoa para participar da livre vida de lazer; idealizada para formar hábitos relacionados com a prática de coisas superiores em si mesmas.

John Dewey

O trabalho de educação em/pela arte fundamenta-se na necessidade de oportunizar a compreensão de diversidades, tornando possível aos alunos o conhecimento de sua realidade cotidiana mediante reflexão sobre a mesma, bem como sobre as estruturas e relações do mundo atual, considerando o processo pelo qual esta realidade foi construída ao longo do tempo.

Considerando que as imagens da televisão são, em larga escala, até o momento, as mais consumidas pelos alunos do ensino público e ainda levando em conta o estudo da imagem, seu processo de produção, sua análise e contextualização, esta experiência pedagógica buscou ressaltar a importância do percurso imagético hoje vivenciado por meio das tecnologias eletrônicas e de realidade virtual.

A televisão produz e reproduz "imagens que recebem um tratamento estético e que, assim como as imagens da arte contemporânea, incorporam as descobertas científicas, absorvendo toda a tecnologia disponível de produção eletrônica".[2]

Neste sentido, a proposta ora descrita fundamentou-se em dois eixos:

o conhecimento das possibilidades contidas nos entres da percepção da imagem de arte e da imagem de mídia gerada com intenção de atingir a massa;

a subversão do objeto visto, seja ele de qualquer natureza, na experiência de apropriação e re-significação do objeto.

Não bastaria ler o objeto que se apresenta, mas considerar sua trama, seu peso e seu valor para então submetê-lo à ação pessoal. Isso implica um envolvimento do aluno de modo a fazê-lo argüir as realidades que se apresentam naquele objeto, dimensionando-o em sua experiência histórica, social e sensível.

Invocando McLuhan, um outro e fundamental princípio que norteará a subversão das relações estabelecidas a partir da mídia e seus objetos visuais é o uso da arte como intervenção possível aos efeitos do aparato técnico midiático.

O artista é o homem que, em qualquer campo, científico ou humanístico, percebe as implicações de suas ações e do novo conhecimento de seu tempo. Ele é o homem da consciência integral.[3]

A partir desta idéia, efetua-se uma possibilidade de compreensão dos mecanismos e das relações norteadores da percepção humana e da articulação do pensamento atual fundada na experiência da/na arte. Neste sentido, a arte pode ser considerada procedimento e ocorrência que disponibiliza, em si, a compreensão do presente, o conhecimento das ações empreendidas pelo consumo e pelo tecnológico, a percepção do ajustamento sofrido pelo sujeito a partir da organização de sua experiência pelos dispositivos midiáticos e a competência do ser em tornar-se singular, não obstante o inevitável atravessamento de sua subjetividade pelas diversas subjetividades presentes no político, no social, no cultural e no econômico.

OBJETIVOS INICIAIS

Observar, analisar, compreender e interpretar a imagem produzida pela mídia, inserindo-a no contexto histórico, social e econômico;

Refletir, junto a objetos, produções e fatos expostos por meio da imagem televisiva sobre os padrões generalizantes apresentados por esta;

Manifestar as possibilidades de diversidade da arte e do pensamento filosófico gerado a partir da observação e fruição dos objetos artísticos, contrastando com as realidades divulgadas pelo discurso televisivo;

Desenvolver alternativas de interpretação e fruição das imagens televisivas, estabelecendo intertextualidades com processos de produção artística, inclusive os de própria criação dos alunos;

Possibilitar ao aluno a construção de novas percepções e elaborações, visando à apreensão dos mecanismos de produção e manipulação de imagens, no sentido de oportunizar sua interação autêntica e singular no mundo em que está inserido;

Verificar a intencionalidade de processos e ações generalizantes, seja nas estruturas propostas pelo sistema de ensino, seja nos processos comunicativos presentes nas novas tecnologias da comunicação e da informação, por meio de intervenções metodológicas e organizadoras que atendam parte significativa de uma teia de poderes e (des)controles da realidade.

REALIZAÇÃO/METODOLOGIA

A proposta pedagógica de construção de uma poética fundamentou-se no princípio de abordagem, experimentação e edificação do que nomeei "diálogos com a mídia". Dialogar com a mídia consiste não só na discussão dos assuntos tratados por ela, mas também na produção de imagens, utilizando técnicas variadas, inclusive a câmera de vídeo, com o objetivo de ampliar a sensibilidade e a percepção dos alunos atendidos. Esta ampliação visa à execução das várias possibilidades expressivas da imagem e a elaboração de narrativas poéticas. Porém, o diálogo com a televisão deu-se, da mesma forma, no empreendimento de esforços a fim de reconhecer os processos conformadores e os agenciamentos generalizantes das relações entre sujeito e mundo impostos pela televisão em sua maneira de estabelecer-se como prótese extensiva deste sujeito.

A realização do trabalho prático se iniciou pela crítica, dialetização e contextualização das imagens em movimento veiculadas pela televisão, isto efetuado por meio de debates geradores, assim denominados por serem atividades que produzem novas ações e questões acerca do objeto em estudo. Estas imagens podem ser tanto publicitárias, quanto aquelas destinadas a entretenimento e informação, além dos programas de apreciação cultural. As estratégias utilizadas para que os alunos desenvolvessem estas ações foram:

apreciação de fragmentos de programas de três gêneros diferentes (propaganda, documentário, entretenimento) e identificação de enunciados prescritivos generalizantes contidos nas imagens apreciadas. Esta identificação foi estimulada por meio de questionamentos feitos pela professora aos alunos;

análise de objetos visuais televisivos selecionados pelos alunos, com discussão a partir dos comentários por eles elaborados;

fruição de imagens de arte e a construção de relações alternativas para o gesto de olhar na busca de significância;

apreciação de filmes de diferentes fontes e diferentes objetivos que atendam em diferentes graus à lógica do consumo, tais como "Missão Impossível", "Velozes e Furiosos", "Dance Comigo", "Auto da Compadecida", "Eu, Tu, Eles", "Central do Brasil", interrompidos ou não por comerciais publicitários, a fim de reconhecer conexões, relações, mudanças e recursos utilizados e estabelecidos nos filmes e em suas transmissões pela televisão;

análise de recursos a partir da assistência de vídeos construídos em diferentes linguagens: videoclipe, vídeo arte, curta-metragem e animação digital;

visitas a exposições, estabelecendo parâmetros para leitura e crítica dos objetos vistos, bem como o estabelecimento de uma ação de transversalidade que favorecesse a análise dos entres: imagens de/da arte e imagens comerciais.

Os debates geradores constituíram-se momentos de análises e de proposições e se inseriram em todas as estratégias empreendidas no processo. Estes poderiam ser iniciados tanto por proposição da professora quanto por iniciativa dos alunos na iminência de alguma ocorrência amplamente transmitida pela TV, ou por assuntos de interesse dos mesmos e que se apresentem padronizados na narrativa televisiva. Como esclarecido acima, as atividades permearam-se de leituras e construções de textos que favorecessem a compreensão das questões levantadas, bem como de expressão imagética de objetos que se relacionassem a estas questões, urdindo uma trama de intertextualidades.

Os programas selecionados para apreciação, leitura e análise foram assim apresentados no intuito de sustentar e instigar a investigação aprofundada da mídia televisiva, bem como fazer ver que sua produção de imagens segue os parâmetros estabelecidos por uma des-ordem alienante.

Algumas das leituras utilizadas surgiram de textos de Marilena Chauí, Walter Benjamin. Norval Baitello Jr., Jean Baudrillard, Jesús Martin-Barbero e Elza Dias Pacheco por mim adaptados e adequados à compreensão da faixa etária dos alunos. Outras leituras de pesquisa foram feitas, a partir da iniciativa dos alunos, na consulta de periódicos e utilizando recursos da rede mundial de computadores (Internet).

A fruição se materializa em desenhos, pinturas e objetos, nos quais são utilizados materiais diversos. Esta atividade considera também a importância da construção do espaço visual, no sentido de desenvolver a capacidade crítica do olhar em relação ao que se apresenta na imagem televisiva e as alternativas de produção imagética expressiva: uma crítica esboçada nas diversas leituras possíveis dos objetos das artes visuais e que se estende nas criações pessoais dos alunos.

Algumas proposições de expressão foram organizadas na criação de pequenas animações realizadas com os recursos dos programas comerciais de computador ou mesmo por seriação de desenhos filmados com câmera de vídeo. Os diversos trabalhos não puderam ser analisados individualmente, uma vez que dialogam entre si na elaboração de conceitos e questões que estruturem reflexões, interpretações, apropriações e contextualizações.

Portanto, para cada questão pontuada como objeto de estudo correspondeu uma sistematização de atividades que envolvessem análise do objeto visual e do meio pelo qual este objeto era transmitido, sua contextualização, apropriação e subversão por meio da construção de nova significância, bem como o levantamento de conceitos pertinentes à experiência do alunoNeste sentido, a proposição de uma expressão construída imageticamente serviria como projeto de intertextualidade entre o objeto visto, a mensagem não vista e o sentido atribuído pelo aluno a esta experiência. Ou seja, a atividade plástica como racionalização elaborada da percepção.

Após as experimentações de produção e expressão – individuais e coletivas foi feita ao corpo de alunos proposição de trabalho que constituiria uma forma de organizar e apresentar os conceitos elaborados e as inferências pertinentes a estes conceitos. Nesta etapa, cada turma, ao todo sete, propôs um tipo de realização envolvendo tema, forma de trabalho e técnicas a serem utilizadas. A partir desta definição, reiniciou-se a pesquisa, no sentido de tomar conhecimento das abordagens já feitas por artistas, considerando o tema escolhido, a fim de observar como este tema foi tratado visualmente.

CRIANDO VÍDEOS

Entre estes grupos, uma turma produziu pequenos roteiros, utilizados posteriormente na construção de uma poética em vídeo. Por ser a proposta que mais significativamente tratou dos assuntos e fundamentos teóricos abordados por esta pesquisa, deste ponto em diante, passou-se a tratar apenas dela em continuidade específica das atividades anteriores, uma vez que a mesma se apresentou como uma experiência incisiva no desenvolvimento da capacidade crítica do meio e da imagem televisivos.

No início desta proposição, utilizou-se como objeto sensibilizador o manejo da câmera, com a experimentação dos recursos disponibilizados. Neste momento, foram geradas algumas imagens entrecortadas, desconexas e repetitivas. Porém, mesmo já tendo sido apreciadas e interpretadas as diferentes linguagens de vídeo, uma tendência por imitar o que hoje se vê em narrativas televisivas limitava as possibilidades de criação.

Novamente foram retomadas diferentes apreciações, discussões sobre os conceitos a serem abordados e sobre as alternativas de criação em formatos diversos, bem como a realização de atividades práticas geradoras (exercício da poesia e da poetização de um tema dado, com uso de metáforas e metonímias; expressão corporal a partir de sensações obtidas por meio dos sentidos; expressão visual formalizando curtas seqüências - história em quadros) desenvolvidas a partir de dinâmicas em grupo, viabilizando a transformação de idéias em produtos expressivos, com produção orientada pela professora.

Na seqüência destas atividades, outras propostas de temas surgiram nos grupos, o que exigiu novos roteiros e orientações quanto aos recursos de utilização da câmera de vídeo e dos aparelhos de videocassete, únicos instrumentos disponíveis para produção e edição dos trabalhos.

Nesta etapa de trabalho, a compreensão sobre a mídia televisão foi realizada a partir das ocorrências surgidas na criação dos vídeos pelos alunos, o que exigiu a rememoração do que havia sido trabalhado nas etapas anteriores: uma organização de procedimentos e dos conteúdos construídos, sistematizando-os na prática de trabalho. Neste sentido, os vídeos realizados instituem-se também forma de registro dos conhecimentos construídos e apreendidos.

A inserção dos créditos no trabalho executado constituiu novo momento de reflexão e crítica a respeito da adequação do meio utilizado àquilo que se pretendia expor. Seguindo ainda McLuhan ("o meio é a mensagem”), apontou-se a preocupação de conciliar os créditos e a produção videográfica. Unir todos os conceitos e significâncias demandou mais tempo de análise e pesquisa, porém desta vez, esta foi conduzida unicamente pelos alunos.

Após a última etapa de criação, uma curiosidade: a reação dos alunos ao tempo gasto para a realização de vídeo cuja duração era de um a três minutos: da geração de idéia, pesquisa, organização de roteiro, testes, atividades suplementares, elaboração de créditos, captação e edição de imagem até a apreciação dos vídeos, em tomo de quarenta e cinco dias. A respeito disso, cabe evidenciar que uma prática continuada agilizaria a produção e reduziria este tempo de execução.

A avaliação dos produtos, feita coletivamente pela turma, oportunizou conclusões sobre o conteúdo organizado e circunscrito nos vídeos e, ainda, a análise sobre o gesto de olhar. Optou-se aqui por não se efetuar juízo de valor sobre os vídeos realizados pelos alunos por se entender que, devido à natureza do trabalho, os objetivos propostos e a duração da experiência realizada, isto não seria relevante. Nota-se, nos vídeos efetuados a influência, com maior ou menor ênfase, das mídias de massa tanto nos formatos quanto nos temas abordados. A construção de trabalho expressivo demanda tempo, e acredita-se que, sendo este considerado um passo inicial de um longo processo, a dedicação ao desenvolvimento de articulações criativas por meio do visual faculta o cultivo da sensibilidade, da intuição e da gramática necessária aos resultados melhores.

AVALIAÇÃO DO PROJETO

Como todo trabalho no campo do sensível, da criação poética, o resultado não pode ser medido por um critério de eficiência em produção.

Os parâmetros a serem considerados na avaliação do projeto são aqueles que, revelando a importância do fazer, apontam para uma apreciação crítica, por parte dos alunos, das imagens veiculadas pela mídia televisiva, bem como a percepção e apreensão da significação e contextualização destas imagens na condição mundial em que se vive atualmente. Porém, sabe-se da especificidade da avaliação no ensino da arte, da necessidade em considerar esta etapa flexibilizada e entrelaçada às diversas atividades propostas durante o processo de realização do trabalho, bem como a atenção que se deve atribuir às particularidades pessoais e as múltiplas questões que se impõem a fim de que se reflita, sobre a complexidade, a forma de construção do pensamento, a maturidade e a contextualização das experiências de cada aluno.

Na realização desse projeto, pode-se verificar a importância da compreensão do espaço imagético na construção de crítica sobre a cultura visual, seus valores, seus critérios e seus métodos na produção da imagem comercial.

Além de ampliar a capacidade perceptiva, as várias etapas desse projeto invocavam a interpretação de uma realidade apreciada, evidenciando as várias alternativas de representação e de apresentação da extensão visual e como estas alternativas se apresentavam como subversão do comum, do mesmo apresentado nas imagens televisivas. Contudo, estas atividades de elaboração, de composição de cenas e imagens foram pontuadas de muita resistência e dificuldade por parte dos alunos atendidos. Esta situação pode ter suas causas em muitos fatores, porém o que se identificou como razão determinante foi, como citado anteriormente, a desvantagem desta prática na seleção de saberes que compõem os currículos, nas distribuições sistemáticas de carga horária para as atividades curriculares e na omissão de sua importância na formação dos professores do ensino fundamental, principalmente, nas séries iniciais, bem como nas metodologias tradicionais adotadas em muitos estabelecimentos de ensino. Tais objeções em construir expressivamente o visual provocam um desajuste entre o escrever dentro das regras de um código de letras e signos e o escrever o espaço, seja ele externo para as realidades do mundo, seja ele interno para as realidades do ser. Atribuem-se estas dificuldades evidenciadas nos alunos, portanto, à inexistência de um trabalho contínuo e sistematizado que favoreça a construção autônoma da expressão visual na escola pública e que transcorra durante, pelo menos, o ensino fundamental.

A avaliação final dos alunos neste projeto de trabalho, cuja duração foi de oito meses, constituiu um momento de apreciação dos fazeres próprios, com o levantamento dos problemas colocados acima, e posterior exposição de todos os produtos realizados a toda a comunidade escolar, com visitas monitoradas pelos participantes do projeto, a fim de esclarecer as pessoas sobre as questões levantadas e os conceitos elaborados durante o processo e as concepções expressivas construídas a partir destes conceitos e questões.

Referências:

CHAUÍ, Marilena "Janela da alma, espelho do mundo". In: NOVAES, Adauto (org). O olhar. São Paulo: Cortez, 2001.

KELLNER, Douglas. A cultura da mídia. Bauru, S.P.: EDUSC, 2001.

MARTÍN-BARBERO, Jesús. Os exercícios de ver. São Paulo: SENAC, 2001.

MCLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensões do homem. S. Paulo: Cultrix, 1979, 5a ed.

Notas:

[1] Mestre em Arte Contemporânea pela UnB, foi professora de Arte da rede Pública de Ensino de Brasília, atualmente atuando no Ensino Superior – Faculdade Cenecista de Brasília - com a formação de professores das séries iniciais do Ensino Fundamental.

[2] CHAUÍ, Marilena "Janela da alma, espelho do mundo". In: NOVAES, Adauto (org). O olhar. São Paulo: Cortez, 2001, p. 82.

[3] MCLUHAN, Marshall. Op. cit, p. 85.

Revista Digital Art& - ISSN 1806-2962 - Ano IV - Número 05 - Abril de 2006 - Webmaster - Todos os Direitos Reservados

OBS: Os textos publicados na Revista Art& só podem ser reproduzidos com autorização POR ESCRITO dos editores.