voltar ao menu de textos

Aula de Teatro é Teatro?
Autora:
Cleusa Joceleia Machado[1]- celeia@cap.ufrj.br

Resumo: Muitas das discussões no campo do ensino da Arte procuram refletir sobre a natureza do processo de ensino-aprendizagem artístico. A questão que se coloca é se ou quando a experiência estética na sala de aula pode ser qualificada como fenômeno artístico. Mais especificamente, em uma aula de Teatro, os exercícios dos alunos podem ser qualificados como ato teatral? Por quê? 

Palavras-chave: Aula de teatro, teatro, ensino de arte.

Résumé: Beaucoup de discussions autour du champs de l'enseignement de l'art soulèvent une réflexion sur la nature du processus enseignement-apprentissage artistique. La question qui se pose est donc celle de savoir "si" ou/et "quand" l'expérience esthétique dans la salle de classe peut être qualifiée de phénomène artistique. Plus spécifiquement, les exercices executés par les élèves dans un contexte de salle de classe peuvent-ils être envisagés comme actes théâtraux? Pourquoi?

Mots clés : classe de théâtre,  théâtre , enseignement de l'art.

Nas últimas décadas, tem-se apresentado uma nova abordagem para o ensino artístico, a qual procura delimitar um corpo próprio de conteúdos para as disciplinas relacionadas à Arte. A finalidade é que seja reconhecido, no elenco das matérias escolares, esse ensino artístico como campo de conhecimento de contribuição única e diferenciada para a formação do indivíduo e, portanto, respaldado por uma prática pedagógica específica. Nesta perspectiva, a Arte apresenta-se como disciplina autônoma, com um fim em si mesmo, e não qual instrumento ou ferramenta de outras disciplinas. Recusa-se, esta Linguagem, a ser mero coadjuvante no ensino de quaisquer outros conhecimentos ou suporte no desenvolvimento de habilidades alheias ao seu próprio processo de ensino, tais como desenvolver a sociabilidade e a coordenação motora ou ainda auxiliar na alfabetização e na compreensão de conteúdos de língua portuguesa, história, inglês, ciências e assim por diante.

Este movimento é visível em diferentes propostas de Arte-Educação, em diversas partes do mundo. No Brasil, por exemplo, os PCN relativos ao Ensino Médio estabelecem três conjuntos de competências e habilidades a serem desenvolvidas no ensino de Arte: a representação e comunicação, que correspondem ao fazer artístico; a investigação e compreensão, referentes à apreciação e crítica de Arte – que por sua vez, estão ligadas à análise estética – e, ainda, a contextualização sociocultural, equivalente à compreensão da História da Arte.

O que se pode observar é que o ensino de Arte, nesse ponto de vista, pretende reunir à função formativa do ensino artístico um caráter epistemológico. Além do objetivo de promover uma experiência expressiva e propiciar noções básicas da linguagem, vem reivindicando para si a atribuição de investigar a natureza do fenômeno artístico-estético, como ele acontece e se produz, sistematizando suas relações. Portanto, embutida neste debate, encontra-se uma investigação sobre o ato artístico. Paira uma questão sobre quais as condições que tornam um fenômeno qualquer, seja som, linha, movimento, ação ou palavra, em evento artístico. Nesse aspecto, não interessa questionar se o aluno é ou não um artista ou determinar o valor artístico da criação na sala de aula. Também não se pretende discutir sobre a existência ou não de um fazer artístico próprio do artista e de um fazer artístico-pedagógico ou os elementos que os aproximam e os distinguem. Portanto, trata-se de refletir sobre a existência do fato teatral na sala de aula. Ou seja, fazer um levantamento sobre as condições básicas da teatralidade, e procurá-las nas dinâmicas com os alunos para assinalar que potencialmente a aula de teatro é Teatro. Esta reflexão será conduzida a partir dos conceitos elaborados por Jacob Guinsburg (2001).

A condição primeira para um gesto ou uma situação estar assinalada pela substantividade teatral é a intenção de ser Teatro. Guinsburg estabelece que a marca fundamental do fenômeno teatral seja a intencionalidade. A intenção é o princípio gerador do fenômeno teatral, pois este é uma obra, realizada a partir de um propósito, de uma deliberação ou de uma vontade. Consequentemente, o ato teatral não é aleatório nem é um mero fazer. Esclarece que, apesar de muitas circunstâncias na vida terem qualidades teatrais, como uma briga, uma gafe ou um tropeção, não se caracterizam como Teatro, pois estão desprovidas de um projeto de suspender o fluxo da vida civil e produzir um parecer ser. Neste caso, o termo teatral atribui ao gesto uma natureza adjetiva e não substantiva.

Em uma aula regular de Teatro, há exercícios de improvisação, jogos teatrais, jogos dramáticos ou trabalhos que envolvem o uso do corpo, como consciência corporal ou movimento expressivo. Em todas estas situações, está explícito o propósito de instituir, temporariamente, um espaço em que não seja a vida real, onde seja possível, ao estudante, produzir uma outra realidade e assumir outras personalidades. Por exemplo, em atividade conhecida de Viola Spolin (1982)[2] em que um grupo de alunos recebe o nome de um jogo que terão de representar com uma bola imaginária. Embora todos estejam na sala de aula, os alunos devem escolher movimentos que os façam deslocar-se, gesticular, comunicar-se, enfim, agir como se eles estivessem em um campo com uma bola real. Durante o exercício, os integrantes da aula estabelecem que a sala possa vir a ser como uma quadra de futebol, basquete ou o jogo que seja.

Mesmo nas atividades corporais, o aluno deliberadamente compõe um outro espaço e uma outra forma de estar no mundo, assumindo gestos e movimentos que não são do seu cotidiano. Isto pode acontecer em uma dinâmica simples como movimentar-se pela sala, utilizando diferentes partes do corpo e níveis espaciais ou em exercícios mais complexos como em duplas, quando um integrante toca delicadamente com a ponta do dedo indicador o outro, o qual se encontra de olhos fechados.

Porém, não basta a intencionalidade. O evento teatral é o encontro de alguém que assume um papel e comunica algo e outro que aceita e assiste. Guinsburg (op.cit.) aponta a existência do texto, do ator e do público como os elementos fundamentais para constituir o ato teatral. Para o autor, estes elementos constituem um sistema aberto, sujeito aos diversos enfoques e combinações. A respeito do texto, reconhece como material textual todo um conjunto de elementos, aos quais é atribuído um significado e, portanto, passíveis de leitura, e não só o que costumamos denominar de texto dramático.  Quanto à figura do ator, compreende a investidura de uma pessoa em atuante por meio de uma relação consentida entre um que assume a concreção de um papel e alguém que o acolhe. Sobre o terceiro elo desta tríade essencial, o público, este se refere à presença de outro – o espectador – pois é somente quando alguém a assiste que a ação teatral se completa e se instaura como tal.

Destacadas a necessidade da presença destas três condições para se estabelecer um evento teatral, quais sejam: o uso do texto, a assunção da máscara (persona) e a presença do público, é preciso encontrá-las no processo de ensino de Teatro.

O Uso do Texto

O sentido de texto aqui empregado é ampliado para todo elemento, passível de leitura, com um desígnio e uma ordem referida; então, podem-se considerar materiais textuais, além da palavra, o gesto, a música, a intenção da fala, os códigos etc.

Em cada uma das dinâmicas evocadas em uma aula de Teatro há um sem número de signos e códigos onde é possível conceber-se um texto. O desenrolar de uma situação, uma forma de andar, a expressão que se procura, a flexão de voz, um determinado gesto ou movimento são elementos que compõem formas de textualização, que muitas vezes falam também e principalmente sobre a história pessoal do aluno, seus valores e sua cultura.

Quando a atividade na aula de Teatro oferece a oportunidade de alguém compor algo para os seus pares, outorga-lhe também um papel de falar de e sobre aquele grupo. Desta forma, aquilo que o estudante acentua de comicidade, os temas que escolhe dar relevância, como elabora a composição gestual dos personagens, entre outras ações, manifestam sua opinião sobre o seu meio e sobre as pessoas que lá estão inseridas. De alguma maneira, o seu modo de vida e o do seu grupo se expressam nas mínimas escolhas das formas com que elabora sua expressão artística.

A Assunção da Máscara

Guinsburg (op. Cit) reporta-se ao ato de assumir a máscara como a ação de corporificar a existência de um que é diferente de si. Assim, o ator afigura-se como tal quando toma para si a tarefa de representar com seu próprio corpo um ser fictício que pode ser um outro indivíduo ou algo como uma idéia, um sentimento, um objeto, um animal ou mesmo um ente fantástico, diverso, em várias características, de como é conhecido.  Disto provém o estabelecimento da ação de interpretar e institui a divisória entre aqueles que atuam e aqueles que assistem.

Esse processo está evidenciado no trabalho de composição dos personagens. Pode ser também compreendido em todos os jogos e exercícios do percurso criativo em que esteja imanente a ação de atribuir corporeidade a um outro por meio do próprio corpo de quem interpreta. Mesmo que na atividade esteja implícito ser quem se é, como nas improvisações corporais, há uma procura de outra forma de apresentar-se, de construir algo de si diferente do cotidiano para alguém, ou seja, um espectador.

A Presença do Público

O espectador é o outro que aceita compartilhar deste mundo em suspensão criado pelo ator e assume a convenção da linha imaginária que institui os atuantes e os observadores.  Neste relacionamento, a rede de sentimentos e reações que se estabelece no momento do encontro atribui o caráter único de cada apresentação. É comum ouvir dos próprios artistas que a encenação só se completa na presença do público.

Na sala de aula, o público é formado pelos alunos que se revezam em atuantes e assistentes. Alternam-se entre as funções dos que atuam e dos que observam. Em ambas, trafegam nas mesmas miríades de relações que percorrem o ator e seu público: admiração, descrédito, interesse, surpresa e curiosidade, entre outros.

Além disso, na sala de aula existe, geralmente, um momento de contribuições na criação de cada um, na forma de críticas e sugestões, ou nas discussões sobre a distância entre o que se tinha intenção de comunicar e o que de fato foi compreendido. Desta forma, além de companheiros de uma viagem sígnica, isto é, de uma experiência tecida em uma linguagem com poder de atribuir sentido que transcende à linguagem verbal, os alunos de uma mesma turma podem vir a ser também participantes e testemunhas do movimento intenso e singular que caracteriza o processo de criação de cada um.

Conclusão

Intencionalidade, texto, personagem e público são as condições fundamentais para o surgimento do Teatro, assinaladas por Guinsburg (op.Cit.). Examinou-se a intenção como ponto de partida do ato teatral e a tríade texto/personagem/público como elementos operacionais necessários para a sua existência.

A partir destes apontamentos, os procedimentos comuns de aulas de Teatro, principalmente da prática da disciplina no Colégio da Aplicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, foram apreciados. E, de fato, verificou-se a presença das quatro condições na grande maioria das atividades teatrais propostas aos alunos.

Parece então admissível afirmar que no espaço escolar faz-se Teatro, tanto na sua forma mais evidente – o espetáculo –, como nos exercícios e atividades pertinentes ao seu ensino. Esta conclusão ratifica um dos pressupostos da Arte-Educação o qual considera que qualquer indivíduo pode produzir Arte, embora nem todos necessariamente se constituam artistas.

Entretanto, é necessário assinalar que cabe ao professor de Teatro oferecer uma experiência na linguagem que articule, discuta e, sobretudo, permita ao aluno descobrir estes princípios imanentes da natureza teatral no próprio exercício da criação.

Referências Bibliográficas

BIASOLI, C.L.A. A formação do professor de arte: do ensaio... à encenação. Campinas: Papirus, 1999.

GUINSBURG, J. Da cena em cena. São Paulo: Perspectiva, 2001.

SANTOS, V.L.B. dos. Brincadeira e conhecimento: do faz-de-conta à representação teatral. Porto Alegre: Mediação, 2002.

SPOLI, V. Improvisação para o teatro. São Paulo: Perspectiva, 1982.

Notas:

[1] Professora de Artes Cênicas do Colégio de Aplicação da UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro e coordenadora do Projeto EncenaAÇÃO. Doutoranda em Artes da UNICAMP. Mestre em Artes pela UNICAMP.

[2] Pesquisadora norte-americana que investigou e sistematizou um método de criação teatral baseado em exercícios improvisacionais.

 

Revista Digital Art& - ISSN 1806-2962 - Ano V - Número 07 - Abril de 2007 - Webmaster - Todos os Direitos Reservados

OBS: Os textos publicados na Revista Art& só podem ser reproduzidos com autorização POR ESCRITO dos editores.