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Diálogos sobre Arte e Ensino: Relação entre Autor-Espectador e Professor-Aluno
Autor:
Silfarlen Junior de Oliveira - silfarlem@gmail.com

Resumo: O texto investiga as possibilidades no ensino da Arte Contemporânea através de questões relativas à produção-recepção do trabalho de arte rebatidas na relação entre professor e aluno. Propõe o Ato Pedagógico em paralelo à relação entre autor-espectador proposta por Marcel Duchamp no Ato Criador. Apresenta reflexões sobre as mudanças que aconteceram a partir da Arte Moderna e seus desdobramentos na Arte Contemporânea, gerando um estudo sobre as características da produção artística, bem como sobre as abordagens pedagógicas aplicadas no ensino da arte.

Palavras-chave: arte; ensino; co-autoria; ato criador; ato pedagógico.

Abstract: This article is an investigation about the possibilities opened up in the teaching of Contemporary Art having as basis the problems related to production-reception of a work of art transferred to the relationship between teacher and student. It proposes a Pedagogic Act as a parallel to the Creative Act, as elaborated by Marcel Duchamp over the relationship between author and spectator. It presents a series of reflections about the changes taken place since Modern Art and its further developments into Contemporary Art, producing an study about the characteristics of artistic production as well as about the pedagogic approaches applied to the teaching of today’s art.

Keywords: art; teaching; co-authorship; creative act; pedagogic act.

Assim como a arte, o ensino da arte também sofreu alterações do ensino acadêmico ao moderno e do moderno ao contemporâneo. De maneira geral, o ensino da arte passou de um modelo baseado na Academia de Belas Artes, ditadura do mestre (mito da habilidade), para o da Arte Moderna, ditadura do aluno (mito da criatividade).[1] Neste sentido, o que está em jogo é o contato entre professor e aluno e como estes podem se relacionar sem excluir o diálogo e o debate, a transmissão e a discordância. Apresentamos aqui a relação autor-espectador em paralelo com a relação professor-aluno, acreditando que, através dessa aproximação, haveria a possibilidade de dissolução dos antagonismos entre tradição e ruptura no ensino da arte, entre proposição (autor) e participação (espectador).  

Primeiro, tomamos como base para a discussão sobre a relação autor-espectador o texto Ato Criador de Marcel Duchamp, no qual a criação artística é dividida em dois pólos distintos e complementares: de um lado o artista do outro o público. Ele afirma:

[...] o ato criador não é executado pelo artista sozinho; o público estabelece o contato entre a obra de arte e o mundo exterior, decifrando e interpretando suas qualidades intrínsecas e, desta forma, acrescenta sua contribuição ao ato criador.[2]

Segundo esta colocação, a obra de arte não está completa até que haja uma participação do público que concretiza o trabalho iniciado pelo artista. O público também é aquele que, após a proposição do artista, estabelece através de sua complementação um diálogo “reprovando” ou “aprovando” o que foi apresentado.

Ao mesmo tempo em que o público participa do Ato Criador completando o que foi proposto pelo artista, também atribui valor através de seu julgamento sobre tal produção. O público passa a ter extrema importância, e responsabilidade, já que seu “papel” não é o de mero contemplador das virtudes e habilidades do artista. Em contrapartida, dividindo o artista a responsabilidade do fazer artístico, através da recepção de seus trabalhos pelos espectadores, sua relação com o próprio fazer é alterada. Assim, há uma substituição da antiga crença do artista como “médium”, conforme denominado por Duchamp, pelo artista como “propositor”. O artista médium é o que acredita estabelecer um canal, que só é possível através dele, entre um mundo transcendental (divino) e o mundo material sensível. Ao darmos ao artista os atributos de um médium, segundo Duchamp, suas “decisões relativas à execução artística do seu trabalho permanecem no domínio da pura intuição e não podem ser objetivadas numa auto-análise, falada ou escrita, ou mesma pensada.”[3]

Quando o artista é propositor e não médium, ele deixa de ser apenas passagem para as intuições “metafísicas”, o que faz com que possamos a partir daí considerar suas decisões como escolhas – conscientes ou mesmo inconscientes, mas escolhas – sobre os rumos de seu trabalho. Mesmo porque se o artista abre mão de tais decisões, servindo apenas de vaso, estaria se eximindo de qualquer responsabilidade sobre o que apresenta e como apresenta: “Faço assim porque minha intuição diz para fazer assim, não tenho domínio sobre isso, sou apenas servo e não senhor”.

Não que o artista tenha total domínio sobre o que faz, que saiba objetivamente descrever sua produção, ou que tenha todas as respostas sobre ela. No entanto, também seria impensável supor que ele não sabe absolutamente nada sobre seu trabalho e que este é apenas fruto de uma subjetividade inexplicável.

Para Duchamp a relação entre objetividade e subjetividade pode ser demonstrada através do que ele chama de coeficiente artístico.[4] Utilizando suas palavras: o ‘coeficiente artístico’ pessoal é como que uma relação aritmética entre o que permanece inexpresso embora intencionado, e o que é expresso não intencionalmente.[5] É do conflito entre o ato intencionado e a realização, entre o que intuímos e o que realizamos, que percebemos o quanto são conscientes e inconscientes, ao mesmo tempo, nossas ações. De qualquer modo, nossos atos inconscientes – por assim dizer, nossa subjetividade – são contaminados por nosso conhecimento e contexto de vida, o que contradiz a suposição de que exista uma subjetividade “livre” que escape, por completo, às determinações culturais e sociais nas quais estamos inseridos.

Portanto, o coeficiente artístico é uma relação que vale tanto para o artista quanto para o público, já que os dois fazem parte do ato criador. Mas há uma diferença entre um e outro com relação à posição que cada um ocupa nessa autoria conjunta, sendo esta diferença a possibilidade de realização da arte.

A diferença, basicamente, é daquele que propõe (artista) para aquele que participa (público). Quando reconhecemos a diferença entre um e outro estamos valorizando a existência dessa parceria para concretizarmos a obra de arte. Quando estamos como artistas ou quando estamos como “público” temos funções diferentes, não sendo funções naturais e nem automáticas;[6] o que significa que, para estarmos, precisamos nos colocar nesse processo como artista ou como público. Isto é, como não há um artista naturalmente artista, também não há público naturalmente público; o que nos leva a crer que tanto um como o outro pode mudar de posição nessa relação. Para tanto, acreditamos no potencial da formação artística –assim como qualquer outra atividade humana, construída e não natural–, e que podemos nos colocar em posição de um ou de outro modo de ser.

Nesse contexto, o artista estabelece um fazer e propõe uma resolução/intenção do autor, e o espectador completa a parceria que não é, nunca foi, determinada pela intenção do artista. De alguma forma a existência dessas duas partes (autor e espectador) é condição fundamental para que o jogo da arte se dê. Como o interesse[7] do público não é, necessariamente, o mesmo do autor, assim também o interesse em “aprender” sobre arte pode variar segundo cada indivíduo, gerando uma relação similar entre professor e aluno.

Feitas estas considerações sobre a produção e a recepção no contexto de apresentação da produção artística contemporânea, partimos da idéia de que o ensino da arte deve fazer convergir suas questões, no caso, a relação professor-aluno, para a idéia de participação através da relação autor-espectador, considerando sempre os interesses de naturezas diversas, dos espectadores, dos artistas, dos professores e dos alunos. Assim um intercâmbio entre estas presenças pode colocar em movimento uma dinâmica entre a manutenção dos valores (conhecimentos) estabelecidos e outros valores adquiridos.

Do mesmo modo, aproximando a relação entre autor e espectador da relação entre  professor e aluno fazemos convergir as características da primeira com uma atuação no ensino da arte pautada pelo mesmo diálogo de co-autoria duchampiana. Assim como na arte faz-se necessário o encontro entre autor e espectador através da obra de arte, no ensino da arte é fundamental a existência tanto do professor quanto do aluno para que se concretize uma experiência de diálogo e aproximação do campo do ensino com o campo da arte.

Do Ato Criador ao Ato Pedagógico

Se nas Belas Artes o artista era o “gênio”, por ser o único detentor das faculdades artísticas (fantasia, talento)[8] e não o dividindo com o público, o professor da Academia agia de igual modo: era o que possuía o conhecimento, cabendo ao aluno apenas executar o que este determinava como necessário para sua aprendizagem, sem que fosse incluída qualquer consideração ou algum tipo de conhecimento prévio do aluno. Na Arte Moderna, com o mito da criatividade, as coisas se invertem e agora é o aluno que não tem nada a aprender com o professor. Desconsiderando qualquer tipo de conhecimento, o que vale é a capacidade “criativa” do aluno. Nessa perspectiva, o artista também, de igual modo, pouco se interessava pela capacidade de estabelecer um diálogo a partir de proposições artísticas: expressar seus sentimentos era o mais importante.

Assim como no Ato Criador de Duchamp é proposta uma alteração na relação entre artista, obra de arte e espectador, no ensino da arte esta mesma alteração pode ser pensada. O artista não é o único criador; o professor não é o único que detém conhecimento; o espectador é participante do trabalho de arte, assim como o aluno não é público passivo e sim participante.

Também, nessa relação, a obra de arte mudou e os ready-mades de Duchamp são prova disso. O aluno não precisa mais fazer cópias de trabalhos de outros artistas para elaborar seu trabalho (conforme propunham as Academias), mas também não terá que apresentar (como na crença moderna), todo o tempo, algo novo a fim de dar sinal de sua criatividade.

Outro aspecto da produção que sofre mudanças a partir deste outro modo de entender a relação entre autor e obra, é o discurso que ganha importância, onde antes era apenas considerado o fazer prático dos objetos de arte. O artista agora pode utilizar meios variados para apresentar seus trabalhos, tais como: o corpo, a voz, ferramentas, pedras, água, em suma: tudo e qualquer coisa. Mais do que, simplesmente, elaborar objetos manualmente, o artista hoje constrói discursos artísticos com coisas diversas, coisas estas acabadas (industriais ou não) ou materiais em estado bruto. Neste sentido, o contexto de apresentação das coisas é de grande importância para entendermos o que está sendo articulado e o que nos está sendo apresentado como arte.

No ensino, assim como na arte, é possível identificarmos uma instituição (aparelho educacional) bem como um campo de conhecimento, que no caso equivale ao contexto de apresentação dos objetos artísticos no âmbito didático educacional. De um lado, a expectativa do ensino é a de transmitir conhecimento a partir de áreas específicas (aqui, a arte), como também de outro “conhecimento” que diz respeito a normas e valores. Assim, em cada tipo de ensino lidamos com um conteúdo que reflete as especificidades de cada campo de conhecimento em questão, mas também, através da relação entre professor e aluno, se estabelece uma troca de “valores” que extrapola a condição de simples transmissão de conteúdos.

Sabemos que o professor, devido, entre outros aspectos, à posição social determinada pelo caráter institucional de sua profissão pedagógica, tem uma grande influência sobre os alunos no que diz respeito aos papéis que cada um exerce em sala de aula. O aluno, em contrapartida, espera do professor condições básicas de organização e conhecimento sobre a disciplina que está ministrando. Tanto um quanto o outro estão sobre o domínio das relações sociais (em geral) e da comunidade (local) que estão inseridos. Esta circunstância desenvolve, respectivamente em cada um, o que Maria Isabel da Cunha chama de jogo de expectativas relacionadas ao respectivo desempenho.[9] Isso nos leva a acreditar –mesmo sabendo da existência da afetividade (empatia) que se estabelece entre professor e aluno, como também acontece em outros segmentos da vida devido a vários tipos de afinidades– que as instituições exercem padrões prévios de condutas que interferem no resultado da aprendizagem e no controle das relações entre professor e aluno. Podemos supor então que não existe neutralidade da instituição, assim como também não há neutralidade do professor e nem do aluno.

Nas escolas de Belas Artes, do passado, existia um projeto pedagógico vigente e existiam professores e alunos que acreditavam nele. Se hoje o ensino da arte e a instituição acadêmica não são as mesmas do passado, isto significa que os valores tradicionais de troca entre professor e aluno também mudaram. A história da instituição influi nos valores transmitidos e compartilhados entre os professores e alunos. Logo, a relação entre ambos extrapola o simples ensinar conteúdos e envolve uma absorção de idéias e valores que caminham numa dupla via de transmissão e contestação das condições previamente estabelecidas no âmbito da cultura vigente.

De igual modo, se a produção contemporânea, da arte, não está baseada em procedimentos práticos e nem na especificidade do meio, é de se supor que a instituição de ensino irá basear-se, ou deveria, em questões outras, para além destes procedimentos colocados como pertinentes de serem transmitidos como evidências de um processo artístico.

No momento contemporâneo, apresenta-se, como diria Ricardo Basbaum, “a possibilidade de simultaneidade entre práticas de visibilidade e práticas de enunciação[10]; de modo que os artistas tendem a concentrar suas produções no limite entre apresentação e reflexão.  Estas são as evidências que, de alguma maneira, constituem o momento histórico atual.

Tais evidências, historicamente constituídas no tempo e no espaço, são testadas no ensino pelo duplo transmissão/contestação formado pela relação professor-aluno. Do diálogo, e ao mesmo tempo do embate, dessas posições no ensino da arte espelhadas na relação autor-espectador é que desenvolveremos o que vou chamar de Ato Pedagógico, a partir do Ato Criador de Duchamp.

O “ato pedagógico” não é elaborado unicamente pelo professor: existe do outro lado o aluno, que, consciente ou inconscientemente, através de sua participação, contribui com as aulas, acrescentando ao processo de transmissão suas experiências. Com o “ato pedagógico” o professor propõe e o aluno completa. Na ação didática isto é possível num ambiente que privilegia o encontro entre posições diferentes, onde nem sempre há concordância. O diálogo prevê o conflito. Segundo Isabel da Cunha: “produzir conhecimentos significa colocar os sujeitos da aprendizagem numa perspectiva de indagação que leve ao estudo e a reflexão.”[11]

O ensino é uma forma de intervenção no mundo, como também a produção artística, não se limitando à simples transmissão/absorção de conteúdos que seriam bem ou mal ensinados. O professor quando se limita, em sua prática pedagógica, a transmitir conteúdos, segundo Paulo Freire, só contribuí para a reprodução da ideologia dominante,[12] impedindo a contradição e a participação do aluno.

No processo de aprendizagem produzido entre professor e aluno, o “ato pedagógico” põem em movimento a dinâmica de reação entre valores estabelecidos e valores contestados, acrescentando nessa relação a possibilidade dupla de transmissão da tradição e, ao mesmo tempo, sua reflexão e contestação. Entendamos contestação não como negação, mas como complementação: o professor e o aluno promovem um diálogo possibilitado pela reflexão crítica onde valores determinados são contrapostos aos outros valores indeterminados.

Somos condicionados e condicionantes, disso não podemos duvidar, mas existe uma diferença entre sermos condicionados e sermos conscientes do inacabado. Para Paulo Freire esta á a diferença profunda entre o ser condicionado e o ser determinado[13]: ao mesmo tempo em que somos condicionados, determinados historicamente, escapamos a essas determinações quando tomamos consciência do inacabado, daquilo que escapa às determinações históricas e pessoais.

Quanto a isso, tomamos emprestado o coeficiente artístico de Duchamp para definir o “coeficiente pedagógico”. Relembrando, o coeficiente artístico é a relação aritmética entre o que permanece inexpresso, embora intencionado, e o que é expresso e não intencionado.  No “ato pedagógico” o professor propõe uma ação e o aluno participa completando essa ação; nem o professor tem consciência (controle) de tudo que é comunicado (expresso e não intencionado) como também não o tem sobre o quê não foi dito (inexpresso embora intencionado). Assim, por essa mesma lógica, o aluno atua sobre o coeficiente pedagógico completando o ensino com sua ação.

O professor, mesmo preparado para lidar com as demandas distintas em sala de aula, não saberá responder a todas as questões (como também o artista não tem todas as respostas sobre seu trabalho). Sabemos que é de grande importância para a prática pedagógica preparar os conteúdos que serão comunicados em sala de aula, mas o ensino acontece de fato quando é criado entre professores e alunos um ambiente de diálogo que possibilita a transmissão/contestação de conteúdos apresentados. Segundo Gilles Deleuze “criar foi sempre coisa distinta de comunicar” e “o importante talvez venha a ser criar vacúolos de não-comunicação, interruptores, para escapar ao controle[14]. A participação do público-aluno e do autor-professor se dá entre vacúolos de comunicação. O diálogo proposto não é como a comunicação instantânea, transparente, como um túnel direto entre eu e o outro, sem objeções, dando passagem para o proposto e o executado, entre a intenção e a recepção, entre professor e aluno.

Ao invés da prática pedagógica se constituir apenas como uma orientação didática, ela se constituiria também, ao mesmo tempo, de uma desorientação didática[15], visando engendrar lapsos de consciência que permitiriam um processo de subjetivação que pudesse escapar tanto aos saberes constituídos como aos poderes dominantes. Mesmo que, segundo Deleuze, logo em seguida eles viessem a engendrar “novos poderes ou tornam a integrar novos saberes.” [16]

Toda sociedade, assim como a arte, baseia-se em um conhecimento constituído, mesmo que inadvertidamente, uma formação de saber. A subjetividade atua sobre os saberes escapando a eles, mas só atua sobre eles tomando consciência de sua existência. Não temos subjetividades que não possam ser disponibilizadas pela incompatibilidade do contato (transmissão) de saberes e poderes. Porque senão, de que serviria a subjetividade se não pudéssemos compartilhá-la? Se for só para dizer que somos “humanos”, “sensíveis” e “livres”, isto não basta. Temos que acreditar no mundo, no contato e nas trocas. Sendo assim, produzir conhecimento é colocar o sujeito em uma perspectiva de indagação que leve à reflexão, propiciando tanto a comunicação de conteúdos, quanto o embate pelo diálogo, no nosso caso indicado pelo coeficiente artístico e pelo “coeficiente pedagógico”, entre propositores e participantes.

Logo, como nos descreve Freire: “ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua produção ou a sua construção.”[17]  Isto é, na relação professor-aluno, temos a possibilidade de proporcionar um “colocar-se em posição de aprender.[18]

Na relação aqui e agora do “ato pedagógico”, todos – eu e o outro, autor e espectador, professor e aluno – se colocam em posição de aprender e tal circunstância só se estabelece no momento em que está acontecendo. Assim sendo, não temos como dizer a priori, como um método objetivamente eficiente, se o “ato pedagógico” nos dará sinais claros de sua competência. O que podemos supor é que ele nos serve para indicar a possibilidade de trocas pelo contato entre sujeitos dentro de uma relação que aproxima o ser da arte com o ser do ensino.      

Nesta perspectiva, a participação é de fundamental importância. Sem definir uma participação ideal, indicamos a necessidade de haver uma parceria, onde a relação professor-aluno gere um “coeficiente pedagógico” ativo, e no “aqui agora”, rebatido sobre as condições artísticas e históricas alicerçadas, reinventando o presente e procurando o espaço intermediário entre uma história do mesmo (comum a uma cultura) e uma história do outro (estranho a uma cultura).[19]

 Para tanto, não precisamos transformar a sociedade em arte (arte social)[20], mas repensar, a cada momento, as estruturas que são agenciadas por cada área do conhecimento, inclusive estas da arte e seu ensino. Mesmo porque, quando a arte se transforma, ou quando contribuímos nesse processo crítico de pensar a arte, estamos direta ou indiretamente transformando a sociedade, sem, no entanto, abrirmos mão de nos constituirmos como perspectiva de conhecimento que olha o mundo a partir do que somos condicionados.

Neste sentido, estamos propondo um re-enquadramento do quadro do ensino através do quadro da arte, que já não é ou não são os mesmos do passado. São, como diria Hélio Oiticica, antiquadros[21] que se situam no domínio das proposições coletivas.

O antiquadro do ensino da arte não é a destruição da sala de aula como espaço físico, nem do quadro (lousa): é a transformação deste ambiente em lugar discursivo, estimulador de práticas e reflexões artísticas no âmbito geral dos processos cognitivos e subjetivos da arte, onde se resiste aos esquemas condicionantes, isto é, esquemas pré-determinados.

Se perguntassem neste ponto o que a arte pode nos ensinar, responderia: a arte não pode nos ensinar, somos nós que podemos aprender com ela. A posição política, sobre a qual gostaria de refletir, tem a ver com acreditar no mundo, e segundo Deleuze, “acreditar no mundo significa principalmente suscitar acontecimentos, mesmo pequenos, que escapem ao controle, ou engendrar novos espaços – tempos, mesmo de superfície ou volumes reduzidos[22].

Acreditando no potencial de pequenas ações geradas a partir da arte –seja através do ensino, seja através da apresentação de discursos artísticos que, sob o signo deste campo, tornam-se possíveis–, podemos: agenciar encontros, eu e outro; discutir o mundo sem querer ser o mundo, mas fazendo parte do mundo; discutir outros tantos conhecimentos que estão aí para serem reconhecidos e inter-cambiados, compreendidos e negados.

Concomitantemente, é requisitada uma parceria, breve ou duradoura, neste aqui e agora ao mesmo tempo histórico e instantâneo; uma relação complementar e paralela entre autor e espectador e professor e aluno no ensino da arte; uma autoria conjunta; e também uma ação pedagógica conjunta, derivada dos encontros estabelecidos entre o aluno e professor.

Referências Bibliográficas

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Notas:

[1]  Sobre outros aspectos do modelo de ensino na academia tradicional, no modernismo e na contemporaneidade, ver: DE DUVE, Thierry. “Quando a forma se transformou em atitude – e além”. In: FERREIRA, G.; VENÂNCIO FILHO, P. (ed.). Arte & Ensaios, n. 10. Rio de Janeiro: Mestrado em História da Arte/Escola de Belas Artes, UFRJ, 2003, p. 93-105.
[2] DUCHAMP, Marcel. “O Ato Criador”. In: BATTCOK, G. (org.). A nova arte. São Paulo: Perspectiva. 1975, p. 83.
[3] DUCHAMP, ibid., p. 72.
[4] Ibid., p.73.
[5] Ibid., p.73.
[6] Para Hegel a criação artística é constituída através da naturalidade do artista: “Esta criação artística, a arte em geral, tem, pois, uma parte direta e natural que não é obra do próprio sujeito, pois já ele a encontra pré-formada em si mesmo. Neste sentido se poderá falar da identidade do talento gênio”. HEGEL, F.G.W. “Trecho das preleções sobre a estética”. In: Estética: a idéia e o ideal. Trad. Orlando Vitorino. São Paulo: Nova Cultural, col. Os Pensadores 1996, p. 276.
[7] Sobre o interesse, relação ética do trabalho (ficção) com seu visitante ver o texto “Projeto Urubu na Ilha do Fundão” capitulo interesse. RIBEIRO, G.B. “Projeto Urubu”. In: FERREIRA, G., VENÂNCIO FILHO, P. (org.). Arte & Ensaios, n. 10. Rio de Janeiro: Mestrado em História da Arte/Escola de Belas Artes, UFRJ, 2002, p. 43-44.

[8] Sobre as características do gênio artístico: “Quanto ao poder geral da criação artística, uma vez ele admitido, logo se deve ver na imaginação a faculdade artística mais importante.” In: HEGEL, op. cit., p. 274.
[9] CUNHA, M.I. “A relação professor aluno”. In: VEIGA, I. (cord.). Repensando a didática. Campinas:Papirus, 1994, p. 149.
[10] BASBAUM, R. “Migração das Palavras para a Imagem”. Gávea, Revista de História da Arte e Arquitetura, Rio de Janeiro: vol. 13, nº. 13, setembro, 1995, p.385.
[11] CUNHA, op. cit., p. 154.
[12] FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à pratica educativa. São Paulo:Paz e Terra, 1996 (coleção leitura), p. 98.
[13] Ibid., p. 53.
[14] DELEUZE, G. Conversações. Gilles Deleuze; tradução de Peter Pál Pelbart. São Paulo:Ed.34. 1992, p. 217.
[15] CALDAS JR, W. “Prefácio”. In: Manual da ciência popular. Texto de Paulo Venâncio Filho e Waltercio Caldas Jr. Rio de Janeiro:Funarte, 1982.
[16] DELEUZE, op. cit., p. 218.
[17] FREIRE, op. cit., p. 22.
[18] HEIDEGGER, M. Da experiência do pensar. Porto Alegre: Globo, 1969.
[19] FOUCAULT, M. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. Michael Foucault; tradução Salma Tannus Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 1999. (coleção tópicos), p.16.
[20] Segundo Joseph Beuys, “toda a sociedade tem de ser transformada numa obra de arte”. Esta seria sua idéia de “Arte social como conceito ampliado da arte.” BEUYS, 1984 apud VALLE, E. “Entrevista com Joseph Beuys”, In: VALLE, E. Catálogo Tempo-cor. Rio de Janeiro: Museu Nacional de Belas Artes Galeria do Século XXI, 2002, p. 16.
[21]OITICICA, H. “Esquema geral da Nova Objetividade” in Aspiro ao Grande Labirinto. Rio de Janeiro: Rocco, 1986, p. 86.
[22] DELEUZE, op. cit., p. 218.

 

Agradecimentos

Professor orientador Ricardo Maurício Gonzaga

Gisele Ribeiro

 

 

Revista Digital Art& - ISSN 1806-2962 - Ano V - Número 07 - Abril de 2007 - Webmaster - Todos os Direitos Reservados

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