voltar ao menu de textos

Camille Claudel: movimento, expressão simbólica e “loucura”
Autora: Kamilla Mesquita[1] - kamillamoliveira@yahoo.com.br

Resumo: Este estudo trata de uma análise da obra da escultora francesa Camille Claudel, cujas produções extremamente ricas em técnica, expressividade e movimento, trazem inúmeras representações de imagens do inconsciente, as quais poderiam ter uma relação com a suposta degeneração psíquica que estaria acometendo a artista, que cessa sua produção após a internação. Por meio desta primeira análise, desenvolve-se um estudo sobre a questão de que indivíduos que enlouquecem após o início de uma carreira artística, geralmente param de produzir, restando-lhes apenas a rotulação de “artistas loucos”, enquanto que indivíduos, os quais não eram tidos como artistas antes de iniciarem um tratamento psiquiátrico, têm em suas obras reconhecimento estético, recebendo a rotulação de “loucos artistas”.  

Palavras-Chave: Camille Claudel; movimentos; loucura

Abstract: This research makes an analysis about the french sculptor Camille Claudel´s work, whose production, extremely rich in technical, expression and movement, brings too much representations of inconscient´s images. These images could have a relation with suppose mental disease that could make Camille finishes her production after the internment. By this initial analysis, a study is developed about the question of the differences that the society and critics make between the artists that become mad after the begging of their career stopping their production and the mad people, who aren’t named artists before their internment, and after this, started to be considerate as artists.    

Keywords: Camille Claudel; movements; madness

Objetivos:

Além de um breve ensaio sobre a questão da diferenciação que a crítica artística e a sociedade realizam entre os artistas que enlouquecem e os pacientes psiquiátricos que produzem arte; esta pesquisa tem como objetivo a análise das obras de Camille Claudel, sob a perspectiva do uso da expressão corporal e das sensações de movimento nestas.

Camille Claudel: mulher e escultora

Segundo o estudioso sobre a arte de Camille Claudel, Jacques Cassar, que desenvolveu extensa pesquisa sobre a vida e a obra da escultora durante a década de 80, Camille que nasceu em 08 de dezembro de 1864 em Tardenois, desde muito jovem já demonstrava genial talento para a arte da escultura.

Em 1881, a família mudou-se para Paris. Camille tinha 17 anos. Algum tempo depois, tornou-se aluna de Rodin, sendo a primeira mulher a quem o escultor deu aulas. Deste contato entre mestre e aprendiz, nasceu um relacionamento amoroso, no qual Camille e Rodin se influenciam um ao outro no desenvolvimento de seus estilos. Camille tornou-se uma importante colaboradora das obras de Rodin, com seus comentários, concepção de diversos trabalhos e sua exímia habilidade para esculpir partes das esculturas do mestre, tais como pés e mãos.

Rodin, não era casado, mas tinha um relacionamento anterior com Rose. Camille, após 15 anos, inconformada com o fato de Rodin não romper com Rose, terminou a relação com o escultor. Camille estaria grávida na época do rompimento e pouco tempo depois teria um aborto.

Frustrada em sua relação amorosa enfrentou sérias dificuldades como artista, pelo fato de ser mulher em uma sociedade e em um meio artístico essencialmente machistas. Camille enfrentou a solidão, a frustração profissional, o preconceito e a pobreza.

Com o passar do tempo, foi desenvolvendo um distúrbio, o qual seria diagnosticado pela medicina contemporânea como psicose paranóide, caracterizada por alucinações persecutórias. Ela acreditava ser vítima de um complô para destruí-la, cujo autor seria Rodin. Tal alucinação teria como fonte o fato de que Rodin realmente se apropriara, por meio de sua assinatura, de algumas das obras de Camille, além de não tê-la auxiliado em muitas ocasiões intercedendo por ela, já que ele desfrutava de prestígio social e artístico. Camille produziu intensamente, mas destruiu várias de suas obras, imaginando que Rodin ou um de seus comparsas as roubariam.

Logo após a morte do pai, Camille foi internada pela mãe, em 10 de março de 1913 no Hospital Psiquiátrico de Ville-Evrard e no ano seguinte transferida para o Montdevergues Asylum, onde permaneceu por muitos anos, sem produzir artisticamente.

Frustrada, fracassada aprisionada e louca morre em 19 de outubro de 1943.

Corpo e Movimento nas Obras de Camille Claudel

Camille desenvolve um estilo próprio, inspirando-se em seus sentimentos, sua história, relatos míticos, e observação do cotidiano, das pessoas ao redor. Valoriza sutilezas, nuances, realça drapeados e ondas de harmonia. Suas obras trazem sentido lógico e admiração aos olhos de um bailarino, pois estão repletas de movimento e expressividade corporal.

Em “Sakuntala” (figura 1), a união dos corpos se faz de forma harmônica e poética. As cabeças recostadas e o abraço suave transmitem a sensação de repouso, mas também de uma segura transferência de peso de cuja posição poderia emergir movimentos a dois sem desfazer o contato.

Figura 1: Sakuntala (1888 – Museu Rodin)

Esta mesma sensação de movimento é encontrada de forma ainda mais vibrante em “A Valsa” (figura 2), na qual os corpos já se encontram em virtuoso movimento, e embora haja a exploração de um eixo reclinado, há estabilidade pelo contato dos corpos, posição das cabeças e braços. Observa-se a marcação do centro espacial com a união das mãos.

Figura 2: A Valsa (1880 – Museu Rodin)

Em “A Fortuna” (figura 3), o movimento também é algo extremamente notável. Neste caso a exploração do eixo inclinado é ainda mais aparente, marcado pela oposição dos braços (um acima e o outro pendente) das pernas entreabertas em visível transferência de peso, e a cabeça pendente para o lado.

Figura 3: A Fortuna (1900 – Museu Rodin)

Este mesmo recurso é utilizado em outras obras de cunho dramático tais com “Nióbide Ferida” (figura 4), onde se encontra braço e cabeça pendentes em contraponto à outra metade do corpo contraída; ou ainda em “Clotho” (figura 5), onde um frágil corpo se equilibra também pela oposição de movimentos (cabeça num sentido e braço sentido oposto) sustendo o peso dos cabelos.

Figura 4: Nióbide Ferida (1906 – Museu Rodin)

Figura 5: Clotho (1893 – Museu Rodin)

O uso da cabeça inclinada aparece também na obra “Idade Madura” (figura 6) na qual a figura feminina que se encontra ajoelhada pende a cabeça para um dos lados e alonga os braços em sinal de súplica retratando o abandono. O conjunto do braço da figura masculina e o posicionamento das três cabeças (Clotho, Homem e Mulher) forma uma diagonal dando a sensação de níveis espaciais alto, médio e baixo.

Figura 6: Idade Madura (1893 – Museu Rodin)

São encontrados em suas obras também, movimentos de suspensão e leveza, como, por exemplo, em “A Tocadora de Flauta” (figura 7) na qual os drapeados do tecido e a posição inclinada, porém suspensa da mulher, instigam a sensação de movimentos internos de projeção do corpo para cima e levemente para o lado, como também o movimento externo do ar, que movimenta o tecido.

Figura 7: A Tocadora de Flauta (1905 – Museu Rodin)

Este recurso dos drapeados é visto de forma semelhante em outras obras pelo refinamento minucioso de partes do próprio corpo, principalmente dos cabelos como, por exemplo, em “A Pequena Castelã” (figura 8), na qual os cabelos parecem ser levemente projetados para trás por uma suave brisa, enquanto a cabeça e o olhar se projetam para o alto.

Figura 8: Pequena Castelã (1893 – Museu Rodin)

Em “A Onda” (figura 9), os torsos contraídos e a utilização do plano espacial médio, transmitem a sensação de um movimento mais contido, mas grandiosamente expressivo de angústia e medos.

Figura 9: A Onda (1893 – Museu Rodin)

Em “Perseu e Medusa” (figura 10), Perseu encontra-se em movimento vibrante expressando sua vitória. Ele ergue um dos braços com a cabeça de Medusa, e em oposição, exibe o instrumento utilizado na decapitação fazendo uma menção ao próprio ato de decapitar. Dirige o olhar ao instrumento, formando uma figura vitoriosa e extremamente estável. Na face de Medusa, encontramos a expressão sofrida e transfigurada da própria autora, rodeada de serpentes que formam inúmeras espirais, transmitindo a impressão de movimentos contínuos e caóticos. 

Figura 10: Perseu e Medusa (1902 – Museu Rodin)

Camille Claudel: louca ou vanguardista?

Em 1934, Osório César, publica o livro “A arte nos loucos e Vanguardistas”, no qual faz uma comparação entre as duas estéticas, a dos loucos e a dos artistas modernos.

Isso nos faz pensar se as críticas às obras de Camille Claudel não seriam diferentes no período modernista. Afinal, Camille era admirada por alguns críticos de sua época, mas era tida pela maioria da sociedade como louca, pelas características incomuns de suas esculturas e por seu comportamento.

Não analisaremos aqui, o comportamento de Camille, que sem dúvida era um tanto excêntrico, mas se analisamos suas obras, nada de patológico encontramos nelas. Pelo contrário, só vemos formas simbólicas representativas de arquétipos e sentimentos, talhados na pedra por meio de uma técnica magnífica.

Tais imagens do inconsciente vão ganhando importância como o passar do tempo, com as novas descobertas da psicologia e com os novos movimentos artísticos da arte. A “arte dos loucos” começa a ser valoriza e até mesmo mitificada como uma arte superior, desprendida dos vícios acadêmicos, e reveladora da verdadeira essência expressiva.

Segundo Wahba, em seu artigoCriatividade: inspiração, possessão e arte”, iniciava-se na França, a partir de 1945, o movimento de Arte Bruta, nome dado a todo tipo de produção de caráter espontâneo e inventivo. Em 1947 ocorre a primeira exposição de Arte Bruta, em Paris, cidade na qual Camille desenvolvera sua carreira artística, anos antes. E, em 1948, Dubuffet funda a “Companhia de Arte Bruta”, junto com o poeta surrealista André Breton.

A mesma França que rejeitara Camille, agora exalta as obras provindas do inconsciente. Isso porque o Surrealismo traz o mito romântico do artista inspirado, profeta, aberto ao inconsciente. Passam a serem valorizados os sonhos, as criações espontâneas e a arte provinda das imagens delirantes dos psicóticos, caracterizadas agora como símbolos, os quais passam a exercer grande fascínio no meio artístico desta época.

A arte de Camille Claudel, muito possivelmente, seria exaltada pelos críticos e artistas modernistas e surrealistas, como o é, hoje em dia, pela sua utilização de símbolos arquetípicos, mas não devemos esquecer que além disto, Camille possuía genialidade técnica - a elaboração e o fazer tinham harmonia em suas obras – e isso já a caracterizava como artista antes de ser tida como louca. Este diagnóstico, talvez, não seria tão severo, se Camille estivesse inserida um momento histórico e artístico posterior. Não estaria ela inaugurando uma nova concepção de arte, não seria ela, ainda que acometida por uma doença mental, uma personagem vanguardista da arte?

Análise Conclusiva: Artistas Loucos x Loucos Artistas

Segundo Carl Gustav Jung (1875-1961), o processo criativo possui dinâmica similar àquela dos instintos, já que a expressão é uma necessidade humana. O artista tem, durante a criação, um estado alterado de consciência e uma comunicação simbólica intensa com o inconsciente. No entanto, o ego retoma sua função e conduz o processo na atividade criadora.

O psicótico é tomado inteiramente pela subjetividade, sem poder associar-se conscientemente a sua criação, sendo incapaz de reconhecê-la como produto e trabalhar com ela. Em conseqüência disto, muitos artistas deixaram de produzir quando internados, pois a atividade artística exige de seu criador diálogo constante entre inspiração, elaboração e execução, além da resistência egóica para suportar a tensão que se produz.

É indiscutível que a atividade expressiva seja inerente ao ser humano, por isso tanto artistas quanto psicóticos ou quaisquer outras pessoas podem vir a produzir obras expressivas sem que estas obrigatoriamente caracterizem o estado mental (doentio ou não) que acomete o indivíduo. Mesmo as obras dos psicóticos produzidas nos ateliês de arte-terapia não revelam nada de diferente da essência expressiva humana daqueles indivíduos tidos como normais.

Hans Prinzhorn, psiquiatra da Universidade de Heidelberg, que desenvolveu grandes pesquisas sobre as expressões da loucura, publicando em 1922 um trabalho grandioso sobre este tema, não aceitava o fosso tradicional que separa as formas de expressão do louco das formas de expressão dos normais. Ele afirma que o poder criador está presente em todos os indivíduos, entendendo os conhecimentos tradicionais e o treinamento como acréscimos culturais externos ao processo primário configurativo que poderá irromper em qualquer pessoa.

Da mesma forma que se trata de um julgamento errôneo considerar a arte dos psicóticos como uma arte patológica, também o é a supervalorização da arte destes mesmos indivíduos. Julgar a obra em virtude da patologia do executor e não pela obra em si pode vir a ocasionar um julgamento assistencialista no qual o artista é sobreposto ao valor da própria arte.

Segundo Wahba é exagero ver como arte toda expressão espontânea inconsciente mesmo quando esta é provida de símbolos.

A expressão espontânea é útil para a personalidade sem ser necessariamente criativa. Relaxa a mente e ativa o corpo através de emoções positivas e animadoras, mas só serão tidas como’criativas’ ou ‘artísticas’ se o ingênuo expressivo decidir tomar-se a sério nas suas incipientes pinceladas. Não basta expressar-se livremente para ser uma pessoa criativa, e muito menos um artista”.(WAHBA- S/D, p.82)

Para que a criatividade se torne arte, esta deve somar-se ao domínio técnico, à associação equilibrada entre inspiração e execução, ao sentido histórico do momento artístico e compreensão simbólica.

Nise da Silveira, considerada a introdutora do estudo sistemático da psicologia analítica junguiana no Brasil, considera que a “arte dos loucos” tem valor na demonstração de conteúdos do inconsciente e na sua utilização terapêutica.

 “Por meio da arte as emoções tumultuosas tomam forma e são gradualmente despotencializadas, objetivando forças curativas que se movem em direção à consciência, isto é, à realidade”. (SILVEIRA-2001, p.17)

Além deste notável valor terapêutico a criação espontânea revela-se como atividade artística nestes ambientes terapêuticos, visto a criação do Museu de Imagens do Inconsciente, por Nise da Silveira; e o Museu de Artes do Juqueri, por Osório César.

Nosso intuito não é de maneira alguma, retirar o valor artístico destas criações, pelo contrário, valorizá-las pelas próprias obras, independentemente dos seus executores. Além de esclarecer as diferenças existentes no processo criativo dos psicóticos e dos artistas, quanto à retomada do ego e da utilização consciente dos valores técnicos e críticos sobre a própria obra, realizadas nos artistas e inexistentes nos psicóticos.

Não há, enfim, diferenças entre psicóticos e artistas, dentro do processo de criação, mas sim, no processo de posterior de tomada da obra como produto artístico ou terapêutico, tanto pelo próprio artista como pelo público. Sendo que, quando não são bem estabelecidas estas diferenças, há a possibilidade de criação de “rótulos”, que desvalorizam o artista como pessoa ou a obra em questão.

Os artistas acometidos de doenças mentais viram “loucos-artistas”, supervalorizando a loucura; enquanto o doente mental (que não era artista) vira “artista-louco”, supervalorizando a condição de artista, em decorrência do mito romântico e assistencialista de exaltação da “arte dos loucos”.

Referências Bibliográficas

CASSAR, J. Dossier Camille Claudel. Paris: Maisonnneuse & Larose, 2003.

FERRAZ, M.H.C.T. Arte e Loucura: Limites do Imprevisível.  São Paulo: Lemos Editorial, 1998.

JUNG, C. G. O Espírito na Arte e na Ciência. Petrópolis: Vozes, 1985.

________. O Homem e Seus Símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996.
PRINZHORN, H. Artistry of the mentally ill.  Wien, New York: Springer-Yerlag, 1995.

SILVEIRA, N. Mundo das Imagens.  São Paulo: Ática, 2001.     

WAHBA, L.L. Camille Claudel: criação e loucura. Rio de Janeiro: Record: Rosa dos Tempos, 2002.

________. Criatividade: inspiração, possessão e arte. Artigo Publicado na Revista Memória da Psicanálise 2, S/D.

Videografía

NUYTTEN, B. Camille Claudel. França. 1988.

Notas:

[1] Universidade Estadual de Campinas UNICAMP

 

Revista Digital Art& - ISSN 1806-2962 - Ano IV - Número 06 - Outubro de 2006 - Webmaster - Todos os Direitos Reservados

OBS: Os textos publicados na Revista Art& só podem ser reproduzidos com autorização POR ESCRITO dos editores.