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Doces Ornatos: Uma Análise do Feminino Presente nas Obras de William Shakespeare
Autor:
Igor Alexandre Capelatto – adorocine@yahoo.com.br

Resumo: Através das personagens femininas Lady Anne da peça Ricardo III, Desdemona da peça Othelo, Lady Macbeth da peça Macbeth e Lavínia da peça Tito Andrônico, este estudo procura analisar o feminino presente na obra do dramaturgo inglês William Shakespeare (1564 – 1616). Além de um breve ensaio sobre a relação do dramaturgo com a realidade feminina de sua época, esta pesquisa procura compreender a presença feminina nas peças de Shakespeare e a importância dela para a existência das peças em questão e das ações das demais personagens, mostrando o amplo e intenso conhecimento que Shakespeare tinha sobre a essência humana, principalmente a essência feminina.

Palavras-Chave: William Shakespeare; Feminino.

Abstract: Through the female characters Lady Anne from the play Richard III, Desdemona from the play Othello, Lady Macbeth from the play Macbeth and Lavinia from the play Titus, this study try to analyze the feminism present at the work of englishman playwright William Shakespeare (1564 – 1616). Besides the short essay about the relation between the playwright and the female reality at his time, this research try to understand the female presence at Shakespeare’s plays and her significance to the existence of this plays and the actions of the others characters, showing the wide and intense knowledge that Shakespeare had about the human essence, specially the female essence.

Palavras-Chave: William Shakespeare; female.

Objetivos:

Este trabalho tem como objetivo analisar a importância da figura feminina na obra de William Shakespeare, mostrando, através de algumas personagens, como o dramaturgo contribuiu e contribui por meio de suas peças para a formação humana e principalmente para a compreensão dos valores femininos.

William Shakespeare e a sua relação com o feminino

Incomodar o princípio da existência humana e subjugar os valores impostos por paradigmas dogmáticos sejam eles religiosos ou políticos, estabelece uma função introspectiva no texto shakespeariano. A pressuposição de que o homem há e sempre haverá como uma essência em constante transformação e que talvez, jamais, alcance um ápice máximo – considerando assim, a teoria hegeliana de que apenas Deus é Absoluto[1] – nos remete ao ensaio de Harold Bloom de que “em Shakespeare, os personagens não se revelam, mas se desenvolvem, e o fazem porque têm a capacidade de se auto-recriarem” (BLOOM - 2000 p.19). Com esta colocação, podemos introduzir o dramaturgo inglês William Shakespeare (1564 – 1616) como proposto para o analítico estudo em torno do ser humano. O homem jamais poderá dizer quem é, pois jamais saberá (cabe aqui a teoria hegeliana de que o homem talvez nunca tenha a resposta para ‘de onde viemos, para onde vamos’), porém pode se desenvolver ganhando novos paradigmas e características desde que “não se desenvolva por inteiro, o que é de impossibilidade ao ser humano”. Na concepção do contexto sócio-político de sua época, não competia a Shakespeare criticar o poder de uma classe autoritária, os princípios religiosos e todos as demais doutrinas impostas sobre a sociedade. Para alimentar sua inquietação e colocar seus desejos, indagações e pensamentos para com o público (nota: no teatro elisabetano, todas as classes sociais estavam presentes na platéia), William Shakespeare recorre às mensagens não diretas em seus textos, recobrindo com conotações, as figuras subjetivas presentes em suas peças.

Além disso, no sentido de incomodar os princípios de sua época, Shakespeare confronta as relações entre homem e mulher. Neste confronto, é muito intensa a presença do feminino, talvez como uma crítica a certo ‘imperialismo machista’, que se torna atemporal, considerando que até os dias atuais ainda este ‘machismo’ continua presente. Apesar do regime elisabetano, ou seja, uma monarquia nas mãos femininas, muitas posições na sociedade inglesa só eram permitidas aos homens. Neste panorama, observamos em suas peças, como Shakespeare alça a mulher como personagem principal para que a trama possa ocorrer.

Através de uma análise da psicologia, podemos notar que os princípios anima e animus estão interligados e necessitam um do outro para que cada um deles possa então existir por si só e para coexistirem como uma necessidade única. Anima é, segundo Jung (Tipos Psicológicos, 1991), o arquétipo feminino no homem e animus, o arquétipo masculino na mulher. Shakespeare talvez tivesse sua anima numa intensidade tão elevada que talvez ele escrevesse suas peças numa perspectiva feminina. Em Ricardo III, por exemplo, observamos que Ricardo precisa conquistar Lady Anne para atingir seus desejos, suas ambições. Se Lady Anne não estivesse presente na trama, Ricardo não teria uma mulher ao seu lado e não realizaria assim seu objetivo. A personagem feminina precisa ter certas características; ela precisa ser conquistada pela ‘galanteada’ de Ricardo. É preciso que a essência feminina seja muito bem compreendida para que possa se aprofundar e revelar o caráter mais real que uma mulher apresentaria numa situação como esta; é preciso conhecer o que se passa na mente e no coração desta mulher. E Shakespeare conhece muito bem. 

Anima e animus dependem um do outro. Lady Anne depende (não para existir, mas para continuar numa classe elitizada) de Ricardo e Ricardo de Lady Anne para alcançar seu objetivo. Animus é intenso no pano principal das tramas do dramaturgo inglês. Todavia, na sua maioria, senão em todas, as peças de Shakespeare colocam o feminino como o responsável pelo clímax [2] da trama. É Lady Macbeth que vai persuadir Macbeth para cometer um assassinato. É Ofélia que gera, em certa perspectiva, a loucura de Hamlet.

Apesar de o feminino ser a causa ‘avassaladora’ das tramas shakespearianas, o autor para com as doutrinas da sociedade, mantinha o nome da personagem central masculina como título da peça. Mas podemos dizer que a peça Ricardo III deveria ser na verdade uma peça intitulada Lady Anne, que Macbeth deveria ser Lady Macbeth, que Hamlet deveria ser Ofélia (apesar de outras personagens femininas terem maiores participações nesta peça) e assim por diante. 

No contexto desta análise do feminino, vale ressaltar que Shakespeare escrevia sobre um regime de censura da Rainha Elizabeth, uma vez que ela encomendava seus textos. Por este motivo, Shakespeare não poderia levar a mulher a uma posição crítica. A mulher tinha que se revelar inocente, prisioneira do ‘machismo’ (motivo que levaria as suas personagens a lutarem por suas posições na sociedade), ou talvez, como gostariam de ser, ‘dominadoras’, regentes do poder político. Uma sociedade que aceita uma mulher como governante, mas que ao mesmo tempo continua sobre o regime do poder dos homens. Esta era a sociedade em que Shakespeare vivia. Mas ele não podia demonstrar claramente esta ambigüidade em suas peças. Como então apresentar tal situação? Eis então que surge Lady Macbeth. A loucura da mulher é toda uma analogia à loucura de um povo que transbordava na incoerência de manter uma mulher no poder, mas não aceitar as mulheres em determinadas posições na sociedade.

Ainda com Lady Macbeth podemos analisar que o poder de domínio dela perante o marido é uma crítica ao poder da Rainha sobre as inquietações de William Shakespeare, tanto que, para não acusar diretamente a família monárquica, ele somente escreve Henrique VIII após a morte da Rainha Elizabeth [3].

Harold Bloom ressalta e reafirma que as colocações ao posicionamento feminista são constantes nas peças de Shakespeare e oferece destaque para o que talvez venha a ser a colocação mais intensa realizada pelo dramaturgo: “o sofrimento da infeliz Lavínia (em Tito Andrônico), filha de Tito que é estuprada e mutilada, atesta a opressão da mulher na sociedade patriarca" (BLOOM - 2000 cap.7).

Apesar de anima também depender de animus, é animus quem mais depende do seu contraposto, nas peças shakespearianas. De certo que nenhum homem, talvez, fosse capaz de conquistar Lady Anne, como faz Ricardo III, mas este somente consegue isto graças à figura representada pela personagem Lady Anne[4]. Porém, Lady Anne pode continuar sua vida sem a presença de Ricardo. Ele, todavia, precisa conquistá-la para poder dar continuidade em seus planos. Desdemona poderia estar casada com outro homem, mas que mulher protegeria o marido, mesmo sabendo que ele que a matou[5]? Por isso, Othelo precisa dela para continuar.

“Lady Macbeth, personagem de William Shakespeare em Macbeth, é pensada, via de regra, como uma coadjuvante da trama onde o súdito, Macbeth, se torna conde e assassina o rei para obter-lhe a coroa. Até o fato de Lady levar o nome do marido, ser a Senhora Macbeth, pode ser pensada como uma prova de seu papel secundário, ela seria apenas a esposa de Macbeth. Mas Shakespeare pode também ter dado a ela uma outra parte de Macbeth, ambos se complementando, e a parte que fica para esta senhora não é simplesmente o da Eva que oferece a maçã em forma de punhal ao Adão Macbeth. Lady Macbeth é, sem dúvida, uma personagem poderosa, a força que cria a ação trágica da peça” (ALVES, 2004).

Conforme observamos, Shakespeare apresentava uma crítica ao machismo. Esta crítica vinha através de suas personagens, mostrando para os homens, e de certa forma, ressalta Bloom, para ele próprio, como o homem deveria ser, como deveria se relacionar com as mulheres, enfatizando características como poder, dominação, desrespeito, o fato de o homem tratar a mulher como simples objeto de prazer.

O feminismo entra em contraponto nesta análise, segundo Alves, para reforçar que a mulher pode ter certa posição na sociedade, que ela pode ter o poder, que ela pode ser autoritária. De fato que, Shakespeare viveu em uma sociedade cujo poder estava centrado na mão de uma mulher, a Rainha Elizabeth, mas como nos lembra Alves, a rainha era uma figura eternizada, uma figura iconizada que por sua vez, perdia as características de mulher, sendo a ela atribuída apenas a imagem de governante.

Lady Macbeth é um exemplo de uma mulher que demonstra não ser um objeto nas mãos de um homem, e nesta crítica ao machismo, Shakespeare enfatiza nela, o feminismo. Ela é quem manda no homem, que o domina e que tem o poder em suas mãos. Toda ação da peça regida pelo Macbeth só acontece por ordens de Lady Macbeth a quem ele, um general de alto poder e bravura, se submete a obedecer.

Desdemona, Lady Macbeth e Lavínia: Três Diferentes Femininos Presentes tão Intensamente nas Peças de William Shakespeare

Quem é Desdemona? Seria ela a alma destruidora que carcome Othelo, ou seria ela a inocência que é corrompida? Talvez ambos. William Shakespeare vai ressaltar uma característica até então não trabalhada em suas personagens femininas. Desdemona[6] vai ser a primeira mulher shakespeariana a apresentar a coragem, mais tarde ressaltada em Lady Macbeth. Este sentimento e impulso está presente tanto nos homens quanto nas mulheres. Mas o que difere ele na essência feminina? Shakespeare mergulha num íntimo impressionante e coloca a mulher enfrentando os próprios medos e bloqueios e confrontando face-a-face o homem. ‘Uma coragem que homem algum jamais teria’.

Desdemona mostra-se à frente de sua época e a frente dos homens. Ela enfrenta Othelo, quando este vai matá-la. Ela confronta outras personagens e se sobrepõe. E, talvez a cena mais importante neste contexto seja a cena em que ela retorna a falar [7], em um último suspiro e depois volta a dormir em seu sono eterno. Mas o que nos aprisiona a atenção é ainda mais intenso. Mesmo sabendo que o marido a matou, ela ainda assim tem a coragem de protegê-lo e afirma, antes de morrer definitivamente, que não foi ele quem a matou. É preciso muita coragem para perdoar seu próprio assassino. A essência feminina tem esta força.

Atormentado pela essência feminina e sua força sobre o homem, Shakespeare retorna os preceitos de anima e animus e vai além, sendo o precursor da teoria sobre as sombras, que depois viria a ser estudada por Jung. Como em suas outras peças ele investiga o íntimo do ser humano. Em Macbeth, ele fala destas sombras (nas pessoas). Para Jung, a sombra é o centro do inconsciente pessoal, o núcleo do material que foi reprimido da consciência. A sombra inclui aquelas tendências, desejos, memórias e experiências que são rejeitadas pelo indivíduo como incompatíveis com a persona e contrárias aos padrões e ideais sociais. Shakespeare coloca de maneira genial a sombra de Macbeth[8]: sua mulher que aflora os desejos e tendências e o próprio rei que é a sombra em si.

O homem só é, nos textos de Shakespeare, pois tem consigo a sua sombra, que na sua maioria, é a mulher. A sombra de Macbeth é Lady Macbeth e toda a coragem e determinação dela representam seu desejo reprimido. Matando o rei ele mata uma parte de si próprio, destrói o reinado. Elevando sua sombra ele não consegue lidar com a culpa e não consegue usufruir o poder pelo qual ele até matou. Tudo porque Macbeth se projeta no rei [9]. Mas quem o eleva acima deste rei e o faz ser quem ele tanto almeja é Lady Macbeth. Lady Macbeth vai intencionar a coragem feminina. Esta coragem é construída desta forma, por Shakespeare que confronta assim a submissão da mulher perante o homem, em sua época. A coragem de Desdemona passa agora a tomar ação, sai da palavra e do confronto e ganha ‘garras’. Transcende e entorna assim a alma feminina reprimida. Lady Macbeth vai apanhar esta coragem sutil e convergir em dominação.

"O poder de Lady Macbeth não está no fato dela ter se tornado uma rainha, uma mulher politicamente poderosa, mas está no fato dela, num primeiro momento já fugir dos estereótipos burgueses onde as mulheres são cristalizadas: Lady Macbeth não é nem a mulher “assexuada, mãe, símbolo do bem e nem a mulher diabólica, pecadora que atrai os homens para o submundo onde ela vive. Ambos os papéis são de mulheres submissas e em nenhum destes lugares se encaixa a personagem, que é uma heroína, uma guerreira, uma personagem onde Shakespeare mostrou reconhecer as energias e aspirações femininas em conflito com o isolamento que se esperava que elas tivessem em uma época ainda muito marcada por masculinos. (ALVES, 2004)

Desdemona enfrenta, tem sua autonomia pensativa, mas ela é cercada por uma dependência socioeconômica do marido, que faz de sua coragem insuficiente para que ela se liberte. Lady Macbeth, porém, como acima citado, se liberta. Aos poucos, o dramaturgo inglês, vai interpondo as necessidades femininas e apresentando as saídas necessitadas. Se compreendermos Lady Macbeth como uma mulher regida por uma loucura provinda da ambição, talvez estejamos alienados a apenas um plano colocado para que a censura da época não reprimisse a peça de Shakespeare. São suas entrelinhas que regem a verdadeira essência que ele tanto desejava revelar com Lady Macbeth.

Para Harold Bloom, “nos identificamos com Lady Macbeth por sua pura vontade que faz o mal que desejamos parecer um bem. Há um pouco de Lady Macbeth em cada um de nós, porém nossa moral não nos permite admitir”.

(...) dizer Sim sem reservas, ao sofrimento mesmo, à culpa mesmo, a tudo o que é estranho e questionável na existência mesmo... Não há que desconsiderar nada do que existe, nada é dispensável” (NIETZSCHE, 2003)

Uma das primeiras obras de Shakespeare foi Tito Andrônico. Foi logo de início que a anima de Shakespeare floriu e transpareceu. Com esta peça, sobre o plano da chacina, da guerra, do poderio militar, o dramaturgo coloca sua afeição à defesa da mulher. Ele transcreve sobre poesia e sangue a opressão feminina. Lavínia é uma mulher que vai sofrer nas mãos de tiranos em prol de vinganças entre um soldado que não aceita sua condição e sua inveja crescente que aflora perante Tito que acabara de voltar vitorioso de uma importante batalha. Mesmo com a intenção de mostrar o quanto as mulheres são submetidas a uma força masculina, Shakespeare traz o posicionamento, que mesmo perante tanta amargura, a essência feminina não pode se perder. Ainda que sofrendo, Lavínia continua feminina.

A complexidade de Lavínia é uma construção de persona que jamais alguém foi capaz de superar. Não encontramos personagem feminina (em toda a história da literatura, do cinema, da arte em geral) mais perfeita para representar a dor mais intima da mulher do que Lavínia. Ela é abusada (estuprada) e violentada (tem sua língua e mãos dilaceradas). Todas as representações carnais femininas corrompidas num êxito de amargura. A mulher perde sua feminilidade enquanto corpo físico, perde sua dignidade enquanto espírito. Lavínia, apesar de tudo, continua mulher, mas que mulher consegue conviver com estas agonias? É uma personagem que transmite forças perante o que talvez seja o sofrimento maior. Até a morte torna-se inferior a este sofrimento.

A tragédia, o massacre sobre Lavínia, é trabalhado com a questão que Luís Gonzaga[10] (ator do Teatro Experimental do Porto de Portugal) chama de ‘uso do corte’. O ‘corte’ para Gonzaga é a forma mais violenta de se representar, seja no teatro, seja no cinema, a pior das torturas, o pior dos ataques, o ‘horror em si’. O ator coloca que “Lavínia é boa por natureza, continua a acreditar no amor... Recusa mesmo casar com o Imperador, porque não o amava, isto numa altura em que as coisas eram um bocado predestinadas. Isso já é um corte, mostra alguma coisa...”.

O sofrimento de Lady Macbeth é a loucura, o arrependimento, ela fica lavando suas mãos constantemente para limpar o sangue que marcara com o assassinato que ela forçou o marido a cometer; Desdemona sofre pela acusação do marido, mesmo que não revele, pois o protege ainda assim. São sofrimentos que por mais dolorosos que sejam, não romperam com o íntimo feminino. Ficar louca e ser acusada não são características exclusivas do feminino, mas a violentação pela qual Lavínia passa, por mais que possa de certa forma acontecer com um homem, ela priva a personagem de todas suas essências femininas.

Como já descrito, Lavínia tem sua língua arrancada e suas mãos decepadas. Não há registros que revelem no que William Shakespeare se baseou para escrever Tito Andrônico, mas talvez tenha se baseado na mitologia grega das Ninfas [11]. É uma das analogias mais próximas que podemos encontrar. Lavínia se torna de certa forma uma árvore. Ela é mutilada e no lugar de suas mãos são colocados galhos de árvores. Esta horrenda tortura é no ponto de vista de muitos críticos como sendo apenas uma tortura. Todavia, há algo mais intenso por detrás desta cena. Os signos presentes nas cenas são mais fortes ainda. Na mitologia grega, as Ninfas, mulheres que carregam as mais puras e desejáveis belezas se transformam em flores quando estão felizes e amáveis, mas quando querem se proteger das mãos de algum homem, elas se tornam árvores, espíritos das florestas, conhecidas como dríades, ou ainda hamadríades.

Lavínia faz isto. Transmuta-se (mesmo que seja pelas mãos de outrem) e com esta forma horrenda (que segundo os dizeres do seu Tio Marco: uma imagem forte que os olhos de um pai seriam incapazes de ver) ela jamais será desejada por um homem (e jamais irá sofrer em suas mãos). Ela atinge o ápice do feminino da peça shakespeariana, mesmo sendo uma peça escrita no início de sua carreira. Pode-se dizer que todas as demais mulheres de suas peças descendem de alguma forma, de Lavínia; pois nem mesmo o genioso mestre da literatura dramatúrgica foi capaz de se auto-superar. Continuar de determinada maneira, feminina e não ser (não querer ser) desejada por homem algum é superar quaisquer valores impostos pela sociedade (como afirma Bloom, “Shakespeare rompe com Lavínia a mais intensa barreira sócia-política-cultural que divide os homens das mulheres colocando-os acima delas como soberanos tratando-as como servas”).

(...) MARCO - Quem é? Minha sobrinha, que se escapa tão velozmente? Prima, uma palavra. Onde está vosso esposo? Se isto é sonho, que meus bens todos possam despertar-me. Se estou desperto, venha algum planeta por terra derrubar-me, para que possa dormir o sono eterno. Fala, meiga sobrinha, que impiedosas mãos e bárbaras te mutilaram desse modo e o corpo te deixaram privado dos dois galhos, esses doces ornatos[12] (...)(SHAKESPEARE: 1588. Tito Andrônico, ATO II, CENA IV)

Assim, a análise do feminino e sua importância nas obras de William Shakespeare, colabora, na nossa Sociedade Contemporânea, a pensar sobre o feminino, pois vemos o quanto a sociedade e a relação homem-mulher dependem do feminino. Observamos que Macbeth, por exemplo, só consegue realizar seus atos, por impulso da Lady Macbeth.

O estudo psicológico dos textos de Shakespeare, mostra este jogo de relação necessária entre anima e animus através de suas personagens, e ainda, relevando como também como importância, o fato de que um homem escreveu no Século XVI, um conjunto de obras que retratam o humano, entre muitas faces, a mulher em sua total essência, e que nos dias atuais, ainda permanece atual, nos revelando muitas características do feminino.

Referências Bibliográficas

ALVES, S.P. Uma mulher no poder: Lady Macbeth. Comunicação apresentada na XII Semana de Ciências Sociais da PUC-SP/ 2004 no Grupo de Trabalho: Linguagens e  estéticas transversais. São Paulo, 2004.

BLOOM, H. Shakespeare: a invenção do humano. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2001.

CHAIA, M. A natureza política de Shakespeare e Maquiavel. in: Revista de Estudos Avançados (9) 23, São Paulo: Ed. Ediusp, 1995.

CRONOLOGIA de Shakespeare. http://www.simplyshakespeare.hpg.ig.com.br/timeline.htm

DRÍADES. http://www.rosanevolpatto.trd.br/driades.html

GONZAGA, L. Entrevista cedida ao Arte Factos, weblog dos alunos de Jornalismo e Ciências da Comunicação da Universidade do Porto, Portugal. Dezembro, 2002. http://www.icicom.up.pt/blog/artefactos/archives/2002_12.html

NIETZSCHE, F. Ecce Homo - Como alguém se torna o que é. São Paulo: Cia. das Letras, 2003.

NINFAS, Espíritos da Natureza. http://calle.no.sapo.pt/temenos/ninfas.htm

SHAKESPEARE, W. Macbeth. Rio de Janeiro: Ed. Ediouro, 1954.

________. Romeu e Julieta e Tito Andrônico. Rio de Janeiro: Ed. Ediouro, s.d.

Referências Videográficas

MACBETH, DVD, PRETO e BRANCO, EUA. 1948, diretor: WELLES, Orson.

OTHELO, DVD, COR, EUA. 1995, diretor: PARKER, Oliver.

OTHELO, DVD, PRETO e BRANCO, EUA. 1952, diretor: WELLES, Orson.

RICARDO III: UM ENSAIO, DVD, COR, EUA. 1996, diretor: PACINO, Al.

TITO ANDRÔNICO, DVD, COR, EUA. 1999, diretor: TAYMOR, Julie.

Notas:

[1] Conceito extraído do estudo Fenomenologia do Espírito de G.W.F. Hegel (1770-1831).

[2] Clímax: é o ponto máximo da história, onde a ação vai acontecer.

[3] No filme de Orson Welles (1948) observamos o quanto o diretor foi capaz de analisar esta crítica feita por William Shakespeare, ressaltando, na cena em que Lady Macbeth manda o marido cometer o assassinato e na sua continuidade, onde ela vai limpar as evidências e então desenvolve um processo de loucura, a forte presença do castelo, numa crítica ao poder político. O castelo sempre mostrado de baixo para cima, como sendo superior às personagens da trama e ao olhar do expectador.

[4] Em outra análise destas personagens podemos colocar que cada animus teria talvez a sua respectiva anima: Se colocássemos Lady Macbeth em seu lugar, talvez Ricardo não teria tido sucesso algum em sua conquista. Da mesma forma, que Lady Anne não teria coragem de mandar Macbeth cometer assassinato.

[5] Desdemona antes de morrer, dá um último suspiro e fala para sua companheira que o marido é inocente (apesar de sabermos que foi ele quem a sufocou).

[6] Desdemona é uma mulher que vai ser morta pelo ‘próprio’ marido. Iago é um sujeito muito invejoso e que pretende tomar as forças de seu ‘amigo’ Othelo. Para isto ele arma uma trama na qual Desdemona acaba sendo acusada de trair Othelo com outro homem. Mas Desdemona é, talvez, a mulher mais fiel que existe. Ela jamais cometeria adultério. Só que Iago é bom em convencer as pessoas. Othelo de raiva da traição mata a própria mulher.

[7] Na versão cinematográfica de Orson Welles (1952), o diretor não revela o rosto de Desdemona, na cena em que ela dá seu último suspiro, representando assim, o fato de que, nem num último suspiro e mesmo inocentando o marido, a mulher tem seu valor; diferente do que faz o diretor Oliver Parker (1995) que prefere intencionar a morte feminina posicionando nosso olhar sobre os olhos de Desdemona.

[8] Em Macbeth, um militar almeja o poder do trono. É importante lembrar que no século XI, na Escócia, o filho do rei não é quem vai receber o trono após a morte do pai, e sim, uma pessoa que apresentasse determinação e capacidade adequada para tal cargo. Para ser o rei, é preciso conquistar o cargo, ser aprovado pelo rei. Mas Macbeth não segue os passos corretos. Talvez ele almejasse tanto o poder que nem pensou em provar sua capacidade. Todavia, quem o faz sobrepor o caminho correto é a sua esposa, que cobiçando tanto o poder e a riqueza, impõe-se ao marido e convence-o a matar o rei.

[9] Não é só Jung que nos ajuda a entender Macbeth. Sigmund Freud (1856-1939), o pai da psicanálise analisou Macbeth e nos coloca o quão presente está, nesta cena, o conceito de Édipo. O rei é para Macbeth a figura do pai, e matando a figura paterna, ele perde a sua sustentação.

[10] Luís Gonzaga, em 2002, contracenou em uma montagem feita em Portugal, da peça Tito Andrônico.

[11] Segundo o site http://calle.no.sapo.pt/temenos/ninfas.htm: ‘As ninfas são as Deusas que cuidam da Natureza. Cada uma tem sob sua alçada certo domínio que pode variar desde uma árvore, até um campo inteiro’.

[12] Informação adicional: observa-se, aqui, a inversão poética de Shakespeare que se refere às mãos como galhos; mãos, estas, que foram substituídas por galhos de verdade.

 

Revista Digital Art& - ISSN 1806-2962 - Ano V - Número 07 - Abril de 2007 - Webmaster - Todos os Direitos Reservados

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