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A Arte Pública como Vitrina para Políticas Museais
Autor:
Emerson Dionisio Gomes de Oliveira[1] - emerdione@uol.com.br

Resumo: O objetivo deste texto é discutir o modo como uma instituição de arte pode interferir na criação artístico a partir de um exemplo pontual inscrito na esfera da arte pública, especificamente, na modalidade de intervenções artísticas no meio urbano. Tal discussão não nasce do fenômeno de observação histórica onde me coloco apenas como observador, mas, sobretudo, da inquietação de ter vivenciado todo o relacionamento entre artista e instituição do lado desta última.  Ao analisar este processo do local da instituição minha preocupação contudo não estará alienada das questões imanentes da criação artística, ancorada em algumas obras e autores que abordam de forma direta ou indireta a relação entre o fazer, o comunicar e o conservar arte. Procuro trabalhar, portanto, no espaço das relações entre história e arte tal como se delineia, de modo heterogêneo, em meio às reflexões e teorias sobre memória, arte e história.

Palavras-chave: museus e acervos, arte pública, criação artística e cidade

Abstract: Public art as a shopwindow for museum policies . The objective of this text is to discuss the way an art institution can interfere in artistic creation from an exact inscription in the sphere of public art, specifically in the modality of artistic interventions in the urban environment. This discussion does not originate from the phenomenon of historic observation, where I place myself as only an observer, but above all, from the disquietude of having lived through all the relationships between artist and institution from the side of the latter. By analyzing this process from the location of the institution, my concern however will not be alienated to the immanent issues of artistic creation, anchored to some works and authors who broached either directly or indirectly the relationship between producing, communicating and conserving art. I therefore seek to work in the space of relationships between history and art, as delineated, in a heterogeneous way, in the midst of the reflections and theories about memory, art and history.

Keywords:  museum and collection, public art, artistic creation and urban environment.

Cidades, arte e museus: As intervenções artísticas operadas nas cidades brasileiras vêm sendo estudadas, há pouco mais de duas décadas, como um poderoso instrumento para pensar as aglomerações espaciais urbanas. Um ponto marcante nesses estudos é a abordagem do urbano como um sistema em construção e não como uma estrutura construída e objetivada. A unidade utópica da cidade perdeu-se nas imaginações de centenas de urbanistas que, no século XX, acreditavam ser possível a constituição desse sistema exterior a si mesmo e, portanto, fechado. Abordada por artistas contemporâneos, que se voltaram à discussão das intervenções, a cidade é analisada como um campo significativo, qualificada por uma rede de relações –  históricas, políticas, econômicas, culturais, estéticas entre outras –, cujos sentidos perpassam sua materialidade e seus processos formadores [2].

Vista assim, a cidade perde seu caráter de espaço neutro ou sua capacidade de cenário. Os artistas contemporâneos enfrentam, portanto, um duplo desafio: constituir-se no espaço a partir da arte e comunicar-se com a comunidade que o habita. Os parâmetros da arquitetura moderna e dos sistemas escultóricos tradicionais não servem para responder a esses desafios. Antigas formulações de ocupação do espaço equivocam-se por não manterem uma relação crítica com seu entorno. Dessa forma, os artistas, atualmente, têm buscado compor suas intervenções a partir de uma análise simbólica desse urbano, em que a arte participa como constituinte e não como constituída, criando um campo processual entre o urbano e o “estar” artístico.  

A busca desse campo foi aberta pela longa crise que tem afetado os espaços contemporâneos tradicionais voltados à manutenção e à comunicação da arte feita em nossos dias. Os modelos de museus de arte contemporânea no mundo todo têm encontrado grandes dificuldades para incorporar as novas proposições apresentadas pelos artistas, seja na sua dimensão estética ou na sua escala. As artes urbanas e suas diferentes configurações apresentam-se, assim, como uma possibilidade  para  a compreensão desse campo processual arte/urbano e, concomitantemente, para dar vazão a uma demanda que museus, galerias e centros culturais não abarcam.

Dentro dessa perspectiva, qual será o papel dos espaços museais para estas intervenções? Como localizar-se diante da produção voltada para o urbano? A inadequação do museu às dimensões dessas intervenções o desvaloriza como espaço de discussão contemporâneo? E o mais relevante para nossa discussão: será a cidade apenas uma alternativa ao sistema expositivo?

Nossa proposta aqui não é responder a essas questões, mas, sim, indicar mais um exemplo, entre tantos, das complicadas relações entre museus e arte produzida no espaço da cidade.

O Museu de Arte Contemporânea de Campinas[3], em sua história de formação e fixação, tem, em diferentes momentos, se voltado para as questões do urbano, contudo esses momentos não são marcados por uma política contínua de incentivo às intervenções da arte urbana, o que denuncia mais as dificuldades do museu em incorporar as artes visuais desse segmento do que  a qualidade dos projetos artísticos apresentados. Parte desta questão está diretamente ligada à falência do modelo do museu de arte como guardião do “objeto” artístico. Sendo assim, como incorporar em seu acervo uma intervenção que, na maioria das vezes, configura-se como efêmera e entrópica?

Os museus de arte, em especial os brasileiros, têm adotado o incentivo à produção de arte pública e à recuperação da experiência processada pelas intervenções por meio de mídias de apoio (fotografia, vídeo, literatura específica etc.) – o que lhes dá a discutível noção da intermediação –, deixando de pretender o centro da política formadora dessa experiência e passando a ser apenas catalisadores ou depositários da mesma. A contraparte é que esse modo de agir garante a possibilidade da guarda das memórias dessas experiências e torna visível e mais duradoura a discussão no campo processual entre arte e urbano, sem excluir, em tese, o museu e outros espaços museais desta discussão.

Esta redefinição de conduta traz aos museus uma série de benefícios, na medida em que eles passam a apoiar políticas de intervenção/interação no espaço urbano. O primeiro e mais evidente desses benefícios é a mudança na abordagem dos seus próprios processos de documentação e de comunicação dos acervos. Quando somos obrigados a entrar nas tênues e politizadas discussões sobre as inserções artísticas e o entorno afetado por elas, entramos numa gama variada de debates sobre m aterialidade, técnicas e redefinições que nos ajudam a compreender nossos bens. Krauss alerta para o fato de que, por exemplo, sem a iniciativa ousada das primeiras intervenções em grande escala nos anos 60 e 70, muitos museus e galerias ainda estariam classificando instalações como um conjunto de esculturas [4]. Nessa linha, a arte pública situa-se na interface entre o espaço institucionalizado e o urbano, incluindo a reflexão sobre a cidade e suas configurações na esfera da memória dominada pelas instituições museais.

Outro benefício que se destaca nesse contexto é a conquista de uma nova visibilidade pública, uma vez que os museus passam a talhar sua imagem junto à ampla e heterogênea esfera das defesas do patrimônio histórico, cultural e artístico da e na cidade. Essa posição positiva os museus num discurso mais contemporâneo no que tange às questões de memória e preservação e os livra de dois marcados estereótipos clássicos: a amplamente divulgada metáfora de arquivos mortos; e a sua identificação como espaços ego-conservadores, uma vez que se preocupam apenas com suas coleções. De fato, o oposto pode acontecer, uma vez que, dependendo do modo como aderem às políticas patrimoniais, museus podem participar de movimentos preservacionistas, que, como indica Choay, em seus excessos apontam para um desejo de conservação do passado a qualquer custo, uma maneira defensiva que garantiria a manutenção de uma identidade ameaçada pelas rápidas mudanças tecnológicas[5]. Tal posição, de fato, apenas reforçaria as corriqueiras e vulgares representações dos museus, por isso a adesão dos museus às produções artísticas em espaços urbanos ou em comunidades específicas não é em si garantia de prestigio junto às formulações mais museológicas contemporâneas.

Trata-se de uma discussão que, por sua amplitude crítica, está longe de ser encerrada com esta síntese do problema. Antes de pretender esgotá-la – algo perceptivelmente improvável, dada a complexidade dos problemas –, nos voltamos para um caso específico e para o modo como tais questões se entrecruzam.

Amálgama: No final de 2002, a artista Sylvia Furegatti[6] foi convidada a criar, para o Museu de Arte Contemporâneo de Campinas “José Pancetti” (MACC), uma obra que tivesse três preocupações em seu corpo: (1) temática: a Secretaria Municipal de Cultura da cidade desejava comemorar, em 2003, o ano Internacional da Água; (2) publicidade: a obra deveria constituir-se no e para o espaço de circulação pública; (3) memória: a obra seria incorporada ao acervo do museu. 

Furegatti apresentou três propostas, e o museu optou pelo projeto intitulado Amálgamas, cuja finalidade era dispor, sobre uma praça do centro da cidade, cerca 11.000 pedras de sabão azuis e mais 4 esculturas de sabão amalgamado.

Além de uma discussão profunda sobre o tema, Furegatti propunha também que, a cada pedra, fosse fixada uma frase sobre o tema água. Essa última idéia foi sendo amadurecida ao longo de três meses, durante o treinamento de 32 voluntários, e resultou em frases de diferentes autorias e códigos discursivos que variavam do científico ao literário.

O lançamento do projeto fora inicialmente marcado para o dia 11 de julho, mas, diante do atraso dos contratos com apoiadores, a data definitiva foi fixada em 22 de agosto. Naquele dia, a partir das 5 horas da manhã, Sylvia Furegatti e os participantes do Amálgamas começaram a montar a obra no Largo das Andorinhas, no centro de Campinas. Cerca de 150 m² de área do Largo foram cobertos com as pedras de sabão, concentradas na parte interna da praça, deixando-se livres as calçadas externas, bem como corredores entre as pedras de sabão para o trânsito de pessoas. Em quatro pontos distintos, foram colocadas esculturas feitas com sabão derretido sobre almofadas d’água, conforme o planejado, e, durante todo o dia, os voluntários foram oferecendo as pedras para os passantes. Cerca de 15 dias após a iniciativa, toda a fase documental do projeto (fotos, vídeo, camisetas, pedras de sabão, relatos) fora exposta nas dependências do MACC.

Fig.1 - Intervenção no Largo das Andorinhas, Campinas, foto Cybelle Tedesco.

Fig.2 - Pedras de sabão sobre a praça, foto Thales Carvalho

Fig.3 - Voluntários preparam a intervenção, foto Sylvia Furegatti

Fig.4 - Pequenas frases sobre água foram anexadas às pedras, foto Roberta Amaral

Fig.5 - Ao público era permitido levar um pedra, foto Roberta Amaral.

Embora o processo tenha acontecido sem muitos imprevistos, apenas hoje vemos o quanto o museu alterou o projeto original da artista;se não na sua forma material, ao menos nos trânsitos discursivos que partiram da obra. Para o MACC, o projeto foi uma maneira de reafirmar sua presença na cena das artes visuais da cidade, de um modo um tanto diferente daquilo que o museu tinha passado a significar nos últimos anos: um espaço expositivo convencional que vez ou outra lançava mão de políticas de artes ou produções artísticas atreladas às experiências mais ou menos ousadas com valores seguros.

Desde seus primeiros anos, sobretudo nos anos 70, o MACC assistiu a diferentes intervenções urbanas. Artistas regionais como Bernando Caro, Marco do Valle, Egas Francisco e Geraldo Porto haviam utilizado a cena urbana como palco para realizar intervenções muito diversas entre si. No entanto, de uma forma ou de outra, a participação do museu era, se não secundária, pouco relevante. No caso de Amálgamas, a idéia partia antes da necessidade do museu em registrar pela primeira vez em seu acervo uma intervenção, patrocinada e controlada pela instituição. Nesse sentido, nas intervenções anteriores, a cidade revelava-se como o espaço natural da socialização e da realização material e cultural dos artistas. Agora não, mesmo levando em consideração, por intermédio da artista, os espaços de trocas e as representações múltiplas dessa cidade, ela era vista como um território a ser marcado pelo museu, utilizado por ele como escada para uma pretendida atualização de seu acervo [7].

É justamente nesse ponto que artista e instituição cindem suas intenções. Há mais de três décadas que os espectadores estão acostumados a ver performances, instalações, happenings e sites specifics  pelos museus brasileiros, da mesma forma que, lentamente, desde os anos 70, um público mais habituado com a produção da arte contemporânea tem assistido a diferentes intervenções artísticas no espaço urbano. Em centros culturais marginais como Campinas, a história é diferente. Se, nos anos anteriores, o museu teve dificuldades em abraçar propostas de intervenções dessa natureza, isso pode ser um indicativo de que o museu não se sentia ameaçado no seu papel de centro de referência à arte da cidade. A acessão das tecnologias da informação e a difusão de novas possibilidades híbridas de arte criaram uma nova praça comunitária e, de certo modo, inventaram novos tipos de representações sobre a cidade – uma cidade onde as determinações e os limites das fronteiras sofrem constantes mutações. Nessa nova configuração, o museu viu-se desafiado a indiciar-se nessas novas formas de representação do urbano:

Sistema de relações mais do que lugar unívoco, a cidade requer uma conexão de espaços diferenciados entre si (porque definidos cada um pelas sociedades que a habitam) e, todavia, superpostos (aos sistemas que se cruzam em ‘treliças’, acrescenta-se a sedimentação de sistemas históricos). À homogeneidade a bstrata de uma racionalidade única, as experiências tentam substituir uma estrutura de pluralidade em que, por exemplo, o hábitat de uma minoria não tome a forma de abscesso, mas seja reconhecido como um modo espacial de existir entre outros, sem que, no entanto, deles se isole. Quando admitirmos pensar e tratar a cidade não como uma linguagem unívoca, mas como uma multiplicidade de sistemas que fogem aos imperativos únicos de uma administração central, irredutíveis a uma fórmula global, impossíveis de isolar do hábitat rural, comportando organizações econômicas, mas também sistemas de percepção da cidade ou de associações, de vias que são práticas urbanas, vivenciaremos um novo tipo de sociedade”.[8]

Esse modo de operar a cidade encontrou um projeto que fora orientado por uma visão comemorativa, uma idéia de manifesto, que buscou oferecer a cidade àquilo que poderia tornar mais potente o seu olhar sobre a questão política, mas, sobretudo, sobre si mesma. O centro do projeto inicial residia na comunicação das questões diversas sobre a utilização dos recursos hídricos, mas, graças à artista, o projeto acabou identificando-se com uma esfera mais ampla, de caráter mais simbólico e histórico entre o tema e a cidade, como ela manifesta aqui: 

A crescente preocupação com a acessibilidade e o fluxo do trânsito nas grandes cidades, já há algum tempo, tem se tornado ponto de interesse também para a produção artística contemporânea. Noções antes reservadas às esferas de discussão política e do urbanismo passam a integrar o discurso estético de projetos artísticos constituídos pela intervenção urbana ou pelas formas da chamada nova arte pública (1). Discussões sobre a qualidade de vida; a análise sobre os fluxos de pessoas, mercadorias, interesses individuais; integração de moradores de uma mesma vizinhança, dentre outros valores, estabelecem-se como repertório passível de ser estetizado pelas estratégias criativas da contemporaneidade abrindo uma nova frente de atuação e visibilidade para o papel e a produção do artista”.[9]

Construir um projeto obedecendo aos anseios do “realizador” (MACC) supõe que a criação estética corresponda a um certo número de critérios: vocação para a universalidade, utilização de elementos midiáticos mais comuns, conteúdo que se dirija ao mais amplo público. Nessas condições, como a singularidade do artista pode sobreviver? Estas exigências devem ser consideradas no interior da economia da comunicação, todavia é preciso igualmente compreender seus efeitos sobre a criação. No caso de Furegatti, a singularidade não fora reduzida à média, muito embora ela tenha tentado ao máximo observar as necessidades do “realizador”. A artista optou, dentro de um terreno incerto, por manifestar sua singularidade através de elementos profundamente compartilhados[10], conferindo a toda a execução do trabalho um caráter coletivo.

Aqui a artista colocou o peso de sua formação intelectual. Furegatti, ao optar por uma arte transversal e de amplo impacto, deixa claro, em todo o processo, o quanto é radical a idéia de que a qualidade é, por essência, estranha à cultura de massa. É preciso compreender como ela irá incorporar cada uma dessas necessidades ao seu fazer arte, para além de um discurso melancólico ou de uma cólera denunciadora, vieses que têm seus lugares, mas que são impotentes quando vistos fora do processo artístico. Das pequenas frases em cada pedra de sabão até a utilização de efeitos de marketing e publicidade, a artista não conformará a temática política que reveste a questão da água doce a um discurso meramente panfletário; o “rio azul” sobre a praça adquiriu sentidos poéticos para além dessas funções programadas.

Entre o fazer e o dizer

O mais importante na produção de Amálgamas é o modo como o processo foi operado. Em muitos momentos, o museu apropriou-se das decisões da artista como forma de qualificar e referendar sua ação enquanto instituição. Capturamos aqui um exemplo pontual: a escolha do local.

O local de realização da intervenção foi definido depois de algumas possibilidades terem sido pesquisadas – Largo do Rosário, Largo do Carmo, Estação Ferroviária, Praça Bento Quirino e Largo da Catedral –, todas de relevância histórica para a cidade e todas pertencentes à circunferência que habitualmente a cidade reconhece como sua centralidade. A definição foi pelo Largo das Andorinhas, que, segundo os organizadores, apresentava os seguintes pontos persuasivos: a proximidade do museu; o fato de ser uma área de circulação menor que as demais, o que gerou um controle maior sobre a ação; o fato de ser uma área de forte apelo simbólico, onde se localiza um monumento ao bicentenário da cidade; a presença de área verde, excelente contraponto ao azul dos sabões; a necessidade de dar visibilidade a um espaço que sofre uma moderada degradação; e a ausência de controladores institucionais da praça, definidores de uso, como a igreja, os postos policiais, os pontos de ônibus etc. Tomada a decisão, coube à instituição conferir uma outra dimensão à praça:

Largo das Andorinhas, no século XIX, era conhecido como Largo do Capim ou ainda Largo do Chafariz da Nascente e depois Mercado Grande, um dos mais antigos espaços púbicos da Cidade. Em 1859 recebeu a primeira edificação para ser muito mais que um mercado, sua principal função era normatizar o viver urbano, organizar não só o consumo de gêneros, mas regular práticas culturais de convivência e sociabilidade. Mas o Mercado, espaço-produto da norma,  não se rendeu a ela, mostrou-se senhor de  suas próprias leis. Pensado para ser espaço-produto da norma, tornou-se cenário da transgressão, da exposição de libidos atiçadas pela abundância de fontes de água fresca que convidavam escravos, lavadeiras e toda sorte de excluídos a fazerem uso de seus chafarizes para aplacar o calor e lavar o cansaço do árduo trabalho. Atos que ofendiam e  geravam protestos dos que se assustavam com a liberdade com que estes expunham seus corpos e suas misérias”.[11]

O texto de Fardin revela-se indicativo do modo como a escolha do local revestiu-se de um discurso de recuperação patrimonial. O Largo estava ao lado de um córrego canalizado, enclausurado sobre as pistas de uma avenida há décadas. Amálgamas ganha, nas esferas das instituições de Memória da cidade (incluído o MACC), a função de apaziguador entre o passado de incessantes alterações e o presente de degradação. É fato que a leitura de Fardin não pode ser considerada inapropriada, mas o objetivo de Furegatti estava distante de ser conciliador. O museu não sentiu dificuldade em manipular essas duas visões, uma vez que, no mesmo material de divulgação em que se encontra o texto supramencionado, encontra-se também um texto de Rodrigo Alves, cujo teor celebra “o vigor mutável dos contemporâneos”, pautando Amálgamas como arte dentro de sua autonomia crítica.

A questão do local fora tão crucial para a artista que, entre o primeiro projeto, mais abstrato e indicador das linhas gerais da proposta, e o segundo, com as determinações mais exatas para o Largo das Andorinhas, Furegatti tentou reconduzir o próprio conceito da intervenção:

“O projeto Amálgamas insere-se nas vertentes artísticas contemporâneas que atrelam sua conceituação ao espaço e convívio social urbano. Tomando a cidade, seu fluxo e processo de vida cotidiana como fatores compositivos essenciais, o projeto pretende inserir-se na paisagem da Praça do Largo das Andorinhas, selecionado pela simbologia que carrega e também por seus aspectos técnicos arquitetônicos quanto ao espaço livre e de freqüentarão cotidiana. Com isso, Amálgamas deve ser entendido como projeto de Site Specific – criado de modo dirigido para acontecer nesse local previamente escolhido e estudado”.[12]

Intervenção artística em meio urbano e site specific não são termos excludentes. Contudo, ao contrário da artista, o museu não assimilou essa segunda terminologia por temer que nela residisse uma ambigüidade que retiraria do projeto seu caráter ativo diante das políticas preservacionistas da história urbana da cidade ou mesmo seu caráter mais comunal. Em seu material de divulgação, o MACC defendeu o termo “intervenção urbana” para indicar o caráter ativo do museu no processo (daquele que intervém, altera, modifica) e, ao mesmo tempo, eliminar o caráter particular da escolha do local, como se todas as praças ou qualquer uma delas pudessem receber o projeto[13].

Nas devidas proporções críticas, não podemos deixar de examinar a tese de Crimp[14] como algo relevante para esta análise. Crimp propõe que o museu é uma instituição que busca ocupar o lugar do sujeito criador, na intenção, paradoxal, de esconder-se atrás desse sujeito. É, sem dúvida, uma tese importante, que, se elevada a norma, pode suscitar equívocos, mas , se vista como mais uma característica dos museus e dos sistemas discursivos que os sustentam, pode, desta vez, nos indicar alguns modos de compreender o exemplo entre as formulações discursivas do museu e da artista em questão.

Outros aspectos podem ser investigados na mesma direção – a utilização do corpo voluntário do museu, em detrimento de grupos de universitários, como proposta inicial da artista ou, ainda, o modo como programas governamentais, na época, (como a “Revitalização do Centro” e a “Zeladoria do Centro”) utilizaram-se do projeto. À primeira vista, essa utilização não revela problema algum, uma vez que projetos em áreas urbanas e públicas podem (e em muitos casos devem) ser apropriados por diferentes agentes sociais, o que pode configurar-se um elogio ao artista. No entanto, as apropriações políticas não deveriam furtar o objetivo central do projeto: a questão tão complexa e urgente sobre água doce.

As instituições de memória poderiam ao menos ter feito da apropriação um projeto bem sucedido de visibilidade da história daquele trecho da cidade, questionando, por exemplo, o próprio nome da praça frente às denominações passadas, refletindo sobre onde foram parar a andorinhas,  o que viria ao encontro das questões ambientais que Furegatti pretendeu levantar. A praça era um dos lugares prediletos  de pouso das andorinhas no início do século passado (justificativa de Campinas ter o título de Cidade das Andorinhas), o que conferiu a uma casa mais próxima o título de “casa das Andorinhas”, edificação da antiga estação Funilense, demolida em 1956, junto com o beco da Cadeia. No ano seguinte, a praça viu a inauguração, ao lado do soterrado córrego do Barbosa, do monumento Andorinhas, do escultor ítalo-brasileiro Lélio Coluccini. Além desses fatos, há particularidades mais importantes sobre os usos e costumes do século XIX, quando o local era o limite entre a cidade e o campo. Esses aspectos foram, contudo, apenas enunciados e não explorados dentro de linhas específicas de uma responsável educação patrimonial.

Apesar desses questionamentos, os resultados de Amálgamas foram positivos e de modo geral bem aceitos pelos sujeitos ligados às artes e às questões ambientais[15]. Da mesma forma, seu uso pelos profissionais ligados às questões patrimoniais e urbanísticas teve eco, mesmo que modesto. Uma exceção fora o jornalista Edmilson Siqueira, conhecido articulista da cidade, com uma carreira de 25 anos voltada às questões de cunho político-partidário e que publicava diariamente uma coluna denominada Xeque-Mate no principal jornal da cidade. Sob o subtítulo “Fazendo arte”, Siqueira escreve:

Será que transformar o Largo das Andorinhas numa espécie de céu das lavadeiras, forrando o chão com pedaços de sabão azul, é arte? Um senhor que passava pelo local, viu aquela cena toda - que no jargão das artes plásticas é denominada “intervenção” - e saiu-se com essa: “No meu tempo isso era chamado de falta do que fazer””.[16]

É emblemático que tal trecho venha ao final, após comentários sobre questões políticas, administrativas e legais, e demonstra o quanto, mesmo num universo midiático tão distante daquele que a imprensa chama de “cultura”, encontramos parte da resposta que nos indica o porquê de um museu público como o MACC, após quase 40 anos de existência, não possuir em seu acervo um projeto de uma intervenção pública realizado. Seria muito simples explicar tal ajuste pela falta  de convicção das instituições públicas ou pela ausência de clareza na escolha dos valores culturais; alguém para assinar embaixo, arriscar-se. Levar a discussão por esses caminhos resulta apenas na personalização temporária da questão. O que está em jogo para museus que se servem da arte contemporânea, fora dos eixos dominantes da arte, como é o nosso caso, é o que eles podem e devem autorizar como sendo arte.  Lembrando Malraux: “O museu impõe uma discussão de cada uma das representações do mundo nele reunidas, uma interrogação sobre o que, precisamente, as reúne” [17], podemos nos perguntar sobre o modo como, através dos acervos dos museus, poderemos questionar suas intenções enquanto, a seu modo e finalidade, mantenedores e fixadores de parte da memória artística de uma comunidade.

Perguntas ficaram abertas e são freqüentemente dirigidas aos administradores de museus menores, que possuem uma limitada rede de financiadores, se não uma fonte única de recursos. A sugestão de que bens artísticos tombados por museus de arte devem ser preservados em sua natureza original perde o sentido pleno diante de projetos como Amálgamas que, na sua especificidade como site specific, sempre dependerá das variáveis sobre o espaço escolhido, neste caso, o Largo das Andorinhas. Sua natureza, mesmo durante sua trajetória, exige que os acervos absorvam projetos que são mais continuamente reformulados do que realizados, uma vez que a própria possibilidade de se refazer o projeto pode perder o sentido; afinal, as motivações políticas sobre o tema podem mudar de modo a conferirem à Amalgamas uma visão um tanto precária. Essa visão de uma obra de arte em contínuo movimento ou que foi realizada em condições muito específicas é algo muito estranho numa sociedade que sacraliza alguns modos de fazer arte, enquanto outros modos ganham selos como “falta do que fazer”.

Referências Bibliográficas

CERTEAU, M. de. A cultura no Plural. Trad. Enide Abreu Dobránszky. Campinas : Papirus, 1995.

CHOAY, F. A Alegoria do patrimônio. Trad. Luciano Vieira Machado. São Paulo: Estação Liberdade: Editora Unesp, 2001.

CRIMP, D. Sobre as ruínas do museu. Trad. de Fernando Santos. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

FREIRE, C. Espaço e Lugar : os registros da paisagem urbana na arte contemporânea. In : SALGUEIRO, H.A (org). Paisagem e Arte. CBHA, CNPq, FAPESP (I Colóquio Internacional de História da Arte), 2000.

FUREGATTI, S. Arte no espaço urbano: contribuições de Richard Serra e Christo Javacheff para a formação do discurso da Arte Pública atual. (dissertação de mestrado), São Paulo, FAU-USP, 2002.

________. A quadra, o trânsito e a arte contemporânea em Campinas. Disponível em http://www.vitruvius.com.br/drops/drops13_02.asp. Acesso em 27 de fevereiro de 2006.

KRAUSS, R. La escultura en el campo expandido In: La originalidad de la Vanguardia y otros mitos modernos. Madrid, Alianza, 1996, p. 289-303.

MALRAUX, A. O museu imaginário. Lisboa : Edições 70, 2000.

RANCIÈRE, J. A partilha do sensível: estética e política. Trad. Mônica Costa Netto. São Paulo: Exo Experimental Org.; Editora 34, 2005.

Outras Fontes

Jornal Correio Popular, de 26 de agosto de 2003, coluna Xeque Mate, de Edmilson Siqueira. 

Museu de Arte Contemporânea de Campinas. Folder de divulgação da fase documental do projeto Amálgamas, publicado em 4 de setembro de 2003.

Notas:

[1] Aluno de doutorado do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Brasília (UnB). Este trabalho é parte de reflexões sobre minha experiência como curador do Museu de Arte Contemporânea de Campinas (MACC) entre 2003 e 2005. Mais que vã preocupação autobiográfica, essa reflexão pode tornar-se útil para pensar práticas de outros museus de tamanho e importância semelhantes em outras partes do País. O trabalho foi orientado pela Profa. Dra. Eleonora Zicari Costa de Brito e recebeu auxílio da CAPES.

[2] cf. FREIRE, p.357-62

[3] O Museu de Arte Contemporânea de Campinas “José Pancetti” (MACC) foi fundado em 1965, pela Prefeitura Municipal de Campinas, por meio de um movimento de artistas contemporâneos da cidade que careciam de um espaço público para as exposições voltadas à arte produzida através dos preceitos modernos e contemporâneos. A sede definitiva do museu só fora alcançada a partir de 1976, uma edificação no centro da cidade, compartilhada com a Biblioteca Pública Municipal, onde o museu ocupa 1.300 m². Seu acervo conta com cerca de 680 obras.

[4] cf. KRAUSS, 1996.

[5] cf. CHOAY, 1992, p.176.

[6] Sylvia Furegatti faz doutorado no Departamento de História da Arquitetura da FAU-USP; acumula prêmios e citações em publicações especializadas, como o livro "Novíssima Arte Contemporânea”, e na seleção da revista Bravo!; expõe em diferentes museus e galerias do Brasil. Em 2002, participou da mostra retrospectiva de 100 anos da pintura de José Pancetti, no MACC, como artista representante de Campinas.

[7] Nesse mesmo momento o museu havia lançado o projeto ACERVOemEVIDÊNCIA, cuja finalidade era dar visibilidade ao seu acervo através de exposições, aquisições e publicações dirigidas. O que indica o quando o MACC estava consciente de sua defasagem diante de acervos de arte contemporânea de outros museus regionais.

[8] cf. CERTEAU, 1995, p.212.

[9] FUREGATTI, S. A quadra, o trânsito e a arte contemporânea em Campinas – nov 2005. Resenha sobre a intervenção artística urbana denominada A Quadra da artista Cecília Stelini, realizada em 22 de setembro de 2005, em Campinas. Disponível em http://www.vitruvius.com.br/drops/drops13_02.asp. Acesso em 27 de fevereiro de 2006.

[10] O sentido de compartilhado é aquele extraído do pensamento do pensador J. Rancière, cf. 2006, p.15.

[11] Texto Amálgamas publicado no folder da fase documental pelo MACC, de autoria da historiadora Sonia Fardin, que ocupava, naquele momento, a direção do Departamento de Turismo e Memória, ao qual o museu estava subordinado.

[12] Trecho do projeto produzido pela artista em março de 2006, grifo da artista.

[13] É evidente aqui o caráter autobiográfico dessa pesquisa, uma vez que foram minhas as decisões de eliminar um termo em detrimento do outro. Apenas hoje percebo o quanto tais ingerências foram úteis à instituição e distantes dos desejos da artista.

[14] cf. CRIMP, 2005, p.17

[15] Um dos pontos fundamentais da obra é que, ao estetizar a pedra de sabão, a artista estaria propondo a eliminação da escala produtiva da mesma. Cada pedra fora chancelada com o logo do projeto e portava um pequeno pergaminho azul com uma frase, e seu fim era ser guardado como suvenir, longe do seu uso cotidiano, danoso ao meio ambiente.

[16] cf Jornal Correio Popular, 26/8/2003.

[17] cf. MALRAUX, 2000, p.12

 

Revista Digital Art& - ISSN 1806-2962 - Ano V - Número 07 - Abril de 2007 - Webmaster - Todos os Direitos Reservados

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