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Doces Ornatos: Relato de um Processo Criativo em Dança
Autora:
Kamilla Mesquita[1] - kamillamoliveira@yahoo.com.br

Resumo - Este texto trata do relato de caso de uma experiência como intérprete criadora em dança, na qual foi interpretada a personagem Lavínia da peça ‘Tito Andrônico’ de autoria do dramaturgo inglês William Shakespeare. Este trabalho coreográfico deu origem a uma vídeo-arte-dança realizada como trabalho final de uma disciplina de pós-graduação em Multimeios na UNICAMP.

Palavras-Chave: Dança; Shakespeare; ‘Video-Dança’

Abstract - This text approaches the case report of an experience as a creative interpreter in dance, in which was interpreted the character Lavinia from the English dramatist William Shakespeare’s ‘Tito Andrônico' play. This choreographic work gave origin to a video-art-dance realized as conclusion work of Multimeios pos-graduation’s discipline at UNICAMP.

Key-Words: Dance; Shakespeare; ‘Video-Dance’

Introdução

“Ah! Mulheres...As mãos...
Antes de adormecer, sinto minhas mãos cantarem o grande canto da natureza;
Assim como continua vibrando a melodia num instrumento musical recém abandonado.”
Rodin (apud WAHBA – 2002, p.144)

Ornatos são ‘enfeites’ pela significação mais comumente encontrada em dicionários. Encontra-se também a significação de ‘pedaços’[2]. Nas mulheres de Shakespeare, ornatos são realmente pedaços de corpo que enfeitam, mas que têm muito mais do que isso como função. Doces Ornatos são as delicadas mãos femininas que tanto se expressam de forma sutil, mas extremamente marcantes nas obras do Literário William Shakespeare.

Talvez pelo fato de eu ser bailarina, tenha me chamado tanto à atenção o uso que as personagens shakespearianas fazem (ou não) das mãos no decorrer das tramas. As mãos são ornatos, ou seja, pedaços do corpo humano, extremamente expressivos, sendo isto na Dança ou em qualquer situação cotidiana. Usamo-las, o tempo todo, por meio de gestos e sinais, gesticulamos enquanto falamos, pois a palavra necessita das mãos para fluir, tanto o é, que estou falando por meio das minhas mãos, neste momento, sem elas meus pensamentos não virariam letras e frases neste papel.

Percebemos ao longo da história da Dança que as mãos têm sido bastante utilizadas nos mais diversos contextos e estilos. Nas Danças mais arcaicas elas ocupam papéis protagonistas dentro dos movimentos corpóreos. Podemos citar, por exemplo, as danças indianas que privilegiam as mãos como fonte de significação das danças, narrando por meio dos gestos, chamados de ‘Hastas’ (sinais feitos com uma das mãos) ou ‘Mudrás’(sinais feitos com as duas mãos), poemas e sagas históricas ou míticas.

Além do valor expressivo e artístico, os Hastas e Mudrás, teriam dentro da cultura indiana, valor terapêutico, pois sua prática, segundo LEAL (2006- p.13), cria estados alterados de consciência que favorecem ao praticante o contato com o inconsciente, e o direcionamento da força produzida nesta interiorização.

Se os indianos dançam com as mãos, tendo neste ato uma prática terapêutica de contato com o inconsciente, então também poderíamos, por esta perspectiva, captar expressões dos sentimentos mais íntimos das personagens de Shakespeare por meio dos gestos das mãos.

Talvez Shakespeare tivesse consciência disto, ou no mínimo fosse um sensível observador de mãos, afinal, seu pai era luveiro (fabricante de luvas), e durante a juventude aprendeu com o pai este ofício.

Shakespeare soube fazer com que suas personagens executassem ao longo de suas obras, verdadeiros ‘mudrás’ reveladores de sutilezas e mazelas das almas de suas personagens, principalmente as femininas.

Ao realizarmos um trabalho final de disciplina de pós-graduação sobre Shakespeare no Cinema[3], tive a rica experiência de interpretar a personagem Lavínia da peça “Tito Andrônico” por meio da dança. A escolha desta personagem se deu pelo fato de Lavínia representar de maneira tão expressiva uma feminilidade suave e ao mesmo tempo tão tenebrosa. Os sofrimentos vividos pela personagem vão sendo representados em seu próprio corpo que vai se transmutando simbolicamente ao longo da trama, e por meio deste corpo (ainda que mutilado) e de seus movimentos (ainda que limitados), Lavínia se expressa; e esta expressão tão dramática me instigou a transformar os movimentos de Lavínia em Dança. 

Desta maneira pude experienciar o quão expressivos sãos os movimentos das mãos na dança e mesmo na impossibilidade do uso das mãos a energia das mesmas se faz presente por meio de algum símbolo.

Lavínia é sem dúvida a personagem que mais me impressiona dentro das obras de Shakespeare, talvez pela multiplicidade de sentimentos que desperta: dor, suavidade e repulsa numa mesma imagem, que é ao mesmo tempo ninfética e monstruosa.como os galhos no caso de Lavínia.

Os Galhos de Lavínia

Lavínia é a filha de Titus, um soldado tirânico que mata o filho de Tamora, e esta por sua vez, para vingar a morte do filho, manda que os outros dois filhos, Quirão e Demétrio, violentem Lavínia, com a maior das violências que poderiam cometer a uma mulher pura: o estupro.

Para que Lavínia não delatasse seus agressores, Quirão e Demétrio cortam-lhe a língua e as duas mãos, colocando no lugar destas, galhos secos. Lavínia, outrora pura, perde seu ‘tesouro’, (assim nomeada por Tamora a sua virgindade) e é transmutada simbolicamente em árvore, presa ao silêncio eterno e à angústia de não ter as mãos – seus doces ornatos, assim chamados pelo seu tio Marco.

 “... que impiedosas mãos e bárbaras te mutilaram desse modo e o corpo te deixaram privado dos dois galhos, esses doces ornatos, cuja fronde sombrosa os próprios reis se disputavam, para nela dormir, sem que pudessem jamais a dita obter incalculável de conquistar-te o amor?” (SHAKESPEARE – apud Tito Andrônico, ATO II, CENA IV)

Nesta fala, Marco compara as mãos de Lavínia, antes da decepação, com galhos e seu amor como troféu ao qual nenhum homem seria digno de merecer. Lavínia perde, de uma só vez, sua pureza e suas mãos, transmuta-se de mulher em árvore.

A ausência das mãos revela sua incapacidade de ser mulher, tais quais as ninfas mitológicas que ao serem violentadas pelos deuses se transformam em árvores, buscando como único alívio às suas dores a integração de seus corpos ao corpo da Mãe Terra, firmando raízes, silenciando os cânticos, cessando as danças... Enfim, Lavínia torna-se uma ninfa obscura que isenta de pureza torna-se uma figura quase monstruosa, dando espaço até mesmo para os sentimentos que a bondade e a pureza não deixavam chegar em seu coração. Lavínia de certa forma vivencia um ato vingativo, pois é cúmplice do assassinato de seus agressores e segura por entre os antebraços a bacia na qual escorre o sangue e os pedaços de cérebro daqueles que a violentaram, degolados por seu pai, Tito.

Lavínia na incapacidade de usar as mãos torna-se submissa ao poderio da tirania e da vingança, não tendo suas próprias ações, precisa da ajuda de outrem para enxugar-lhes as lágrimas provenientes da inocência corrompida e da total impotência perante o mundo no qual vegeta.

“...as mãos quero amputar-me (...) em preces vãs tem elas sido alçadas; delas fiz uso sem nenhum proveito. A única coisa que ora exijo delas, por isso, é que uma ajude a cortar a outra.” [4] (SHAKESPEARE – apud Tito Andrônico, ATO III, CENA I)

Hamadryade: ninfa ou górgona?

Ao conhecer a personagem e a trama, de imediato vivenciei o horror e a repulsa, mas aos poucos fui ficando fascinada pelas possíveis analogias da trama de Shakespeare com elementos mitológicos.

A estória de Lavínia muito se assemelha a das hamadryades[5], espíritos femininos das árvores. Aliás, esta foi a primeira imagem que me veio à mente ao ver a cena do filme Tito Andrônico de Julie Taymor, na qual Lavínia agoniza muda e com galhos no lugar das mãos sobre um coto de árvore. Pareceu-me nitidamente uma hamadryade, porém em sua versão obscura e monstruosa, praticamente uma górgona[6], criatura mítica que vive na escuridão.

Pesquisando alguns mitos e contos arcaicos, fui percebendo que repetidas vezes ninfas, que eram desejadas sexualmente pelos deuses sofrem algum tipo de metamorfose. Aquelas que têm mais sorte são transmutadas em flores antes que sua inocência seja corrompida, mas aquelas que não conseguem fugir aos desejos libidinosos dos deuses acabam sendo transformadas em árvores. E muito próximo a este foi o destino da personagem Lavínia que metaforicamente transformou-se em árvore.

No processo criativo da dança foram feitos estudos prévios sobre os ‘mudrás’ indianos e possíveis transformações, releitura dos mesmos na elaboração da primeira dança que retrataria a ninfa ainda pura e plena em seus encantos, simbolizados pelos movimentos corporais e principalmente pelos movimentos das mãos.

Na segunda dança, que simboliza o estupro, foram utilizadas pétalas vermelhas que escorrem por entre as pernas da personagem simbolizando a perda da virgindade. Um símbolo tão forte da feminilidade: a rosa vermelha começa a se transmutar em sangue. O sentido dramático desta dança é enfatizado pelo uso de contrações e densidade dos movimentos.


Fig.1 – O Estupro

Na terceira dança, que simboliza a decepação, novamente são utilizadas pétalas vermelhas que jorram dos punhos indicando que as mãos foram cortadas em meio a movimentos bruscos e caóticos cujo desfecho é a expulsão, pela boca, de uma rosa vermelha inteira que simboliza simultaneamente, a perda da língua e da feminilidade, agora perdida por completo.


Fig.2 – A decepação

Fig.3 – O Vômito

Na quarta dança, a personagem aparece com galhos no lugar das mãos. Na incapacidade de ser mulher, Lavínia transforma-se em árvore e dança seu destino. Os movimentos são novamente dramáticos, com contrações, contorções, mas aos poucos vão se suavizando e ganhando a fluência do giro que simboliza uma nova transformação.

Fig.5 – A Metamorfose

Concluída a metamorfose, a ninfa se transforma em árvore e vai ter como abrigo a escuridão das sombras das outras árvores, culminando na última cena, na qual a personagem sai em corrida de encontro à mata fechada que simboliza o abrigo obscuro.

Referências Bibliográficas

LEAL, O. Mudrás – Gestos magnéticos e de poder. Jornal O Legado. Ed. Nº46. Campinas: Novembro, 2006, p.13.

SHAKESPEARE, W. Tito Andrônico. Coleção Ridendo Castigat Mores. Virtual Books.

WAHBA, L.L. Camille Claudel: criação e loucura. Rio de Janeiro:Record/Rosa dos Tempos, 2002.

Referência Videográfica

TITO ANDRÔNICO, DVD, COR, EUA. 1999, diretor: TAYMOR, Julie.

Referência de Internet

WIKIPEDIA. http://pt.wikipedia.org. Acessado em 06 de maio de 2007.

Notas:

[1] Professora do Departamento de Dança da Universidade Federal de Viçosa (UFV); Graduada em Bacharelado e Licenciatura pelo curso de Dança da universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).

[2] Segundo, respectivamente, Minidicionário Ruth Rocha e Dicionário Aurélio de Língua Portuguesa.

[3] Disciplina Multimeios e Teoria do Cinema: Disciplina de Pós-Graduação na qual foi abordada a obra de William Shakespeare, através de diversas adaptações cinematográficas de suas principais Peças. Na disciplina, foi solicitado um trabalho final, no qual os alunos expressassem suas impressões sobre Shakespeare ou alguma obra em particular.

[4] fala de Tito ao ver a filha decepada.

[5] Na mitologia grega, Hamadryades são ninfas que nascem com as árvores, devendo protegê-las, e com as quais partilham o destino. (apud http://pt.wikipedia.org)

[6] As Górgonas, figuras da mitologia grega, vivem nos confins do mundo, onde não penetra raio de sol ou lua; a escuridão é absoluta. São tão horrendas que nem os deuses toleram sua presença. (apud WAHBA – 2002, p.121)

 

Revista Digital Art& - ISSN 1806-2962 - Ano V - Número 07 - Abril de 2007 - Webmaster - Todos os Direitos Reservados

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