voltar ao menu de textos

No que Proust NÃO pode melhorar a sua vida. Leituras e arremates da criação literária.
Autor:
Jediel Eleutério Gonçalves - critiquegenetiquejd@yahoo.fr

Resumo: O grito que anunciava a chegada das Musas morreu. Conservando diálogos entre a obra de arte e o discurso filosófico que acabam por também culminar nas reflexões a respeito do espaço humano, o artista e o filósofo mantêm um contrato pendente com o tempo, que tão largamente determina uma consciência. Empenham-se agora em compreender que toda articulação de material ou de pensamento depende de um impulso implícito e/ou explícito que contêm na forma viva a aquisição de um processo e não de uma inspiração. Aquela idéia de que “inícios deixaram de existir” apregoa ainda mais a posição de um homem diante de um universo repleto de desesperanças: enfim, não se buscam mais a gênese para não parecermos mais tão nostálgicos. Analisando a obra Em Busca do tempo perdido, de Marcel Proust (1871-1922), noto que a elaboração desta “lógica” que tenta explicar o funcionamento do trabalho está para o crepúsculo, mais para um final do dia, enfim, para um resultado final, para uma publicação de resultados; e não mais para o meio onde as intervenções do sujeito – que se vê capaz de criar e se recriar – são capazes de tornar mais inteligíveis os processos desde a origem.

Palavras-chave: Marcel Proust, Literatura Francesa, Criação Literária.

Résumé : Le cri qui annonçait déjà l’arrivée des Muses mourut. En conservant des entretiens entre l’œuvre d’art et le discours philosophique qui finissent par plafonner également sur les pensées à propos de l’espace humain, l’artiste et le philosophe soutiennent un contrat traînant avec le temps qui, aussi, si largement s’inspire d’une conscience. Or, on entreprend de comprendre que la manipulation du matériel de l’écriture ou de la pensée dépend d’un stimulus sous-entendu (ou bien entendu) qui contient sous la forme la plus vive le fruit d’un procès et non absolument d’une inspiration. L’idée originale des « origines inexistantes » comprend la position d’un être qui se met devant un univers rempli de désespoirs : décidément, on ne cherche plus la genèse pour ne plus paraître si nostalgiques. En analysant l’œuvre A la Recherche du temps perdu, de Marcel Proust (1871-1822), je remarque que l’élaboration de certaine « logique » qui essaie de dérouler le fonctionnement du travail est mise jusqu’auprès d’un point final, d’un résultat final, d’une publication de résultats ; et non à peine d’un moyen où les interventions du sujet – qui se croit capable de créer et se faire créer – sont capables de rendre les procès plus intelligibles dès son origine.

Inícios deixaram de existir – o incipit: o orgulhoso termo latino que assinala o começo só sobrevive em nosso idioma no anacrônico “enceta”. Na Idade Média, para todo novo capítulo de uma obra, o escriba destacava já desde os códices e manuscritos a linha inicial com uma letra capitular iluminada. Uma letra inicial maiúscula – que implicando começos e primazias, e conservando em toda a sua duração as potencialidades de um início – incorporaria forças e explicitaria em si mesma a máxima de Platão, segundo a qual “a origem é a mais perfeita de todas as coisas naturais e humanas[1]”. Hoje, com a óptica de orientações que se têm do plano do pensamento ocidental, nota-se que se privilegiam percepções muito mais orientadas ao poente e ao crepúsculo, e não mais àquela idéia de origem perfeita (incipiente) imaginada pelos antigos.

Neste mesmo contorno, a vida teve como princípio o Verbo, e este pareceu insustentável no confronto com n possibilidades de matérias poéticas. Faltaram-lhe polêmicas, nada sustentou o conteúdo de nada e quanto aos nascimentos de julgamentos que surtiram, estes foram para sempre abortivos. Nas galáxias de possibilidades, um explicit líber[2] liderou o espaço do ponto fixo entorno do qual orbitam outras orientações e espíritos – percebe-se que para cada momento ornamental máximo de uma forma poética deixaram de existir um olhar decodificador profundo e uma despedida satisfatória do mundo. Para efeito continuado disto, foi experimentando diversas aplicações de modelos de julgamentos entorno de “aparições” poéticas que a cultura, de modo geral, chegou a elaborar inúmeras noções ligadas à concepção e à consumação final de tudo, e obrigou-se a atravessar, no domínio da matéria inteligente, deploráveis períodos dominados por uma fascinação com o acaso e/ou a inspiração.

No universo das artes, mais particularmente no caso da literatura, certas imagens específicas ligadas a esses processos de deterioração se viram tocadas por este imaginário; como no tempo de aproximação dos meses de outono ou a luz que se apaga gradativamente, estas imagens endureceram a vontade de busca pela gênese, ou elas se vincularam simplesmente à percepção humana da ruína física e da mortalidade terrena.

Mas sempre começamos mal nossa busca pelo olhar decodificador das formas no mundo: abrimos às cegas um atalho em mata fechada sem ao menos termos estabelecido para nós mesmos um andaime de onde conseguimos atingir, sozinhos, com ampla visão, toda a direção para onde deve seguir o olhar. Embrenhando-nos em toda a matéria da gênese, e percorrendo um mapa mental das várias possibilidades das partes dos caminhos a serem tomados, nos deparamos enfim com uma clareira cercada de densas florestas de signos. Acuamos no caminho. Como talvez tenha feito semelhantemente Gilles Deleuze[3], debruçamo-nos sobre esses signos e em seguida notamos que a Busca por sua vez se entrincheira também nas verdades que somos capazes de compreender enquanto estivermos em processos de aproveitamento da vida; e aquilo que uma vez nos foi criado servirá muito em breve de pensamento de construção[4].

Michel de Montaigne (1533-1592) – investigando no cotidiano um coeficiente mínimo de percepções contidas no aproveitamento – não trazia para sua base teórico-filosófica uma estrutura muito complexa de pressupostos, contudo imaginava que no domínio natural das coisas estariam diluídos elementos (signos como avisos) que o levassem à compreensão do cotidiano. Deste modo, ao comentar a “sutil morte” ou a leve deterioração do potencial imaginativo da qual compartilhavam os homens de seu tempo, Montaigne dizia que “todos os dias levam à morte, e o último por fim chega[5]”. Mesmo antes dele, diversos moralistas concordaram chamando a atenção para o fato de que “o bebê recém-nascido é suficientemente velho para morrer[6].

Ao transpor este olhar para o que implicam as artes, é comum ver que na mais confiante elaboração metafísica e na obra de arte mais triunfal há sempre um memento mori[7], ou seja, um empenho implícito (ou seria explícito?) para conter a ação fatal do tempo e da entropia que penetra toda forma viva. Diante do tempo, um elemento mínimo das artes, a obra, recebe doses cada vez mais fortes de pensamentos em seu status e digressões: recupera reflexões de categorias e as rompe, validando funções de outros espaços e perspectivas, num gesto puramente incisivo de reconstrução. Por refletir comportamentos e aplicações, a obra de arte quebra no fluxo da utilização a recriação contínua do espaço, da forma e do tempo, um dentro e um fora, no mundo.

É nesta mesma viga de discussões que o romance proustiano toma certas proporções, por exemplo, e prefere receber consideráveis potencializações de dentro e fora da literatura. Constrói-se uma vida, um tempo, um corpo, um desejo e caminhos para assim encontrar a si mesmo e o-outro. Incluindo nos parênteses longas digressões teóricas e se aproximando de outras formas novas e híbridas justamente para dar conta de sua problemática com o tempo, Em Busca do tempo perdido parece querer, por estratégias nuançadas, se afastar de sua maior preocupação que é a literatura e o percurso de formação/aprendizagem do herói que se quer ver escrevendo.

Neste último caso, é o escrever que está colocado, o caminho traçado, como o do artista que, segundo Baudelaire, “apoiado sobre sua mesa, lançando sobre uma folha de papel o mesmo olhar que por um instante reunia sobre as coisas, “se esgrimando” com seu lápis, sua pluma, seu pincel, fazendo emergir água do copo, secando sua pluma, sobre sua camisa, apressado, violento, ativo, como se temesse que as imagens lhe escapassem...” [8]. A descrição que Baudelaire faz aqui do artista cria uma imagem do momento da criação. Essa “estranha esgrima” pode ser apreendida como uma mediação genética, ou seja, existe evidentemente uma imagem fincada no processo, no corpo-a-corpo com a palavra. De início, como se já quisesse saltar aos olhos do escritor, e rechear seu imaginário como o faria através de muita técnica uma pintura artística num museu, esta imagem povoaria o [per-]curso da escritura. A partir dela, construir-se-ia toda base para a criação do romance de desdobramentos e endobramentos de uma explosão da palavra escrita. Folhas introduzidas em camadas que se abrem umas sobre as outras, e em mais camadas. Narrativa ao infinito.

Aparentemente, por seu posicionamento, Em Busca do tempo perdido procura corporificar as instâncias de um romance-ensaio, mas ao mesmo tempo consegue propor indagações a respeito da arte, da vida, do mundo, da moda, dos sentimentos de amor e amizade, que rodeiam todo e qualquer ser humano. Subitamente, para grande susto da modernidade, a escritura artística do romance assume um projeto distinto. Estando carregado de cenas e personagens imaginários, o romance proustiano impulsiona inclusive o desenlace de uma operação crítico-ensaística sem abandonar as conformidades e o funcionamento de uma narrativa. O discurso crítico toma corpo e não se desvia do seu foco; se nutre de questões e de nuances deste projeto e passa a dialogar com a narrativa.

Depois do susto, a grande surpresa. A modernidade cruza pela obra o entendimento de que o interesse maior de um romance não reside tão somente na realidade que ele reflete, mas, maiormente na visão singular do mundo que ele é capaz de expressar para o leitor. Esse mundo em Proust atinge e resvala uma imaginação[9] sempre buscando o meu do herói Marcel, o só meu, algumas estruturas que lhe pareçam preparar longe dos seus sentidos e atenção um pensamento e uma contínua aprendizagem. Neste percurso, afloraria então para dentro do modo de ver da escritura proustiana um idealismo simbólico a fim de fornecer ao leitor visões fundamentais da obra. Não nos esqueçamos que o conceito de idealismo provém da teoria do conhecimento e consiste em considerar que a dimensão dos objetos depende da atividade do sujeito[10]. Tal idealismo é denominado simbólico porque está atravessado pela simbolização da arte, pelos processos estéticos e escriturais.

A mim parece que os escritos de A la Recherche du temps perdu (como o nome em francês) parecem teorizar sobre a idéia de que toda lembrança seja uma construção literária, uma forma romanceada; através da arte, tanto a lembrança quanto qualquer outra atividade interior podem condensar-se e durar como construções estéticas. Então, no meu modo de compreender, Proust proporia uma “troca” epistemológica vinculada às condições de conhecimento do real e da literatura. A arte (em especial, a literatura) como possibilidade de relação do homem com o mundo. Arte-literatura como fundamento da experiência, porque tão somente as impressões de uma subjetividade se incidem através da escritura na atividade estética. Se buscarmos essa “literatura”, ela só pode estar no olhar produzido, e não tão puramente no discurso em si. O que, de repente, nos leva então a um interesse não apenas no conteúdo, mas sim no modo em que, na criação, os eventos se configuram. Depreendemos antes o sentido disto: somos o que somos no âmbito, densidade e dimensão das questões que nos surgem.

Deste modo não temo em logo dizer que o que se presencia na Recherche é o percurso de um herói que, ao longo da vida (e para o bem de todo seu amadurecimento), troca umas questões pelas outras. E quando se chega a um carrefour, a um ponto de trocas onde questões se inter-cruzam, não significa de modo algum instaurar na narrativa um “pronto... finalmente, chegamos” a fim de justificar o fato de ter se aproximado ao máximo de uma verdade-resposta conclusiva ou a uma interpretação única entorno de um objeto.

Tal como uma esfinge diante de seu Édipo, uma pergunta-enigma é lançada sobre o herói que o leva aos vários outros campos de sua atividade de aprendizagem e relevâncias do pensamento. Quando a esfinge propõe o primeiro enigma e Édipo responde: o homem, este é e não é a resposta, por um motivo muito simples. Toda questão tem e não tem resposta. Édipo, acreditando ter re/dis[sol]vido o enigma, deixou de ver o mistério que sua resposta colocara diante de si. Na verdade, o homem é o mistério, que Édipo não percebe.

Na perspectiva do herói Marcel, o homem também nos parece ser o mistério. Somado aos signos que deve decifrar, o homem-artista, em suas questões, não chega à resposta alguma por três motivos: o trajeto (o processo) é um enigma; só há no fundo verdades de outras não-verdades; e o que não se pode fazer de maneira alguma é continuar perscrutando os problemas a ponto de exigir uma resposta imediata – e aqui nos deparamos, talvez, com a questão prévia mais radical do romance de Marcel Proust: lançar mão de um método para responder à questão – Como se tornar um escritor?

Raciocinando um pouco mais a respeito deste método, ou procedimento, o que teria levado o escritor a atravessar anos a fio debruçado sobre o minucioso trabalho nos manuscritos, deixando sempre sobrepujante na Recherche esta questão marcante acima de todos os outros temas? Penso em todo o jogo labiríntico realizado com o leitor ao trabalhar esse material. Na leitura, sem dúvida alguma, têm-se como base desdobramentos e endobramentos de uma explosão da palavra escrita. Enfim, o leitor da obra (bem como o pesquisador) não precisaria saber o que Proust escritor quer; apenas teria antes a necessidade de saber o que ele, leitor, quer do que Proust também quis.

Sensivelmente, o jogo de questões é posto pelo detalhe. Nada parece ser tão denso e duradouro; forças de concentração no jogo feito pelo Narrador com o leitor a respeito do herói trazem num vai-e-vem nuances deste detalhe. Há um tempo para que ele possa usufruir ao máximo no manuscrito e/ou texto publicado um momento triunfal, um tempo da minúcia e do acúmulo de dados. O detalhe vibra na inquietação do miniaturista, que lança a partir de um caprichosismo com a língua temas e questionamentos à obra. Tal caprichosismo seja fruto, talvez, do que o escritor da Recherche mesmo propõe ao escrever o romance. Inquietações ao se trabalhar um detalhe. Pode-se ainda dizer que, do manuscrito ao texto publicado, não se perde quase detalhe algum. Jogo do Narrador. Nem o herói e nem o leitor são capazes de decodificar tão facilmente as questões das quais se valem estes detalhes no mundo.

Como o próprio Marcel Proust afirma em uma de suas correspondências: “me servi de um telescópio para me dar conta das coisas[11]. Logo se percebe que haja uma preocupação real e incessante em cuidar do detalhe que está à distância, em simplesmente deslocar o olhar para cada coisa que na verdade está na obra como a “presentificação”, ou pelo menos, como “representação” de um mundo.

Um detalhe é sempre um estímulo. Ao tratá-lo, o Narrador proustiano se coloca na mesma freqüência que apresenta o comentário de Antonio Candido: “[...] o detalhe em si não interessa. Interessa como estímulo para procurar a sua afinidade com outros, por meio de analogias. Daí a importância da metáfora, mais do que da descrição, porque ela mostra as analogias e vincula uma variedade de pormenores [...]” [12].

O que faz, então, o Narrador é resgatar exatamente toda uma carga impressiva desses detalhes, seu potencial sugestivo e estruturador, para fazer reagir com personagens, ambientes, sensações, procedimentos narrativos, falas, cenas, impressões, lapsos, episódios, etc. Enquanto se lê um livro, poderia se dizer que ele também seja, na articulação das regras do pensamento interno que ele apresenta, um reflexo de todos os outros ambientes das obras que já foram escritas desde o começo do mundo.

Borges prefere entender que esse reflexo é como “um labirinto inesgotável de uma biblioteca mítica onde todos os livros são apenas um, onde cada livro é todos os demais[13]”. Neste sentido, na Recherche, tudo o que compõe a natureza da narrativa literária chega a se ramificar em novas partes, emitir novos reflexos, revelar significados inesperados e, principalmente, condensar novos níveis de compreensão.

Genette compreende que “o modo de existência de uma obra literária é essencialmente temporal, porque o ato de leitura – assim como a execução de uma partitura musical – se constitui de uma sucessão de instantes que termina na duração, em nossa[14] duração”. Notamos, pois que a cada volta, ou seja, a cada leitura significa sempre a presença de um novo livro com um novo detalhe, uma nova Recherche. Proust dá voltas e nelas acaba por nos enredar inclusive.

Os detalhes que sustentam a composição, o “edifício”, são retomados e recriados a cada [re]leitura da obra. Ler tais obras significa apenas e sempre relê-las, é percorrer de forma incessante o livro em todos os seus sentidos, todas as suas pontas, arestas, direções e dimensões. Pode-se, então, dizer que o espaço do livro, bem como o da página, não está submisso passivamente ao tempo da leitura consecutiva, mas à medida que ele se expande plenamente, não cessa de desdobrar e de ser retomado nessa leitura.

Por quais “portas” entraríamos nesta catedral-de-palavras? De que modo leríamos a Recherche? Existiria, atravessado na leitura desta, um modo único de apreender os sentidos desta “Busca” e dos detalhes dela? Será que ao adentrá-la, como é de minha impressão, o leitor conseguiria levar até as últimas conseqüências a aparente proposta do escritor, a de produzir um texto-colateral à sua leitura? Como seria visitar esta obra, ou se render à sua “música”, à sua forma, à sua estrutura, sem cair no seu “tempo enterrado na memória”, nos seus conteúdos marcantes, caracterizadores, limitantes? Tentariam tanto o leitor quanto o pesquisador “inseminar” outros contornos (diferentes dos que já foram aplicados) sobre a espaço-temporalidade e a memória – estes dois grandes campos de discussões que circundam a obra de Proust? Como depurar essa forma e seus movimentos? Como fazer, na re-leitura, ressignificar os detalhes?

A la Recherche du temps perdu exige um outro leitor, não só original, mas originário. E foi nisto que Proust mais insistiu: aquele que deve fazer da leitura da obra também uma tarefa de pensamento. Isto é, em vez de buscar as certezas de conceitos, é convocado e impulsionado a se lançar na desafiante e enigmática aventura do “o-a-se-pensar”. Ler, neste, sentido, não consiste em aprender e repetir um novo vocabulário conceitual como resultado de um aprendizado. Muito pelo contrário. Esse esforço inicial e necessário só se torna leitura verdadeira se buscar na obra os acenos e desafios incessantes do real para se lançar na inaugurabilidade que o real, se dando em pensamento, está sempre exigindo. Então o aprendizado é o passo necessário mas preparatório para o advento da aprendizagem. Os conceitos do aprendizado se tornam comparsas das questões da aprendizagem. Nessa tensão dialética de aprendizado e aprendizagem, de conceitos e questões têm lugar fundamental as imagens-questões. A reflexão maior e constante da obra de Proust gira em torno da questão do ser humano e em torno das questões que o constituem.

Diante das formas, percebe-se que há aquelas que nascem do fluxo pessoal do escritor, que respondem a estruturas íntimas; também são nódulos específicos e singulares. Enfim, se formatam (tomam forma) no próprio sabor dos movimentos da escrita, e acabam fazendo parte-forma das configurações oníricas do nosso imaginário. E, ainda, ao lado de outras formas (de nossas formas), são reutilizadas em nós, leitores, e postas cada vez mais em novos ritmos com outra temporalidade e perspectiva. E aquelas estruturas singulares pertencentes de uma tradição, e que não se multiplicaram, merecem ser levadas como efeitos na leitura, aos seus vários destinos possíveis, podendo dialogar com seu duplo, com seu antagonista, com seu espectro no leitor.

Introjetada compassivamente como uma música nos ouvidos daquele que a ouve, a forma – pela intromissão da leitura – traz um “novo” conteúdo. Ela toca o leitor pelo mesmo processo da música. “Ouvindo” a forma, em um duplo movimento, o leitor da Recherche a ingere e a altera. E este “novo” conteúdo suscitado pela forma-música exige do leitor uma leitura diferente desta própria forma. Há abertamente um enfrentamento. Estabelecem-se outras relações. O novo conteúdo parece compor transversais inexistentes a partir da forma básica, mas ele não consegue apagá-la, não faz desaparecer a forma antiga (desapareceria a fábula, a história, o estilo, não a estrutura, o jogo, o movimento e alguns outros efeitos) com todos os seus atributos.

A forma antiga se torna um dos fantasmas principais, um dos “inconscientes” do texto, talvez o mais próximo, o mais perceptível espiritualmente. Mas essa forma antiga será revista pelas formas pessoais, será reformatada, passará por uma outra configuração, outro teste, outra contestação existencial. É no leitor que esta forma antiga perde sua individualidade para ganhar outra – uma individualidade que não se apodere da forma, ou querendo-a apenas para si.

Talvez para a musicalidade [da leitura] nesta catedral-de-palavras, a forma pareça ser leve, mas é o conteúdo que é carregado demais por uma infinidade de elementos caracterizadores dos temas, detalhes e imagens. Os detalhes, as imagens e os temas fazem parte da existência como elementos sustentadores da forma-conteúdo. São levados a sério pela escritura como dimensões do vivido, do “real” e, até mesmo, do histórico e do relacional. Os detalhes, por sua vez, são lances irremovíveis, são partes de um cenário móvel, mas que não podem perder seus componentes. As imagens e os temas a eles ligados se relativizam e passam a significar em outras situações. Neste ciclo de mutabilidades, há um envelhecimento das coisas, dos sentimentos e das pessoas advindas do próprio texto.

Não se ocultam os desejos diante da criação. Pelo contrário, criamos (escrevendo, pintando, elaborando etc.) através deles. Na literatura, entrando para o mundo-das-palavras e enquanto aguardando muito brevemente pela escritura em pé do lado de fora de um grande pavilhão até que chegue à hora de entrarmos para desfrutar de um jantar, somos atravessados por desejos que nos cercam. E quando adentramos este grande pavilhão da escritura, passamos a porta-vozes destes desejos – é nesse momento que nasce o texto. Não como primeiro traço, mas como ponte entre-o-dentro-e-o-fora do artista. Um inconsciente espirituoso[15] que daí emerge e talvez a forma que vai aos poucos sendo esquadrinhada nos manuscritos são equacionados como memória da escritura junto também de uma lógica emergente.

Mesmo bem orquestrados esses elementos não podem desaparecer, porque contribuem inclusive para o envoltório gasoso do texto, para sua específica magia; mas, numa primeira leitura, eles pesam levemente nas bordas textuais, se tornando cada vez mais evidentes a partir das leituras subseqüentes. Mas tal peso não é compatível com a própria estrutura do texto, com sua volubilidade, com sua especial vaporosidade onírica, com a atmosfera que Proust tanto aprecia e, na busca, acabou “reinventando”. Mas como este peso é alargado muitas vezes, aprofundado, tem a tendência a ser menos considerado nas leituras – ele vai praticamente sumindo com as leituras.

E o que faz o escritor Proust para aflorar a magia que tem seu texto, é capturar com a ponta da escritura nuvens máximas de matéria densa – tal densidade ele passou para o papel e o material etéreo e fugaz ficou colado à palavra. Essa sensação coloca-se ao leitor detalhadamente em forma de imagens. Com os olhos sempre bem fechados, ninguém pode ver o tipo de literatura que se propõe a fazer Marcel Proust: mas também seu mundo não é para quem está sempre de olhos abertos. Essa “literatura” se forma no meio das sombras, no silêncio, na estranha vigilância do sono, no meio dos sonhos sem fim, nas brechas oníricas da vivência. Para a literatura proustiana, não há coisa mais arriscada que o acordar, que a eterna vigilância, que o simples suor cotidiano e a compreensão. Dormindo se pode perder a vida, mas também conquistar a palavra, a imagem, um gesto e o exemplo.

Tudo se inicia com um homem se preparando para dormir. As armas da vigilância constante e os olhos abertos não desarmam os cintos apertados da aparência e do mundo. Os sentidos precisam se desatar; o corpo, se soltar; e os olhos, imaginar rituais para si. No final das contas vemos que Proust batalha na Recherche por uma literatura que não tem olhos: ou pelo menos, no fundo de suas órbitas vazias se [des-]enrolam os fios de uma existência. Ou por outro lado, parece ser uma literatura que está sempre com os olhos bem abertos, e esses olhos bem abertos estão tão cegos porque dormem profundamente. Quem (neste caso o herói Marcel) neles acordar terá os ossos moídos e quebrantados. Durante toda a Busca, a luta e o peso são do acordado (o herói personagem vivente das histórias), mas é o dormindo quem os encontra em todos os seus legítimos efeitos (o narrador).

Voltando os olhos para esta literatura. Como tudo nela é noite de muito sono e olhos bem fechados, e tudo nela dorme, é nela que acorda a vida íntima do mundo do herói – “a única vida digna de ser vivida”. Ali, então, não se pode entender completamente a causa das palavras, mas os sentidos nos atravessam e com os olhos bem fechados da literatura abrimos os nossos. E só abrimos os olhos porque a literatura mantém os seus bem fechados. E os nossos olhos, quando se fecham, é porque os da literatura estão abertos em sua impenetrável noite.

E como são diferentes as noites desta literatura: visões de perigos, de esperas, de perseguições, de falsos testemunhos, de traições, de todas as afrontas que padecemos por amor, por amizades, por fidelidades, por nomes, por empenhos, por ilusões, por traições, por crenças, por lembranças etc. Esta literatura nos abre para um diálogo frente à sua própria ilusão através de um espelho; abre um abismo para explicar o sofrimento que não é visto e que têm suas redes entranhadas perto de nós. Para conhecer as enfermidades daquele que a lê, esta literatura aponta os sonhos do real. Ela sonha coisas tristes e trágicas; ou talvez, também sonhe felicidades e festas. Sonha a vida sem vivê-la, ou pelo menos, a proclama com palavras, com esgotado prazer e estilo.

E diante desta proclamação de coisas através desta literatura, não nos é receitado trabalho algum, ou gramática alguma, que nos conduz simplesmente a aprender a viver a vida como o fariam as literaturas de auto-ajuda. Diferentemente do que pensam muitos, Proust não é auto-ajuda. Mas é uma literatura que cuida do que vai se transformar este herói; ela lembra de tudo o que sonha porque cuida deste sonho como se o vivesse. Os sonhos que se formam na imaginação do real não são outra coisa senão vestígios de nós mesmos no processo de criação e do universo.

Referências Bibliográficas:

BAUDELAIRE, C. Le peintre de la vie moderne in Critique d’art, Pléiade. Paris : Gallimard, Oeuvres complètes, II.

CANDIDO, A. Realidade e Realismo (via Marcel Proust). In: Recortes. São Paulo:Companhia das Letras, 1993.

ECO, U. Lector in fabula. Barcelona:Editorial Lumen, 1999.

DELEUZE, G. Proust et les signes. 2e édition. Paris:Presses universitaires de France, 1970.

Genette, G. "Métonymie chez Proust". in Figures III. Paris: Seuil, 1972. 41-63.

PROUST, M. À la Recherche du temps Perdu Éditions Pléiade. Correspondances à Jacques Rivière. Gallimard, 1987.

RICOEUR, P. Être, essence et substance chez Platon et Aristote. Paris:Centre de Documentation Universitaire, 1962.

WILLEMART, P. Universo da Criação Literária. São Paulo:Edusp, 1993.

Notas:

[1] RICOEUR, P. « Etre, essence et substance chez Platon et Aristote ». Paris : Centre de Documentation Universitaire, 1962.

[2] Termo latino (na expressão completa: explicit liber, “o livro acaba aqui”) para designar a informação de caráter bibliográfico com que alguns textos medievais terminam e que constituem, em regra, uma despedida formal do autor ou do copista. Como no incipit, que abre o texto, o explicit servia também para completar o documento escrito com ornamentos caligráficos, que seriam a marca artística do copista.

[3] Gilles Deleuze. Proust et les signes. 2e édition. Paris : Presses universitaires de France, 1970.

[4] « (...) L'être que je serai après la mort n'a pas plus de raisons de se souvenir de l'homme que je suis depuis ma naissance que ce dernier ne se souvient de ce que j'ai été avant elle (...). » MARCEL PROUST. Sodome et Gomorre: Éditions Pléiade, p. 436. “(...) O ser que serei depois da morte não tem mais razões de se lembrar do homem que sou desde meu nascimento que este último se lembre apenas do que fui antes dela (...).”

[5] “« Tous les jours vont à la mort, le dernier y arrive ». MICHEL DE MONTAIGNE. Livre I, chapitre 20.

[6] Nicolas d’Oresme.

[7] da expressão latina: “Lembra-te que és mortal”.

[8] BAUDELAIRE, C. Le peintre de la vie moderne in Critique d’art, Pléiade, Gallimard, Paris, Oeuvres complètes, II, (p.693).

[9] ou uma imaginação-desejo?

[10] ECO, U. Lector in fabula, Editorial Lúmen, Barcelona, 1999.

[11] Correspondances à Jacques Rivière. Gallimard, 1987. p.12.

[12] CANDIDO, A. Realidade e Realismo (via Marcel Proust) in Recortes São Paulo, Companhia das Letras, 1993, p. 127)

[13] BORGES, J. L. L'art de la poésie, Paris, Gallimard, coll. Arcades.

[14] grifo nosso.

[15] “Na sua vida de pulsões e de desejo, o escritor, para não dizer o artista em geral, particularmente sensível à tradição cultural e ao mundo em que vive, retém de forma singular informações e sensações do passado e do presente. Os elementos detidos nesse filtro particular, formam um entrelaçamento ou nó, que de certo modo bloqueia o desejo do artista e o incomoda. Desse bloqueio ou dessa barreira nascem o primeiro texto e o autor. Não há portanto um primeiro texto escrito em alguma parte e transmitido por uma musa ao escritor atento, mas uma lenta aglutinação de elementos que, depois de algum tempo, devem ser ditos e escritos. Como o neurótico angustiado com seu sintoma recorre ao psicanalista, assim o escritor, querendo livrar-se dessa placa retida, começa suas campanhas de redações, não impelindo, mas atraído pelo desejo” – WILLEMART, P. Universo da Criação Literária. São Paulo, Edusp, 1993, p.92.

 

Revista Digital Art& - ISSN 1806-2962 - Ano V - Número 07 - Abril de 2007 - Webmaster - Todos os Direitos Reservados

OBS: Os textos publicados na Revista Art& só podem ser reproduzidos com autorização POR ESCRITO dos editores.