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REFLETINDO SOBRE O MOVIMENTO DE CULTURA POPULAR: ESPAÇO PARA A ARTE?
Autora: Maria Betânia e Silva[1] -  betarte@ig.com.br

Resumo: Os anos 60 do século XX foram muito significativos para a sociedade brasileira. Foi considerado um período de efervescência cultural e artística, além de um momento de muitas reivindicações no campo político, econômico e educacional. Dentro desse contexto, insere-se o presente trabalho, que é um recorte de nossa dissertação de mestrado, e tem como objetivo compreender o nascimento, desenvolvimento e atuação do Movimento de Cultura Popular no estado de Pernambuco, mais particularmente, na cidade do Recife. Esse Movimento abriu um espaço considerável para o campo da arte nos meios populares, possibilitando o acesso a esse bem social e objetivando a conscientização crítica e política das camadas populares. Houve um envolvimento e contribuição de importantes setores da sociedade como o comércio, a indústria, a imprensa, para que esse movimento pudesse se desenvolver e atingir seus objetivos, desempenhando, assim, um papel social de destaque na época. O Movimento de Cultura Popular contribuiu de forma significativa para despertar um olhar mais acurado à arte por parte do Estado. Serviu de base para o campo da arte em Pernambuco, contribuiu para tornar visível, em meio à sociedade, a necessidade do ensino da arte para o desenvolvimento dos indivíduos.

Palavras-chave: arte, cultura, movimento popular.

Abstract: The 60th years, XX century, was so significant to the brazilian society. It was considered a period of cultural and artistic effervescence beyond of a moment that so many politic, economic and educational revindications happened. Inside this context is the present efforts that is a clip of our master dissertation, and has the objective comprehend the beginning, development and actuation of the Movement of Popular Culture (MCP) in Pernambuco, specifically, in the Recife city. This Movement open a considerable space to art in the half popular to make possible the access to the social good that is the art. The objective was the critic and political consciousness to the popular classes. Important sectors of society contributed for the development of the MCP how the commerce, the industry and the press. The MCP was contributing to awake a look to the government about the art. It served as a base to the area in Pernambuco, contributed to make visible the necessity of teaching art to the development persons.

Keywords: art, culture, popular movement.

No início dos anos 60, do século passado, o Brasil enfrentava uma crise econômica e política de grandes proporções. A crise econômica diz respeito à redução no índice de investimentos, diminuição da entrada de capital externo e à queda da taxa de lucro, agravando-se a inflação. A crise de direção política do Estado refere-se ao conflito entre capital e trabalho.         

Em meio à sociedade, vários setores se organizaram e participaram ativamente das mobilizações populares em favor de reformas em sua estrutura, como, por exemplo, os estudantes e os militares subalternos. Toda a década de 60 foi um período de muitas reivindicações por parte da população brasileira. Necessitava-se de reformas de base, pois as diferenças sociais cresciam a olhos vistos, reforma tributária, administrativa, urbana, universitária. Com o crescimento industrial e o desenvolvimento comercial, o mercado de trabalho se abria diante da juventude, porém o sistema educacional estava defasado, e o número de vagas nas universidades não contemplava a demanda que buscava esse nível educacional.             

As lutas pelas reformas de base não encerravam, conforme Gorender (1987), por si mesmas um caráter revolucionário e muito menos socialista. Continham virtualidades que tanto podiam fazer do Brasil um país capitalista de política independente e democrático-popular como podiam criar uma situação pré-revolucionária e transbordar para o processo de transformação socialista. Portanto, para a burguesia industrial e os setores vinculados ao capital estrangeiro, era um grande risco apoiar essas reformas, uma vez que feriam seus próprios interesses. Assim, Gorender (1987) afirma que formularam a alternativa da “modernização conservadora”. Opção que se conjugou a conspiração golpista, articulada à Escola Superior de Guerra (ESG), ao Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES) e ao imperialismo norte-americano que incentivou e ajudou de muitas maneiras.

Em nível mundial, os anos 60 marcaram o auge de grandes transformações, sobretudo, no comportamento da juventude. Surgiram os hippies (pregadores de paz e amor), no campo da música os Beatles e os Rolling Stones revolucionaram. Foi lançada uma nova moda com o uso da roupa informal, a calça jeans, a minissaia, os homens deixaram a barba e o cabelo crescerem. Os jovens queriam afirmar-se como jovens e buscavam romper com as regras tradicionais de então. Refletiam conscientemente e denunciavam as injustiças cometidas na sociedade na busca de um mundo mais honesto e menos desequilibrado.

“Era uma juventude com um sentimento de potência, muito alegre, muito participativa. Sentíamo-nos atores na construção social. Era comum na época, abandonar empregos mesmo bem sucedidos por causa de um ideal, o ideal de transformação da sociedade. Porém, com o golpe, ocorre toda a desestruturação das relações interpessoais[2]”.

No Brasil, na época tumultuada do momento político que se seguiu à posse de Jânio Quadros, em 1961 até 1964, um fenômeno novo pareceu tornar-se mais nítido: a consideração do “popular”[3] para o meio intelectual e artístico, os meios de comunicação de massa contribuindo vigorosamente para chamar a atenção de um número maior de pessoas.            

Conseqüentemente, o dado “participação”, tanto da parte de artistas como de intelectuais, foi considerado prioritário, tentando-se, através dela, um trabalho comum, tendo de um lado a massa da população brasileira e, de outro, o meio intelectual e artístico (Amaral, 1984). Esse período correspondeu a uma fase excepcional de florescimento da cultura brasileira. A politização das massas se tornou o terreno fértil sobre o qual frutificaram iniciativas de cultura popular como nunca havia ocorrido em épocas anteriores (Gorender, 1987).             

No campo artístico, verificou-se um florescimento nas diversas áreas, e um sopro de entusiasmo renovador percorreu a música popular, o teatro e a literatura. Entra em destaque a fase de ouro da Bossa Nova, do cinema novo, do teatro de arena, da arquitetura de Brasília. Um impressionante impulso intelectual acompanhou o maior movimento de massas da história brasileira. Tudo isso também repercutiu no campo da educação.             

No governo Jânio Quadros, a educação foi considerada como elemento-chave do desenvolvimento nacional com a incrementação do ensino técnico e profissional para atender ao desenvolvimento cultural e tecnológico do país. A educação surgiu como um meio eficaz de atingir o objetivo “desenvolvimentista” (Fazenda, 1988).             

Foi então que se fez presente a USAID[4], como “salvadora” ou mesmo “usurpadora”, agência norte-americana que estava de prontidão para assumir a tarefa da reordenação da educação nacional. Sua interferência na educação brasileira, camuflada de “assistência técnica”, já vinha de longe e não era um fenômeno exclusivamente brasileiro. Esses interesses, conforme Cunha e Góes (1985), manifestaram-se desde a Guerra Fria e cresceram no final dos governos Dutra e JK.              

No campo educacional, o final do governo JK foi marcado pela discussão sobre a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional no Congresso Nacional, nos órgãos educacionais, sindicais, meios estudantis, na imprensa e nos comícios da campanha eleitoral de 1960 (Cunha e Góes, 1985). O grande embate na discussão da LDB, que teve seu período mais longo na história da educação brasileira (13 anos), estabeleceu-se entre a rede privada de ensino e os educadores que defendiam a escola pública, laica e gratuita. Os diversos interesses fizeram permanecer em debate tanto tempo uma lei educacional. Com a aprovação da LDB, em 1961, realizou-se um sonho de Lourenço Filho, que era criar os Conselhos Estaduais de Educação, ou seja, descentralizar o MEC (Fávero, 2003), proporcionando mais autonomia aos Estados da Federação.            

Inserido no turbilhão de crescimento político e cultural, estruturou-se nesse período, anos 60, em Pernambuco, o Movimento de Cultura Popular (MCP) que abriu espaço para o pensamento renovador em educação e, conforme Cunha e Góes (1985), absorveu alguns intelectuais com experiências de lutas políticas das classes subordinadas. Estes se transformaram em intelectuais orgânicos[5] de uma política voltada para a cultura popular.             

Esse movimento foi capaz de pôr em pauta questões fundamentais para o curso da história brasileira, tais como: o confronto entre educação elitizada e cultura elitizada de um lado, e educação popular e cultura popular, de outro (Batista Neto, 1987). Esse movimento teve um amplo alcance na cidade do Recife e depois no estado de Pernambuco e não só conseguiu desempenhar um papel fundamental no âmbito educacional, na promoção e divulgação culturais como também na articulação e participação da população nos programas e atividades desenvolvidos por ele.                          

Um movimento de cultura popular, conforme Fávero (1983), só surge quando o balanço das relações de poder começa a ser favorável aos setores populares da comunidade e desfavorável aos setores de elite. É o que ocorreu em Recife e logo depois em todo o estado de Pernambuco. As forças populares e democráticas se fizeram representar nos postos chave do governo e da administração. A ocorrência dessa conquista, alcançada através do esforço organizado das massas populares, criou novas condições que se traduziram na possibilidade do Movimento de Cultura Popular ser financiado pelos poderes públicos.

Para compreender a força de atuação exercida pelo Movimento de Cultura Popular, tornou-se necessário conhecer como esse movimento conseguiu ser financiado pelos poderes públicos naquele momento. O que havia em sua conjuntura que lhe permitiu adquirir esse apoio? De onde surgiram as primeiras idéias para a estruturação desse movimento? E por que um movimento de cultura popular?             

No início de 1960, foi publicada uma matéria num jornal da cidade, em que se disse que a prefeitura do Recife era a única no Estado que não mantinha escolas: o único município que não dispunha de estabelecimentos destinados a ministrar o curso primário, sob as expensas dos cofres da municipalidade, em todo o Brasil (Diário da Noite, 03.02.1960). Uma outra matéria denunciou o descaso a que se relegou a educação em todo o Estado e o déficit no ensino que atingia cerca de 40 mil crianças sem escolas no Recife.             

A prefeitura municipal do Recife, nesse período, não atuava no setor educacional, pois só havia escolas estaduais e privadas. É interessante registrar que, segundo pesquisas recentes, já existia a atuação do município na educação desde o final do século XIX (Rezende, 2002).      

Miguel Arraes, então prefeito da cidade, já se ocupava com a questão, apontando dados estatísticos referentes ao déficit escolar e levantando propostas para solucionar tanto o déficit quanto o problema da qualidade do ensino público (Batista Neto, 1987). Dessa forma foi estabelecido um convênio da Prefeitura Municipal com o Governo do Estado para tratar de problemas escolares, mas a carência de recursos era muito grande. Criou-se, então, um departamento autônomo, uma entidade paralela à prefeitura para resolver o problema educacional. Tornou-se, também, importante mobilizar a população interessada em melhorar a educação, o que se verificou com a participação direta de vários setores da comunidade, até mesmo na execução de obras (Arraes, 1979).

Segundo Batista Neto (1987) não era apenas a expansão dos serviços públicos educacionais que as forças populares pretendiam. Havia toda uma intenção pela necessidade de mudança da concepção de educação, ou seja, se visava tanto ao quantitativo quanto ao qualitativo.

O então prefeito e depois governador do Estado convidou os intelectuais mais renomados na cidade para desenvolver uma nova proposta para a educação infantil. Entre esses, encontrava-se Germano Coelho, idealizador do MCP. Após longa permanência em Paris, retornou ao Brasil com uma visão nova de sociedade, de educação e de Cristianismo. Trazia todo o espírito, junto com sua esposa Norma Porto Carreiro Coelho, de Boimondeau e do Peuple et Culture, movimento francês da época (Memorial, 1986). Assim, Germano Coelho retomou a proposta educacional de Paulo Freire. Então, lançou o MCP. Mas, o que foi de fato o MCP?             

Em maio de 1960, o prefeito Miguel Arraes promoveu, apoiado em setores progressistas da intelectualidade e nos estudantes, a fundação do Movimento de Cultura Popular. Juridicamente, nasceu o MCP como uma sociedade civil autônoma.             

O Movimento de Cultura Popular nasceu em Recife, no Arraial do Bom Jesus, em Casa Amarela, no dia 13 de maio de 1960. Esse Movimento recebeu várias influências de obras e autores, sobretudo franceses. Seu nome foi herdado do movimento francês “Peuple et Culture” e em grande parte seu espírito (Coelho, 2002). Suas atividades iniciais se orientaram, fundamentalmente, no sentido de conscientizar as massas através da alfabetização e educação de base. A realidade de um Estado com enorme índice de analfabetismo, nos anos 60, exigia esforços urgentes, a fim de incorporar à sociedade os milhares de proletários e marginais do Recife, dotando-os de uma nova consciência (Pernambuco, 1963).      

O MCP foi criado para emancipação do povo através da educação e da cultura. Destacamos, em seguida, as palavras do próprio idealizador do movimento, Germano Coelho, que revelam o compromisso em contribuir para uma melhor qualidade de vida, para uma maior conscientização e para uma emancipação da população recifense:

“O Movimento de Cultura Popular nasceu da miséria do povo do Recife. De suas paisagens mutiladas. De seus mangues cobertos de mocambos. Da lama dos morros e alagados, onde crescem o analfabetismo, o desemprego, a doença e a fome. Suas raízes mergulham nas feridas da cidade degradada. Fincam-se nas terras áridas. Refletem o seu drama como “síntese dramatizada da estrutura social inteira”. Drama também de outras áreas subdesenvolvidas. Do Recife com 80.000 crianças de 7 a 14 anos de idade sem escola. Do Brasil, com 6 milhões. Do Recife com milhares e milhares de adultos analfabetos. Do Brasil com milhões. Do mundo em que vivemos, em pleno século XX, com mais de um bilhão de homens e mulheres e crianças incapazes sequer de ler, escrever e contar. O Movimento de Cultura Popular representa, assim, uma resposta. A resposta do prefeito Miguel Arraes, dos vereadores, dos intelectuais, dos estudantes e do povo do Recife ao desafio da miséria. Resposta que se dinamiza sob a forma de um Movimento que inicia, no Nordeste, uma experiência nova de Universidade Popular” (Godoy e Carreiro Coelho, 1962).

Mergulhado nesse contexto social, quais eram os objetivos do MCP e como se deu sua estruturação? Como concebeu a arte e seu papel na educação?             

O Movimento de Cultura Popular tinha como objetivos, segundo Cunha e Góes (1985), promover e incentivar a educação de crianças, adolescentes e adultos; atender ao objetivo fundamental da educação, que é o de desenvolver plenamente todas as virtualidades do ser humano; proporcionar a elevação do nível cultural do povo; colaborar para a melhoria do nível material do povo; formar quadros destinados a interpretar, sistematizar e transmitir os múltiplos aspectos da cultura popular.             

Sem advogar o rompimento com a cultura internacional, o MCP postulava o desenvolvimento de uma cultura mais autenticamente nacional, buscando as raízes da cultura brasileira onde elas se encontravam, no meio do povo. A elite intelectual brasileira estaria cada vez mais orientada por padrões e matrizes de outras culturas, sem enxergar o que de fato constituíam os problemas culturais brasileiros, cuja solução só seria possível através de matrizes culturais próprias que corresponderiam muito mais a uma índole e a uma natureza de ser brasileiras (Arte em Revista, s.d.).             

O MCP foi fundado e constituído como uma sociedade civil, brasileira, de número ilimitado de sócios com duração indeterminada e finalidade educativa e cultural. E ainda, constituído pelas subvenções dos poderes públicos, doações de outras entidades e de particulares convênios (Pernambuco, 1960). O MCP se definiu como órgão técnico, rigorosamente apolítico e pluralista, porquanto não discriminou filosofia, credo ou convicções ideológicas. Mas, na prática, onde se realizaram as atividades propostas por esse novo movimento?             

Os clubes recreativos, as sociedades beneficentes, os salões paroquiais, os templos protestantes, os centros espíritas, os clubes desportivos das camadas populares abriram espaço para a implantação de escolas do MCP. O apoio do prefeito Miguel Arraes foi decisivo para o crescimento da rede escolar (Coelho, 2002).             

Ronildo Maia Leite, jornalista, escreveu uma matéria no Jornal do Commercio (s.d.) e explicitou o crescimento do Movimento:

“(...) Alastrou-se a munganga por todo canto – pelas células do Partidão, associações de bairro, casebres dos morros, mangues. Onde houvesse uma sala vazia nela se botava uma escola. Nessa época houve um congresso nacional de estudantes no Recife. Pois os pestes da UNE levaram a idéia pra São Paulo. De lá descambaram pra Bahia, desembestaram pra Sergipe. O prefeito de Natal era Djalma Maranhão, vermelho que só Stalin, inventou o refrão De pés descalços também se aprende a ler (...)”.              

Em toda a cidade do Recife, utilizou-se todo e qualquer espaço para se montar escolas (Fávero, 2003). Foram convocadas as 300 normalistas do Instituto de Educação de Pernambuco que se integraram ao espaço governamental para diminuir o déficit escolar. O comércio e a indústria foram convocados a contribuir com as despesas dos professores, além de pessoas das mais variadas origens, dispostas a colaborar para manter as escolas que iam sendo criadas e colocadas em funcionamento. A imprensa também passou a dar apoio ao Movimento. Em dois anos, o MCP instalou 104 escolas e atendeu 9.000 crianças (Batista Neto, 1987).             

Sua estrutura foi composta por três departamentos: Formação da Cultura; Documentação e Informação e Difusão da Cultura. Esse último obteve um crescimento maior, pois foi integrado por dez divisões: Pesquisa, Ensino; Artes Plásticas e Artesanato; Música, Dança e Canto; Cinema; Rádio, Televisão e Imprensa; Teatro; Saúde; Cultura Brasileira; Bem-estar coletivo; Esportes.             

Percebemos o grau de atuação exercido pelo Movimento e o raio de influência que atingiu em todos os ramos da arte e cultura em geral, recebendo, vale salientar, o apoio de setores importantes dentro da sociedade, como já citamos, o comércio, a indústria e a imprensa.

Todavia, essa prática, esse novo pensamento, essa nova proposta, voltados especificamente para o popular, suscitaram conflitos com os setores conservadores da época. As camadas populares, organizando-se, adquiriam forças, sobretudo, através da conscientização política e do fortalecimento cultural para suas reivindicações. Conseqüentemente, o MCP servia de incômodo para as elites conservadoras que passaram a criticar o movimento de subversivo, divulgador de idéias comunistas e, ainda, “antro de perdição de meninas”. A imprensa escrita publicou vários artigos de políticos que criticavam o avanço do Movimento[6]. Note-se que, naquele período, estava próxima a eleição dos novos candidatos ao governo do Estado.             

Em resposta às críticas que o Movimento vinha sofrendo, os membros dirigentes do MCP resolveram publicar nota ao povo:

“(...) todo o povo do Recife sabe que o MCP é antes e acima de tudo idealismo, abnegação, honestidade, competência técnica e espírito de voluntariado de populares, intelectuais e estudantes: são 201 escolas instaladas em menos de três anos, com 626 turmas, diurnas, vespertinas e noturnas; são 19.646 alunos, crianças, adolescentes e adultos recebendo educação primária, supletiva e de base. (...) ataques desta ordem, planejados, coordenados e desfechados, às vésperas de eleições, contra o MCP têm um só objetivo: amesquinhar, com propósitos escusos, obra administrativa séria, patriótica e apolítica que segundo o testemunho de alguns dos maiores educadores[7] brasileiros honra as tradições culturais do Recife” (Jornal do Commercio, 02.09.1962).

As críticas e difamações realizadas por políticos naquele período não cessaram, e o MCP divulgou também a relação[8] com os nomes das escolas, endereços, número de turmas e de alunos e convidou toda a população para visitar e conhecer o trabalho desenvolvido pelo Movimento.             

Ora, que perigo podia trazer para a sociedade a cultura popular? Perguntou-se Germano Coelho (Memorial, 1986). Ele mesmo respondeu dizendo que o MCP possuía um espírito de autodeterminação, de fidelidade às tradições culturais do país, de responsabilidade quanto à sua independência definitiva. Ideais com que o MCP objetivava atingir não só a criança, mas o adolescente e também o adulto, educando através de escolas comuns, de processos informais, nas praças públicas e em plena rua, educando pelo rádio, pelo cinema, pela televisão, pela imprensa. Explorando novos métodos e técnicas de educação. Experimentando, adaptando, criando.             

Para deflagrar na comunidade a paixão pelo saber, o MCP tudo mobilizou. O diversificado e denso folclore do Nordeste. As artes plásticas e o artesanato. O teatro, a música, o canto e a dança. A literatura, a ciência, a pesquisa. Os esportes, atividades em conta que se institucionalizaram em escolas, bibliotecas, conjuntos teatrais, centros de cultura, círculos de leitura, museus, galerias de arte, centros artesanais, praças de cultura, cine-clubes, discotecas, tele-clubes, festas populares, semanas de estudos e festivais (Memorial, 1986).             

Com essa visão de vanguarda voltada à emancipação do povo, nada mais incômodo e perigoso ao processo de controle social da população, determinado até então pela elite, que o desenvolvimento e a expansão desse movimento. Para os setores conservadores, contrários a essas idéias, se tornava imprescindível bloquear esse crescimento, interromper ou, talvez, aniquilá-lo. Certamente, seria o caminho mais seguro para não se inverterem os papéis, pois não se poderia permitir ao povo o direito de voz e vez.

O MCP realizou uma educação popular por vários meios e atingiu um grande público. Foram criadas escolas primárias para crianças e adolescentes; escolas radiofônicas e de aperfeiçoamento para adultos; programas de educação e cultura pelo rádio e pela televisão; escolas de formação profissional, como a de motoristas mecânicos e o curso de corte e costura; praças de cultura com discoteca, teleclube, biblioteca pública, cinema, teatro e jogos infantis; centros de cultura, clubes de leitura e círculos de cultura, onde eram debatidos os problemas brasileiros; cursos e campanhas de educação sanitária, além de assistência médica para crianças e adultos; cursos de educação física, esportes, piqueniques esportivo-culturais; centros de artesanato e artes plásticas e exposições para o público, como as da Galeria de Arte do Recife, construída às margens do rio Capibaribe; programas teatrais realizados no teatro do Arraial Velho e no Teatro do Povo (ambulante), além de debates dos problemas teatrais com o público (Godoy e Carreiro Coelho, 1962).

Como o departamento de Difusão da Cultura foi o que obteve um crescimento maior e também porque diz respeito mais diretamente à presente pesquisa, destacamos aqui alguns objetivos e atividades desenvolvidas por ele.

O projeto de núcleos de cultura popular visava fornecer às organizações populares os elementos de cultura popular capazes de incrementar suas atividades culturais; auxiliar as organizações populares a se expandirem e a se aprofundarem entre todas as camadas do povo; desenvolver a consciência do povo através da criação ou expansão de departamentos culturais nas organizações populares e ainda auxiliar as organizações e setores diversos do povo a formularem suas plataformas reivindicatórias no quadro geral da problemática econômica, social e política brasileira e nordestina (Pernambuco, 1963).             

Como o MCP procurou colocar em prática esses objetivos? Atuando nas federações e associações de bairro, nos sindicatos dos trabalhadores, em círculos recreativos operários, em associações profissionais e culturais e organizações estudantis.             

Quanto ao projeto editorial de imprensa, visou-se difundir elementos de cultura popular junto às mais amplas camadas populares, abrindo, também, oportunidades de trabalho literário ou científico, estimulando e facilitando a publicação de artigos, estudos, ensaios, obras de ficção, utilizando para isso emissoras radiofônicas, estações de TV, jornais etc.            

No campo teatral, pretendeu-se elaborar novas formas teatrais de expressão da problemática popular, como também elevar o nível de consciência política das massas, de modo que as próprias massas assumissem seu papel histórico social. Nesse sentido, cursos de teatro foram oferecidos, promoções de festivais de teatro foram realizadas, assim como a fundação e supervisão de clubes de teatro, etc.            

Conforme Luís Mendonça, que dirigiu o Teatro de Cultura Popular, esse não nasceu por acaso, mas resultou de várias experiências que visavam a uma renovação do teatro. Renovação em todos os sentidos, principalmente no de fazer um teatro mais amplo e aberto, que o tirasse do tradicional Teatro Santa Isabel, onde os preços da entrada e a obrigatoriedade do uso do paletó o tornavam proibido para o povo e restrito a uma pequena elite financeira (Mendonça, s.d.).             

Com referência ao cinema, o MCP buscou equacionar em linguagem cinematográfica os problemas fundamentais com que se defrontava o povo e desenvolver atividades de difusão cinematográfica nas organizações populares. Já o projeto de artes plásticas e artesanato tinha como objetivos incentivar as atividades tradicionais no campo da arte utilitária, visando à ocupação das famílias de baixa renda; dar assistência aos artesãos e a centros de produção artesanal; mobilizar os artistas plásticos no esforço de elevar o nível artístico do artesanato, estimulando a capacidade criadora popular e a diversificação das linhas de produção. Para isso, promoveu cursos de desenho, pintura, gravura, fantoche, cestaria, cerâmica, estamparia, tapeçaria, tecelagem, etc. Estimulava também a produção realizada pelo projeto; exposições; feiras de artesanato e exposições itinerantes nos bairros. Foram organizados o Centro de Artes Plásticas e Artesanato do MCP e a Galeria de Arte do Recife (Pernambuco, 1963). Esta última realizou a cada quinze dias uma nova exposição, contribuindo para o desenvolvimento e a difusão das artes plásticas e do artesanato (Jornal do Commercio, 02.09.1962).             

Na apresentação da II Semana Estudantil de Cultura Popular, promovida pelo MCP, em maio de 1961, Abelardo da Hora, artista plástico e um dos membros fundadores do movimento, afirmou que esse evento não só esclarecia os estudantes como também indicava possibilidades para os artistas e artesãos, rompendo as estreitezas e limitações duma orientação tradicional de elites, desvinculadas do trabalho e da vida do povo (Pernambuco, 1961).             

A programação da II Semana Estudantil foi realizada em diversos locais na cidade do Recife, como o Teatro Santa Isabel, Sítio da Trindade, escola de engenharia da Universidade do Recife, Cine Soledade e Sport Club. Entre debates, palestras, exposições, apresentações teatrais e musicais, jogos esportivos aconteceram, assim como aulas de desenho e artes plásticas.             

No âmbito da dança, da música e do canto, o MCP também abriu espaço e buscou reviver e preservar o folclore, incentivando o seu florescimento, difundindo-o e combatendo a alienação cultural na dança, no canto e na música como meio de promover a politização do povo e incentivar e vitalizar as festas populares.             

Enfim, como se vê, o MCP atingia os problemas relacionados com a elevação do nível cultural da população, levando-a à conscientização política e crítica dos problemas brasileiros e aqueles mais próximos do seu cotidiano. O MCP não só alfabetizou como mobilizou jovens estudantes para um trabalho de recuperação das manifestações da cultura popular com a música, o teatro, as festividades do povo, a fim de garantir a permanência e a experiência do educando, fazendo a um só tempo alfabetização e conscientização (Andrade, 1989).             

O Movimento de Cultura Popular exerceu um papel fundamental na promoção, divulgação e no ensino da arte, sobretudo aproximando-a e tornando-a acessível às massas populares e contribuiu, por meio dela, para a conscientização política e crítica da população.

Pretendia, assim, um avanço crescente do processo de organização popular, pois privilegiava os meios indispensáveis à formação e ao exercício da consciência social capaz de compreensão adequada às condições de vida a que se encontram submetidas as massas populares; o desenvolvimento da consciência popular no sentido de aprofundar sua compreensão teórica da realidade social e da necessidade prática de sua transformação; o desenvolvimento da vida cultural das organizações populares no sentido de incrementar suas atividades culturais internas e suas manifestações culturais voltadas para a comunidade (Batista Neto, 1987).            

O último balanço das atividades realizadas pelo MCP, datado de 1964, foi um dos poucos documentos que se conseguiu salvar. Esse documento foi publicado em “Arte em Revista, ano 2, n.3” e entre outros constam como realização do movimento 414 escolas, dentre as quais 14 grupos escolares que atingiram 30.405 alunos, dos quais 27.703 crianças e 2.702 adolescentes, sem contar o número de adultos. Assim, compreender o papel que o MCP exerceu dentro da sociedade pernambucana foi de fundamental importância, sobretudo no que diz respeito à questão da divulgação da arte nos meios populares, à promoção do acesso da população a este bem social, enfim, ao favorecimento da educação também através da arte.             

A relevância desse movimento refere-se ao espaço democrático que ele foi. Um movimento que democratizou o acesso à arte e ao ensino da arte abriu espaço para que as camadas populares da sociedade pudessem usufruir desse bem social. Percebe-se que através do acesso à arte, seja o teatro, a música, a dança, as artes plásticas, havia uma intenção em desenvolver o senso crítico e político das pessoas sobre os problemas sociais que as circundavam.

A arte no MCP apresenta-se como uma arte engajada, crítica, política, com uma característica específica.             

Dentre outros, esse movimento também serviu de base para o campo da arte em Pernambuco, contribuiu para tornar visível, em meio à sociedade, a necessidade do ensino da arte para o desenvolvimento dos indivíduos, serviu de meio para encontro, troca de experiências, enfim, espaços para a organização dos arte-educadores, profissionais envolvidos nessa área ou os que dela se aproximavam.

Com o golpe militar em março de 1964, no Arraial do Bom Jesus, sede do Sítio da Trindade, encontraram-se dois tanques de guerra, preparados para o ataque e agressivamente estacionados sobre o gramado. Tudo foi eliminado, toda a documentação do movimento queimada, obras de arte completamente destruídas, e os profissionais envolvidos com o movimento foram perseguidos e afastados de seus cargos. Assim, se fazia silenciar, também, a expressão artística denunciadora das injustiças sociais.

Referências 

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Diário da Noite. Recife, ano 14, N.33, 03.02.1960.

Diário da Noite. Recife, ano 17, N.259, 26.09.1962.

Jornal do Commercio. Recife, N.202, 02.09.1962.

Última Hora. Recife, N.84, 09.09.1962.

Revistas

ARTE EM REVISTA. Ano2, N.3, s.d. Que foi o MCP?

Notas:

[1] Mestra em Educação pela UFPE. Doutoranda em Educação pela UFMG. Núcleo de Pesquisas História da Educação em Pernambuco – NEPHEPE. Grupo de Estudos e Pesquisas em História da Educação – GEPHE.

[2] Comentário realizado por Ana Cecília Jácome, membro do PCBR, durante o regime militar, em entrevista concedida na Universidade Federal de Pernambuco, na disciplina Historiografia e Metodologia da História da Educação, em 11.09.02.

[3] Com a revisão de valores procedida a partir do romantismo, quando se passam a dar novo sentido e valor ao elemento povo, as artes populares, que desde o Renascimento haviam sido rebaixadas à categoria de artes menores relegadas à classificação de artesanato, se viram afinal como centro de atenções influenciando as artes eruditas, em suas concepções, formas e cores. Sabe-se que até o Renascimento a arte era tomada como um todo, sendo executada pelo artista artesão sem grandes possibilidades de ressaltar o individualismo e as inclinações pessoais, levando, antes de tudo, em consideração a utilidade mais ou menos imediata das obras de arte executadas. Destinava-se à coletividade e como tal eram idealizadas para servir à coletividade tanto material quanto espiritualmente. O artista ou artesão se filiava às corporações, como já vimos anteriormente no tópico sobre o Liceu de Artes e Ofícios, e aprendiam conscientemente o seu ofício a fim de dar o maior rendimento possível sem que isto o distinguisse dos seus companheiros. Raramente as obras eram assinadas porque geralmente eram feitas por equipes. Tinham um rigor especial vindo das raízes mesmas do povo. Com o Renascimento as artes populares passaram a ser propositadamente consideradas como artes menores, limitando-se à semelhante classificação até o romantismo. Foi o século XIX quem descobriu as artes populares, a sua força histórica, o seu valor como elemento ativo e primordial. Os artistas eruditos se voltaram para as manifestações populares em um interesse diferente, encontrando nelas um manancial jamais esgotado de inspiração e revigoramento para suas criações. Entre os artistas pernambucanos que se inspiraram nos temas populares e em suas linhas e cores, situam-se Lula Cardoso Ayres, Abelardo da Hora, Corbiniano Lins, Wilton Sousa, Wellington Virgolino, Armando Lacerda (Diário da Noite, 26.09.1962).

[4]  USAID – United States Agency for International Development

[5] Gramsci (1968) define duas categorias de intelectuais como tradicionais e orgânicos. Os tradicionais referem-se aos preexistentes na sociedade, ou seja, categorias que são determinadas pela tradição de um povo e permanecem no decorrer histórico social. Os orgânicos referem-se às especializações que cada nova classe cria consigo e elabora em seu desenvolvimento progressivo. Um desses exemplos aponta o empresário capitalista que cria consigo o técnico da indústria, o cientista da economia política, o organizador de uma nova cultura e assim por diante. Entretanto, Gramsci esclarece de forma considerável que todos os homens são intelectuais, mas nem todos os homens desempenham na sociedade a função de intelectuais. Ele ainda coloca no mais alto grau da atividade intelectual os criadores das ciências, da filosofia, da arte, etc

[6]  Em consulta aos Jornais do Commercio (1962) no Arquivo Público do Estado, pude verificar que havia uma certa constância de críticas realizadas por parte de políticos que tentavam denegrir as atividades que o Movimento vinha realizando.

[7] Anísio Teixeira, Darcy Ribeiro, Abgar Renault, do Conselho Federal de Educação, Oliveira Brito, Ministro da Educação e Cultura não só elogiavam as iniciativas do Movimento como também o apoiavam. E ainda o embaixador Paschoal Carlos Magno ofereceu a colaboração e o alto patrocínio da entidade que dirigia para os festivais do Movimento (Jornal do Commercio, 02.09.1962).

[8] Essa relação encontra-se publicada no jornal Última Hora do dia 09.09.1962.

 

Revista Digital Art& - ISSN 1806-2962 - Ano IV - Número 06 - Outubro de 2006 - Webmaster - Todos os Direitos Reservados

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