voltar ao menu de textos

O Estágio Curricular como Campo de Conhecimento e suas Especificidades no Ensino de Artes Visuais
Autoras: Marilda Oliveira de Oliveira[i] - marildaoliveira@smail.ufsm.br e Jociele Lampert[ii] - jocielelampert@uol.com.br

Resumo: Este texto busca discutir a formação inicial do professor e o ensino das Artes Visuais. Sendo assim, não poderíamos deixar de apontar as questões do estágio curricular que sempre estiveram marcadas pela polêmica relação entre teoria e prática. Entendemos o estágio como campo de conhecimento e espaço de construção cujo cerne é a pesquisa, ou seja, um locus de perfil epistemológico, anulando assim a tradicional idéia de estágio como atividade prática instrumental.

Palavras-Chaves: formação – ensino - Artes Visuais

Resumen: Este texto quiere discutir la formación inicial del profesor y la enseñanza de las Artes Visuales. De esta manera, no podríamos dejar de señalar las cuestiones de la práctica educativa que siempre estuvieron envueltas por la polémica relación entre teoría y práctica. Entendemos la práctica educativa como campo de conocimiento y espacio de construcción cuyo cierne es la investigación, un locus de rasgos epistemológicos, desechando así, la tradicional idea de práctica como actividad instrumental.

Palabras-Claves: formación – enseñanza – Artes Visuales

Como docentes, nosso objetivo tem sido pensar a formação deste profissional, o professor de Artes Visuais, analisar o papel do estágio curricular nos cursos de licenciatura, contribuir na construção da identidade desse profissional e revisitar os saberes para a docência. Além disso, também é nossa intenção estudar o estágio curricular como pesquisa, como projeto coletivo de todo curso de licenciatura.

Uma concepção de prática mais como componente curricular implica vê-la como uma dimensão do conhecimento que tanto está presente nos cursos de formação, nos momentos em que se trabalha na reflexão sobre a atividade profissional, como durante o estágio, nos momentos em que se exercita a atividade profissional. O planejamento e a execução das práticas no estágio devem ser apoiados nas reflexões desenvolvidas nos cursos de formação. Trata-se, assim, de tarefa para toda a equipe de formadores e não apenas para o “supervisor de estágio” (BRASIL, CNE, 009/2002, p. 22).

Se levarmos em conta essa resolução do Conselho Nacional de Educação, verificamos que ela aponta para a necessidade de pensar a formação de professores em equipe, como um projeto próprio e autêntico. A garantia para que isso ocorra é o comprometimento de todos os professores que trabalham nos cursos de licenciatura. Isso só pode ser conseguido se o estágio for uma preocupação de todos os docentes dos cursos e funcionar como eixo de todas as disciplinas e não apenas daquelas equivocadamente denominadas “práticas”. Segundo Pimenta & Lima (2004), “num curso de formação de professores, todas as disciplinas, as de fundamentos e as didáticas, devem contribuir para sua finalidade, que é formar professores a partir da análise, da crítica e da proposição de novas maneiras de fazer educação” (p. 44).

O que é então o estágio curricular e quais são suas especificidades? Essa questão é complexa e assim merece ser tratada. O estágio curricular é a disciplina que permite aos alunos de licenciatura a apropriação de instrumentos teórico-metodológicos para atuação no ambiente escolar. De posse do conhecimento específico (saber disciplinar), agora é o momento desse aluno tentar compreender as políticas educacionais, a escola e o próprio sistema de ensino. Trata-se de uma etapa de formação que objetiva preparar o estagiário para levar sua proposta de prática educativa (o projeto de estágio) a um novo ambiente.

Esse novo ambiente é a escola que, na maioria dos casos, assusta o estagiário por não corresponder com o espaço idílico que ele imaginava encontrar. Isso ocorre muitas vezes pelas questões de calendário, hábitos e mudanças de horários ou pela própria rotina da escola, que difere muito do cotidiano da Universidade, às vezes pelo autoritarismo e pelas questões de poder que o estagiário imaginava já estarem superadas. Outras vezes, o estagiário se frustra ao entrar em contato com profissionais insatisfeitos, desgostosos da vida que levam, do trabalho que desenvolvem e do salário que recebem.

Tardif (2002) nos ensina que temos que aprender com todas essas situações:

Aprender a profissão docente no decorrer do estágio supõe estar atento às particularidades e às interfaces da realidade escolar em sua contextualização na sociedade. Onde a escola está situada? Como são seus alunos? Onde moram? Como é a comunidade, as ruas, as casas que perfazem as adjacências da escola? Que fatores explicam a constituição dessa escola e dessa comunidade? Quais seus problemas e características e como interpenetram na vida escolar? Quais os determinantes históricos, políticos e culturais dessa realidade? Ao transitar da universidade para a escola e desta para a universidade, os estagiários podem tecer uma rede de relações, conhecimentos e aprendizagens, não com o objetivo de copiar, de criticar apenas os modelos, mas no sentido de compreender a realidade para ultrapassá-la. Aprender com os professores de profissão como é o ensino, como é ensinar, é o desafio a ser aprendido/ensinado no decorrer dos cursos de formação e no estágio (TARDIF, 2002, p. 295).

Quanto antes o aluno estagiário entender as especificidades do estágio, melhor ele poderá superar as dificuldades surgidas no percurso. Quanto mais claros forem os fundamentos, a natureza e os objetivos do estágio, suas possibilidades e limites curriculares, mais cedo se dará a compreensão do processo. O estágio é um espaço privilegiado de questionamento e investigação, mas não somos nós, professores formadores, quem temos que dizer isso ao nosso aluno estagiário; ele é quem tem que descobrir por si só. Nosso papel, enquanto professores formadores, é ajudá-lo a entender que sua atividade na escola tem por finalidade buscar mudanças, colher dados para denunciar as falhas e insuficiências da educação. O estágio, ainda que transitório, é um exercício de participação, de conquista e de negociação do lugar do estagiário na escola.

O estágio como campo de conhecimento: entre a teoria e a prática

Ouvimos muito que o estágio é a parte prática dos cursos de licenciatura, como se ele não fosse eminentemente teórico também. É preciso encará-lo com uma atitude investigativa que envolve reflexão e assumi-lo como uma intervenção no espaço de atuação – a escola. O estágio deve propiciar ao aluno uma aproximação com a realidade na qual irá atuar. Pimenta & Lima (2004) nos revelam que “a prática pela prática e o emprego de técnicas sem a devida reflexão podem reforçar a ilusão de que há uma prática sem teoria ou de uma teoria desvinculada da prática” (p. 37). E nós sabemos que a competência que o professor deve desenvolver ao longo da sua ação docente é exatamente saber mediar uma e outra, utilizando-as adequadamente conforme as diferentes situações de ensino.

Muitas vezes nos cursos de licenciatura nossos alunos têm dificuldade em estabelecer a relação dos textos que estamos trabalhando na universidade com a sua ação pedagógica na escola. Contudo, a função da teoria é clara: ilustrar, iluminar, embasar nossas ações, deixar-nos mais confiantes a respeito da nossa prática, enfim, oferecer-nos esquemas mentais para melhor compreendermos nossos atos pedagógicos.

(...) o estágio, ao contrário do que se propugnava, não é atividade prática, mas teórica, instrumentalizadora da práxis docente, entendida esta como atividade de transformação da realidade. Nesse sentido, o estágio curricular é atividade teórica de conhecimento, fundamentação, diálogo e intervenção na realidade, esta, sim, objeto da práxis. Ou seja, é no contexto da sala de aula, da escola, do sistema de ensino e da sociedade que a práxis se dá (Pimenta & LIMA, 2004, p. 45).

O papel da teoria é, pois, fundamental: é ela quem oferece ao professor em formação a possibilidade de refletir e de propor novas perspectivas de análise para melhor compreender sua ação docente. Possibilita, assim, combinações que ilustram o universo escolar, explicando o contexto social, histórico e cultural das instituições de ensino.

Ainda temos dificuldade em trabalhar com a diversidade, com sociedades plurais. Tendemos a equalizar, a homogeneizar, a rotular que “esta turma é assim enquanto aquela outra é...” Contreras (1997) nos alerta para o fato de que a prática dos professores precisa ser fundamentada, considerando-se que a sociedade é plural, no sentido da pluralidade de saberes, mas também no sentido das desigualdades sociais, econômicas, culturais e também políticas, uma vez que a sociedade também é desigual.

O estágio curricular como campo de conhecimento e espaço de formação cujo eixo é a pesquisa contempla esse universo teórico-prático, deixando dessa forma de ser considerado um apêndice do currículo. As Diretrizes Curriculares para a Formação de Professores (Resolução 1 de 18/02/2002 e Resolução 02/02/2002) vêm ao encontro dessa demanda no momento em que indicam como carga horária mínima para compor um curso de licenciatura, a partir de 2004, 1800 horas de formação científica/cultural, 400 horas de prática como componente curricular, vivenciadas ao longo do curso, 400 horas de estágio curricular supervisionado a partir da segunda metade do curso e 200 horas para outras formas de atividades acadêmico-científico-culturais. Isso significa uma mudança conceitual, uma nova concepção de currículo.

Considerando a construção dessa nova matriz curricular, que dê conta do que as Políticas Públicas em Educação estão exigindo, pensamos no que Gauthier (1998) enfatiza com muita propriedade sobre os “ofícios sem saberes e os saberes sem ofícios”:

É claro que basear o ensino no conhecimento do conteúdo, no ‘bom senso’, na experiência, na intuição, no talento ou na vasta cultura não favorece de modo algum a formalização de saberes e de habilidades específicas ao exercício do magistério. Embora expressem uma certa realidade, esses enunciados vêm impedir, de forma perversa, a manifestação de saberes profissionais específicos, pois não relacionam a competência à posse de um saber próprio ao ensino (p. 28).           

A concepção acima justifica a preocupação de como se constrói os saberes da ação pedagógica no cotidiano do professor. Os saberes profissionais devem resultar, conforme Gauthier (1998), da combinação do saber disciplinar, do curricular, do experiencial, da tradição pedagógica e da ciência da educação.

A contribuição do estágio na construção da identidade docente

À guisa de conceito, poderíamos dizer que identidade é o conjunto de caracteres próprios e exclusivos de uma pessoa por meio dos quais ela é identificada. Porém, se pensarmos com mais profundidade, veremos que “identidades são fontes mais importantes de significado do que papéis, por causa do processo de autoconstrução e individuação que envolvem. Em termos mais genéricos, pode-se dizer que identidades organizam significados, enquanto papéis organizam funções” (CASTELLS, 1999, p. 23). A identidade docente é uma identidade de significado, de projeto. Ainda segundo Castells, “a identidade de projeto é quando os atores sociais, utilizando-se de qualquer tipo de material cultural ao seu alcance, constroem uma nova identidade capaz de redefinir sua posição na sociedade e, ao fazê-lo, de buscar a transformação de toda a estrutura social” (p. 24).

Quando acompanhamos o nosso aluno estagiário nas orientações da sua prática educativa, percebemos como ele vai construindo sua identidade de projeto, identidade de vida e de professor, com caracteres próprios, maneiras que ele foi aprendendo na sua vida acadêmica, elaborando no seu cotidiano e tecendo no seu convívio universitário, muitas vezes de forma bastante dolorosa. Nesse período ele está se experimentando, se construindo; em decorrência da identidade profissional, nós percebemos claramente que não é qualquer um que pode ser professor. Lembramos aqui a citação de Nias (apud NÓVOA, 1995, p. 45): “o professor é uma pessoa e parte dessa pessoa é professor”. Na identidade docente estão presentes os conceitos, as relações que o professor estabelece com sua área de conhecimento, sua leitura de mundo, sua ética profissional e o valor que dá a sua profissão de professor. Portanto, essa identidade é única, intransferível, não traduzível.

O professor, em sua ação docente, precisará recorrer ao conhecimento da área na qual é especialista, ao conhecimento pedagógico e ao conhecimento do sentido e significado da educação na formação humana. Esses saberes são mobilizados por ele no contexto das experiências que acumulou em sua vida sobre ser professor, sobre a escola e o aluno, contribuindo assim para a construção coletiva da identidade docente (Pimenta & LIMA, 2004, p. 147).

O estágio curricular é essencial na formação da identidade docente de qualquer aluno de licenciatura, e no curso de Artes Visuais não é diferente. É fundamental pelo fato de propiciar ao aluno um momento específico de aprendizagem, de reflexão com sua prática profissional. Além disso, possibilita uma visão crítica da dinâmica das relações existentes no campo institucional, enquanto processo efervescente, criativo e real.

Universidade e escola: diferentes papéis

Qual é o papel da universidade nos cursos de formação de professores? Acreditamos que seja trabalhar a valorização das licenciaturas, o sentido da profissão, a razão de ser professor numa sociedade contemporânea. Pensamos que seja também papel da universidade questionar os alunos: quem querem formar e para quê?

A Universidade parece ser o contexto privilegiado dedicado a uma formação em prática reflexiva. No entanto, veremos que isso não corresponde exatamente à realidade e que a conjugação de uma formação teórica e uma iniciação às metodologias de pesquisa não gera, de forma automática, um profissional reflexivo. Para que esse objetivo ocupe o centro do programa, a universidade ainda deve evoluir (Perrenoud, 2002, p. 89).

Conscientes de que ainda há muito caminho a percorrer, estamos alicerçando o processo de construção da identidade docente e trabalhando para que o profissional adquira um perfil reflexivo. Qual é a contribuição da universidade? Segundo Pimenta & Lima (2004), “A universidade é por excelência o espaço formativo da docência, uma vez que não é simples formar para o exercício da docência de qualidade e a pesquisa é o [único] caminho metodológico para esta formação” (p. 41). E, por acreditarmos que pensar o ensino de arte é também pensar o processo, é que continuamos redefinindo e analisando o percurso que caminhamos juntos, em parceria, alunos e professores. Buscamos atribuir sentido ao que fazemos, dar significado a esse momento de aprendizagem.

Aprendemos a pensar sobre as coisas. Como intérpretes do mundo, construímos interpretantes sobre ele. O que “decoramos” ou simplesmente copiamos mecanicamente não fica em nós. É um conteúdo momentâneo, por isso conhecimento vazio que no decorrer do tempo é esquecido. Não faz parte de nossa experiência (Martins et al, 1998, p. 128).

É preciso atribuir significado ao que fazemos e por isso a construção da profissionalização do professor não pode estar baseada exclusivamente na cognição.

Se assumimos o postulado de que os professores são atores competentes, sujeitos ativos, devemos admitir que a prática deles não é somente um espaço de aplicação de saberes provenientes da teoria, mas também um espaço de produção de saberes específicos oriundos dessa mesma prática (Tardif, 2002, p. 234).

Vivemos um momento de grande preocupação com a profissionalização e a docência não está fora desse quadro. Esse momento é mundial e, portanto, é brasileiro também. Surgiu nos Estados Unidos nos anos 80, instalou-se na Europa e nos 90 chegou ao Brasil. O movimento atual pela profissionalização docente coloca o professor no centro do desafio para uma mudança qualitativa: professor produtor de conhecimentos, de saberes. Esse processo de mudança é bastante complexo, global, e implica na construção de uma nova identidade do profissional. A questão é que uma mudança dessa natureza não se reduz a descartar o velho e instituir o novo. Uma mudança de perfil implica mexer no terreno das concepções, das atitudes, das crenças, dos valores e das simbologias (Oliveira & LAMPERT IN MEDEIROS, 2004).

Muitos teóricos vêm discutindo a questão da cultura docente e têm contribuído de forma significativa para a qualificação do processo educacional. Nosso objetivo com esse artigo é situá-lo no campo de estágio curricular e no ensino das artes visuais, já que pouco ou nada há de publicações a esse respeito. Contreras (1997) alerta sobre a prática pedagógica do professor que deve aprender a trabalhar com o universo da pluralidade. Gauthier (1998) apresenta-nos o que denomina “reservatório de saberes” – são, segundo ele os saberes necessários para o exercício da docência. Giroux (1987) afirma que a mera reflexão sobre o trabalho docente de sala de aula é insuficiente para uma compreensão teórica dos elementos que condicionam a prática profissional. Hernández (1998, 2000) contempla a possibilidade de trabalharmos com projetos de trabalho e com o universo da cultura visual, onde o papel do professor é o de organizador do processo, ocorrendo a construção do conhecimento de forma compartilhada. Nóvoa (1995) discute sobre a história da profissão docente. Perrenoud (1999, 2002) aborda a necessidade de uma prática reflexiva no ofício do professor. Pimenta (2002, 2004) traz a concepção do professor pesquisador e da produção de conhecimento a partir da própria prática. Sacristán (2000) destaca o papel da teoria na epistemologia da prática. Tardif (2002) considera a natureza social do conhecimento no trabalho docente, valorizando os saberes cotidianos e a construção da identidade do profissional. Zabala (1998, 1999) nos ensina que sempre por trás de propostas metodológicas se escondem valores e idéias em relação aos processos de ensinar e aprender e concepções de conhecimento que norteiam a prática pedagógica.

Ao mencionarmos esses autores, não desmerecemos tantos outros que igualmente têm publicado suas pesquisas sobre a profissão do professor e todo o entorno desse ofício tão complexo e desafiante.

Formar em verdadeiras competências durante a escolaridade geral supõe – e talvez estejamos começando a entendê-lo – uma considerável transformação da relação dos professores com o saber, de sua maneira de ‘dar a aula’ e, afinal de contas, de sua identidade e de suas próprias competências profissionais (Perrenoud,1999, p. 53).

Um professor não é competente porque “dá uma boa aula”. Ele é competente quando consegue articular os diferentes saberes e dar significado ao que ensina. A competência do professor tem sido longamente discutida nos bastidores da educação. Perrenoud (1999) define competência como sendo “uma capacidade de agir eficazmente em um determinado tipo de situação, apoiada em conhecimentos, mas sem limitar-se a eles” (p. 7). O profissional precisa de tempo para trabalhar sua competência, precisa experimentar, ousar, planejar, rever, refazer. Todo esse processo de experimentação leva tempo. Certamente não será em quatro semestres que o professor em formação irá adquirir todas essas competências.           

Pensando em competências, Barbosa (1991) concretiza seu pensamento no texto da nova, mas não tão nova assim, LDB, nº 9.394/96 que, no capítulo II da educação básica, no artigo 26, elimina a expressão “educação artística”, substituindo-a por “ensino da arte” como componente curricular dos diversos níveis da educação básica. Independentemente da terminologia adotada, a questão é que a arte seja pensada, exercitada/desenvolvida no seu âmbito mais amplo, como um processo sócio-histórico. Que ela realmente trabalhe na construção da identidade do indivíduo, provocando reflexões intensas e constantes. Isso tem um significado muito mais abrangente do que possa parecer. Denota repensar conceitualmente a arte, mas não só na educação, na vida de cada um de nós, seres humanos implicados nesse processo docente. Isso significa repensar a formação do professor de artes visuais em uma linguagem multicultural, eliminando de uma vez por todas as práticas polivalentes. “Na pós-modernidade, o conceito de arte está ligado à cognição, o conceito de fazer arte está ligado à construção e o conceito de pensamento visual está ligado à construção do pensamento a partir da imagem” (Berg in Barbosa, 1991, p. XIV).

Com base nessa ótica, a arte deve ser entendida como uma área do conhecimento humano com uma linguagem própria, com objetivos claros, com domínio dos saberes pedagógicos e disciplinares. Isso significa abranger conteúdos que se sustentem, que tenham vida própria, contextualizados. Também significa entender a arte não mais como suporte/cabide para outras disciplinas e muito menos somente a partir do fazer artístico. Ela precisa existir articulando saberes que tenham significado para a vida do nosso aluno e isso precisa estar claro nos nossos planejamentos escolares. Somente a intenção não basta, a ação precisa ser visível e acontecer realmente como prática pedagógica.           

Na universidade, podemos trabalhar com os nossos alunos estagiários tais reflexões críticas a respeito do contexto sócio-histórico e das condições objetivas em que a educação escolar acontece. Podemos trabalhar com planejamento, com os aspectos da avaliação e dessa forma nossos alunos estagiários, os alunos da escola e nós como formadores estaremos revendo princípios e conceitos, de modo que o trânsito seja contínuo entre escola e universidade, entre universidade e escola.

Revisitando os saberes

Muitas vezes, percebemos que o estagiário parece entender a Arte como uma área do conhecimento e seu discurso em sala de aula na Universidade é bastante coerente. Então, o que faz com que esse mesmo aluno chegue à escola de ensino médio e só trabalhe técnicas isoladas? O que faz com que ele não consiga estabelecer uma relação histórica dos conteúdos? É nas observações das aulas desses alunos estagiários que temos as maiores surpresas. No papel, o planejamento é viável; na prática, não se sustenta. O momento da observação é um momento real, indispensável, é quando coletamos muitos dados de análise para reflexões junto aos alunos na universidade.

Sabemos que a observação da aula muitas vezes é um tanto desconfortável para o aluno estagiário, gerando certo mal-estar por estar sendo assistido. Mas a observação qualitativa do professor orientador serve como re-encaminhamento, devendo este analisar o planejamento da aula observada, o conteúdo trabalhado, os objetivos, a metodologia e se as metas foram alcançadas. De posse desses dados, o orientador pode re-definir conceitos e papéis nos encontros com seus alunos estagiários.

Até que ponto o estagiário possui elementos teóricos para construir uma reflexão crítica sobre as vivências do estágio? Estamos pensando no relatório de estágio que o aluno escreve ao finalizar sua prática educativa. Como fazer para que as reflexões feitas com o professor formador e seus colegas universitários ultrapassem os limites do senso comum, do óbvio constatável? Nosso aluno tem enorme dificuldade em embasar suas constatações pedagógicas com referenciais teóricos, em sair do campo das análises ingênuas.

E nós, professores universitários? Qual é a nossa função? O que o nosso aluno estagiário espera de nós enquanto orientadores? Nessa perspectiva, a pesquisa deve ser constante tanto na nossa prática docente quanto na do aluno. Ela irá nos apontar novas possibilidades de ensinar e aprender com o nosso aluno em formação. Por seu intermédio, poderemos rever nossas certezas, balizar nossas concepções e aprender a interpretar os dados coletados no estágio. O nosso aluno espera de nós solidariedade nessa difícil fase do seu curso universitário, compreensão e paciência para ouvi-lo. Ele sempre tem muito a nos contar. Nossa postura deve ser autêntica, ética, no sentido de ensinar com ações para que ele perceba que nós também planejamos nossa atuação, que respeitamos a profissão e que nossas aulas não estão embasadas somente em discurso, mas que acontecem de fato.

Quando propomos revisitar os saberes, objetivamos que o aluno estagiário tenha a possibilidade de se reconhecer como sujeito, cujo papel não seja apenas o de levar algumas informações sobre Arte ao aluno do ensino médio. O estagiário não deve ir à escola apenas cumprir um horário, ou pior, desejar livrar-se dessa carga que é o estágio curricular e pela qual todos temos que passar. O que desejamos é que ele perceba na escola a possibilidade para construir um espaço de convivência com o sujeito da aprendizagem e que consiga realmente fazer o papel de mediador entre o conhecimento e a realidade da sala de aula, transformando assim o espaço escolar na própria práxis docente. Em função disso, é provável que obtenha uma ação refletida no redimensionamento da sua prática, revisitando dessa forma a cada encontro com seus alunos os seus próprios saberes docentes.

Apontando caminhos, sugestões e possibilidades

Através desse estudo sobre a formação inicial do professor de Artes Visuais, no qual estamos trabalhando desde 2002, verificamos que a prática educativa dos sujeitos de pesquisa (alunos estagiários) num primeiro momento denotou a necessidade de melhoria na qualidade das aulas, o redimensionamento do sistema de avaliação como processo de aprendizagem e a redução de uma visão tecnicista da educação. Até esse momento o estágio curricular ainda era visto como algo obrigatório e não como uma possibilidade de crescimento.

A análise dos dados de 2003 demonstrou que avançamos. O licenciando já consegue colocar em prática seu projeto de estágio com docência em Artes Visuais e sustentá-lo na escola de nível médio ao longo de dois semestres letivos.

Pela atuação docente de dez (10) alunos estagiários que acompanhamos durante o ano de 2004 em duas escolas estaduais de Santa Maria-RS, percebemos que houve reflexão ao longo do processo, apontando resultados bastante positivos. A prática educativa reflexiva realizada por esses alunos estagiários nos indicou possibilidades de redimensionamento da atuação docente, qualificando e transformando a formação inicial do profissional do ensino da arte realizado pela universidade.

Ao encerrarmos a quarta etapa da pesquisa, ano de 2005, constatamos a necessidade de continuar trabalhando as relações constantes entre teoria e prática. Nosso intuito é analisar as relações estabelecidas entre os saberes que os professores em formação inicial mobilizam quando desenvolvem sua prática educativa e a forma como relacionam diferentes dimensões do conhecimento artístico, pedagógico, teórico e prático com a sua prática pedagógica.

Queremos finalizar esse artigo propondo que o estágio seja um momento de superação de obstáculos, de diálogo e de lições em seus fundamentos teóricos e práticos. Que cada estagiário encontre sua identidade como professor, seu jeito de caminhar na educação do ensino das Artes Visuais.

Se, enquanto curso de formação de professores, queremos realmente formar docentes com condições de se inserir nas escolas de modo a propor um ensino significativo, de mudanças nas concepções de cultura e valores para a vida, o estágio deve ser um trabalho coletivo, não só centrado na sala de aula universitária nem só de mão única dos nossos alunos estagiários, mas de toda a equipe de professores da escola.

A luta por um estágio de qualidade vincula-se com a luta pela melhoria dos cursos de formação de professores, pela valorização da docência e por uma escola mais democrática. A luta por uma sociedade mais humana, mais justa e inclusiva deve ser meta de todos nós, professores universitários.

É nisso que acreditamos, que é possível sim construir um ensino de qualidade para todos a partir de uma formação de qualidade dos profissionais da área da educação.

Referências

BARBOSA, A.M. A imagem no ensino da arte. São Paulo: Perspectiva, 1991.

BERG, E. Apresentação do livro In: BARBOSA, A.M.  A imagem no ensino da arte. São Paulo: Perspectiva, 1991. p. XI – XIV.

BRASIL. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores da Educação Básica, em nível superior, curso de licenciatura, de graduação plena. Resolução CNE/CP 1/2002. Brasília, 2002.

________. Conselho Nacional de Educação. A duração e a carga horária dos cursos de licenciatura, de graduação plena, de formação de professores da Educação Básica em nível superior. Resolução CNE/CP 2/2002. Brasília, 2002.

CASTELLS, M. O poder da Identidade. 2ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 1999.

CONTRERAS, J. La autonomia del profesorado. Barcelona: Morata, 1997.

GAUTHIER, C. Por uma teoria da Pedagogia. Pesquisas Contemporâneas sobre o saber docente. Ijuí: Ed.Unijuí, 1998.

GIROUX, H. Escola crítica e política cultural. São Paulo: Cortez, 1987.

HERNÁNDEZ, F. Transgressão e mudança na educação: os projetos de trabalho. Porto Alegre: Artmed, 1998.

________. Cultura Visual, mudança educativa e projetos de trabalho. Porto Alegre: Artmed, 2000.

MARTINS, M.C.; PICOSQUE, G.; TELLES GUERRA, M.T. Didática do Ensino da Arte. A língua do mundo. Poetizar, fruir e conhecer arte. São Paulo: FTD, 1998.

NÓVOA, A. Os Professores e sua Formação. Lisboa: Dom Quixote, 1995.

OLIVEIRA, M.O. de; HERNÁNDEZ, F. A formação do professor e o ensino das Artes Visuais. Santa Maria: Editora UFSM, 2005.

OLIVEIRA, M.O. de.; LAMPERT, J. Revisitando os saberes para o exercício da docência: a formação inicial do professor em Artes Visuais. In: MEDEIROS, M.B. de (Org). Arte em pesquisa: especificidades. Vol. 2. Brasília: ANPAP/UnB, 2004. p. 141-147.

PERRENOUD, P. Construir as Competências desde a Escola. Porto Alegre: Artmed, 1999.

________. A prática reflexiva no ofício do professor. Porto Alegre: Artmed, 2002.

PIMENTA, S.G. O estágio na formação de professores: unidade, teoria e prática. 5ª ed. São Paulo: Cortez, 2002.

PIMENTA, S.G; LIMA, M.S.L. Estágio e docência. São Paulo: Cortez, 2004. 

SACRISTÁN,J.G; GÓMEZ, A.I.P. Compreender e transformar o ensino. 4ª ed. Porto Alegre: Artmed, 2000.

TARDIF, M. Saberes Docentes e Formação Profissional. Petrópolis: Vozes, 2002.

ZABALA, A. A Prática Educativa – como ensinar. Porto Alegre: Artmed, 1998.

________. Como trabalhar os conteúdos procedimentais em aula. 2ª ed. Porto Alegre: Artmed, 1999.

Notas:

[i] Coordenadora da pesquisa. Professora Adjunta do Depto. de Metodologia do Ensino do Centro de Educação da Universidade Federal de Santa Maria – RS/Brasil. Doutora em História da Arte e Mestre em Antropologia Social pela Universidad de Barcelona – Espanha.

[ii] Colaboradora da pesquisa. Professora do Depto. de Artes Visuais do CEART da Universidade do Estado de Santa Catarina, UDESC – SC/Brasil. Doutoranda em Artes Plásticas no Programa de Pós-Graduação da ECA/USP – SP. Mestre em Educação pelo PPGE/CE/UFSM.

 

Revista Digital Art& - ISSN 1806-2962 - Ano IV - Número 06 - Outubro de 2006 - Webmaster - Todos os Direitos Reservados

OBS: Os textos publicados na Revista Art& só podem ser reproduzidos com autorização POR ESCRITO dos editores.