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Arte Transgênica: Forma de Comunicação entre os Sujeitos
Autora:
Karina de Freitas Silva[1] - karina_jrj@yahoo.es

Resumo: Este artigo tem por finalidade discutir a arte transgênica como uma forma de comunicação entre os sujeitos que dela participam. Dentro desse universo bastante amplo foi escolhida a arte transgênica desenvolvida por Eduardo Kac. Interessa estudar como a tecnologia transgênica usada para fins estéticos propõe um diálogo entre profissionais de diversos campos (Artes, Ciência, Filosofia, Direito, Comunicação, Literatura, Ciências Sociais) e o grande público acerca da comunicação inter-espécies, entre humanos e animais transgênicos, quando estes últimos são integrados a um contexto social, interativo e dialógico.

Palavras-chave: arte transgênica – comunicação – interação – humano – animal.

Resumen: Este texto tiene como fin discutir el arte tecnológico como una forma de comunicación entre los sujetos que de ella participan. Dentro de ese universo bastante amplio fue elegida el arte transgénico desarollada por Eduardo Kac. Interesa estudiar como la tecnología transgénica utilizada para fines estéticos propone un diálogo entre profesionales de diferentes áreas de conocimiento (Artes, Ciencia, Filosofía, Derecho, Comunicación, literatura, Ciencias Sociales) y el gran público acerca de la comunicación entre especies, entre humanos y animales transgénicos, cuando estos últimos son integrados a un contexto social, interactivo y dialógico.

Palabras-clave: arte transgénico – comunicación – interacción – humano - animal.

1. Introdução

O desenvolvimento da arte interativa tem provocado transformações relevantes no modelo comunicacional, pois, ao solicitar a participação de duas ou mais partes, permitindo a alteração do sistema, evidencia novas possibilidades de percepção da realidade e de comunicação com outros seres. Insere-se, nessa perspectiva, a arte transgênica, uma forma de criação artística que se utiliza de técnicas de engenharia genética para transferência de genes (naturais ou sintéticos) a um organismo vivo, de modo a criar novas formas de vida.

Entre os artistas de novas mídias que orientam sua arte para a discussão acerca da nossa própria condição biológica, está Eduardo Kac. Artista brasileiro, carioca, residente nos Estados Unidos desde 1989 – onde leciona Arte e Tecnologia, na School of the Art Institute of Chicago – Kac desenvolveu projetos artísticos com técnicas de holografia (Holopoesia), de telepresença (Arte da Telepresença) e, desde o final da década de 90, vem relacionando a arte com a tecnologia transgênica (Arte Transgênica).

No que diz respeito à arte transgênica, Eduardo Kac busca centrar seus trabalhos artísticos em questões relacionadas com a nova biologia, a ecologia da bio-tecnosfera, a síntese e a metamorfose da vida. Mais, não apenas provoca reflexões acerca de questões estéticas próprias da arte, como também amplia para os campos da Comunicação, Antropologia, Ciência e Tecnologia. E todas essas discussões caminham para a investigação acerca da relação que se possa desenvolver entre os seres humanos e os seres bio-tecnológicos (animais não-humanos e seres tecnológicos). Assim, desenvolveu o projeto Genesis (1999), a coelha fluorescente Alba (2000), O Oitavo Dia (2001) e Move 36 (2004).

Essas obras têm como ponto de interseção o estabelecimento da comunicação entre duas entidades distintas.  O que cada um desses projetos propõe é refletir quais são as implicações sociais a partir do estudo das novas relações determinadas entre os sujeitos humanos e os seres hibridizados, sobretudo quando consideramos que a interação, as inter-relações e a conectividade já se constituem a base da vida. A partir disso o artista busca investigar as noções de normalidade, de heterogeneidades, de pureza, de hibridismo e de alteridade.

Neste artigo, dedicar-nos-emos ao estudo de O Oitavo Dia, um dos trabalhos mais complexos e instigantes de Kac. Camundongos, plantas, peixes, amebas transgênicos e um robô, modificado em laboratório, habitam uma cápsula, constituindo um novo ecossistema. Os humanos completam a nova ecologia. Participam ativamente da obra seja como visitante da instalação seja como visitante remoto mediado pela internet.

2. O Oitavo Dia: a nova ecologia

O Oitavo Dia foi desenvolvido pelo artista e por uma equipe de artistas, cientistas e especialistas em tecnologia no Institute for Studies in the Arts, na Arizona State University, onde foi exposto em 2001. A obra reorganiza a relação simbiótica entre entidades diferentes, tais como os humanos e as amebas. Trata-se de um projeto artístico que discute questões de ética e responsabilidade a partir das relações existentes entre os humanos e os transgênicos e dos próprios transgênicos entre si.

Essa criação apresenta uma população de seres fluorescentes criados em laboratório, que, quando em conjunto, sugerem o núcleo de um sistema sintético bioluminescente. Segundo o próprio artista (2003), O Oitavo Dia convida o participante a “caminhar sobre a água”. O participante da instalação entra em contato com uma semi-esfera azul. Trata-se de um domo incandescente de 1,25 m de diâmetro, com sua luz interna. Além disso, o interator ouve os sons recorrentes de água fluindo para a praia, o que evoca a imagem da Terra vista do espaço. Para Eduardo Kac, os sons funcionam como uma “metáfora da vida na Terra, reforçada por sua imagem azul esférica e ressoam o vídeo da água projetada no solo” (2003, p. 259).

O Oitavo Dia é uma referência direta à história da criação, do ponto de vista bíblico. De acordo com a cultura judaico-cristã, no sétimo dia, Deus criou o homem. O dia depois é, então, proposto por Kac como aquele da criação de uma nova ecologia, um mundo onde humanos se relacionam com criaturas modificadas geneticamente em laboratórios. Daí a “metáfora da vida na Terra” representada pela comunicação dialógica entre seres humanos e seres tecnológicos que co-habitam um espaço único.

No projeto, “a vida” é evocada pela presença de um robô e de seres transgênicos que se relacionam dentro da esfera. A base tecnológica dos transgênicos, como já mencionado, é visível pela coloração verde que adquirem em contato com luz especial. A esse mundo é acrescentada a espécie humana representada tanto pelos visitantes que, na galeria, passam a conviver com os seres transgênicos, como pelos visitantes remotos que interferem no ecossistema.

O contato do participante com o outro (os seres transgênicos) se dá sob o olhar da ética e da responsabilidade com esses sujeitos tecnológicos. Dessa forma, essa “metáfora da vida” é explicada pela comunicação existente entre os humanos e os seres tecnológicos por intermédio de dispositivos comunicacionais, o que permite uma relação dialógica entre eles. Nessa perspectiva, fica evidente a constituição de uma sofisticada metáfora ou alegoria sobre a conexão, a comunicação e a interação entre os seres diversos, sejam eles plantas, animais ou máquina. O próprio autor acredita que a comunicação entre os seres se dá não só pela troca de palavras, símbolos ou gestos, mas também pela comunicação não-semiótica que ocorre por meio dessa transposição do indivíduo para uma realidade virtual.

Os seres que habitam o sistema ecológico artificial foram escolhidos para representar os três reinos principais – o protozoa, o anfíbio e o mamífero. Assim, estão presentes na obra as espécies de plantas de tabaco, as amebas, os peixes e os ratos vivos, todos expressando a proteína fluorescente verde (GFP) com a bioluminescência visível a olho nu. O gene GFP, próprio de um tipo de água-viva (Aequorea Victoria), quando fixada em células procarióticas ou eucarióticas, produz uma fluorescência verde após a excitação das células por luz azul ou UV.

Fora do uso criativo, como em O Oitavo Dia, o GFP é utilizado por vários campos da Biologia, tais como a Microbiologia, a Engenharia Genética e a Fisiologia. O gene que codifica esta proteína já foi isolado e é atualmente usado na produção de proteínas de fusão, constituídas por um gene de interesse fundido com o da GFP, de modo a monitorizar, por exemplo, a localização dessa proteína in vivo.

Além desses seres transgênicos, compõe a obra um biobô, conceito introduzido por Eduardo Kac no catálogo do ISEA’97, que indica “um robô com um elemento biológico ativo em seu corpo, responsável por aspectos de seu comportamento” (2003, p. 261). Esse elemento biológico é uma colônia de amebas GFP que exerce a função de cerebelo do biobô. Quando as amebas se reproduziam ou se movimentavam, o biobô se locomovia lentamente, para cima e para baixo, deslocando-se, assim, pela galeria, acompanhando os momentos de atividade, ascendentemente, e de repouso, de forma descendente.

Este robô, pousado sobre seis pernas robóticas articuladas, é um objeto instável, com uma mão de vidro fundida sobre um pé alto, hospedando componentes eletrônicos. Entre algumas de suas propriedades estão duas pequenas câmeras de vídeo e um “cérebro” compreendido em um prato de pedra iluminado em uma população de amebas. Uma câmera de vídeo minúscula está montada diretamente acima das amebas, onde pode ser focalizada por um mecanismo colocado finamente: a outra câmera está em um braço giratório fixado no alto do biobô (Collins, 2003)[2].

Dan Collins (2003) explica que a idéia inicial da obra era que o robô se aproveitasse do movimento das amebas. No interior do bio-reator transparente, as amebas formam uma rede cujo comportamento é determinado pelas respostas aos estímulos ambientais. As amebas se constituem na “estrutura cerebral” do biobô a partir da unidade sensorial interna juntamente com um computador. Como explica o próprio autor de O Oitavo Dia, “a unidade sensorial interna é responsável pelo rastreamento do movimento das amebas e o computador emite comandos para as pernas do biobô, em resposta a tal movimento” (2003, p. 261). Cada movimento desenvolvido pelo biobô, se torna um sinal da atividade das amebas.

Além do mais, o biorobô funciona como o avatar dos interatores remotos, que pela internet se transportam para o interior do ambiente. Independente do movimento que o robô faça, o interator pode controlar seu olho, girando-o quase 360 graus ao redor do corpo. Contudo, os movimentos de avanço e recuo resultantes da ação das amebas em combinação com os sistemas tecnológico do robô, possibilitam que o interator tenha uma nova perspectiva do ambiente. Como explica Kac (2003, p. 263), “o comportamento global do biorobô é uma combinação da atividade que ocorre na rede microscópica de amebas e na rede humana macroscópica. Humanos e amebas 'se encontram' no corpo do biorobô e afetam mutuamente suas experiências e comportamentos, produzindo, com seu acoplamento, um 'domínio consensual' efêmero”. Dessa forma, o ser humano é o último elemento que compõe o novo ecossistema, participando da obra tanto presente na instalação como pela internet, transportando-se para o interior do terrarium.

3. Da produção à exibição da obra: biólogos e tecnólogos em diálogo para realizar O Oitavo Dia

Desde um princípio, O Oitavo Dia comunica os sujeitos. Para que fossem desenvolvidos o domo, o biobô, os programas de computador e as câmeras, foi necessário encontrar colaboradores os quais Kac foi buscar no Departamento de Biologia da Arizona State University (ASU). Participaram, então, os geneticistas Doutores Alan Rawls e Jeanne Wilson-Rawls, que forneceram a informação para o desenvolvimento do ambiente no onde seres vivos transgênicos habitariam. Além disso, buscou a contribuição do Institute for Studies in the Arts (ISA), também da ASU. Como conta Collins e Britton (2003), os trabalhos de equipe tiveram início em janeiro, sendo intensificado semanalmente entre junho até a primeira exibição em outubro de 2001.

David Loring, diretor técnico especialista em escultura e teatro, projetou e fabricou o biobô, baseado em um projeto 3D idealizado pelo assistente, James Stewart. George Pawl e Kelly Phillips, também diretores técnicos com experiência em instalações em museu e teatro desenhou e fabricou o domo com auxílio de estudantes graduados. Ozzie Kidané, engenheiro do ISA, desenvolveu o hardware de controle do biobô. Gene Cooper, artista de novas mídias, contribuiu no projeto tanto com o desenvolvimento das câmeras virtuais para a instalação  como do site de O Oitavo Dia. Grant Orvis, do Departamento de Biologia da ASU, além de auxiliar os trabalhos dos Rawlses os durante todo o projeto, guardava os exemplares de vida para a exibição. Ainda participaram: Richard Loveless, Dan Collins, Sheilah Britton, Barbara Eschbach, Julia Friedman, Isa Gordon, Charles Kazilek, Frances Salas.

Todos esses especialistas são apresentados por Kac como colaboradores do projeto. De fato, toda a discussão que a obra pudesse suscitar a respeito dos conflitos existentes na relação com a natureza tem como resultado um conjunto de artigos que foram reunidos no livro The Eighth Day, editado por Sheilah Britton e Dan Collins. Ambos participaram do projeto artístico, Britton atuou como produtor e Collins era o Diretor Interino do ISA, entre 2000 e 2001, respectivamente. Se um dos intuitos é investigar a comunicação estabelecida entre os seres, essa obra já mobiliza um grande grupo de cientistas e artistas em torno de sua elaboração.

4. A exibição: novas formas de comunicação em destaque

Interessa a arte (não) final. Final por ser resultado do trabalho colaborativo da equipe, ao mesmo tempo não final, posto que O Oitavo Dia não se apresente como uma obra pronta. Ela só toma existência no momento aqui e agora, a partir da atuação do sujeito humano em interação com todos os outros seres integrantes. E, ainda assim, se apresenta a cada instante em uma forma distinta, já que as entidades presentes estão em contínua locomoção.

O Oitavo Dia desenvolve um modelo de comunicação dialógico, que incorpora a subjetividade dos indivíduos como fator fundamental da obra. Essa comunicação se dá pela interação entre uma ou mais entidades vivas no sentido biológico. Em O Oitavo Dia, o processo comunicacional mediado pela telepresença, encontra o elo no biobô que funciona como uma interface para participação pela internet, transportando o sujeito para o interior do ambiente. O interator explora à distancia, em tempo real, via internet, o espaço no qual está o robô. Por um lado, as amebas determinam o movimento do robô. Quando elas se locomovem em direção a uma das seis pernas do biobô, uma se contrai enquanto a outra retorna à posição original. Por outro lado, os interatores, independente do movimento que o robô faça, podem controlar seu olho com uma alavanca de pan-tilt. Contudo, o comportamento dinâmico do biobô possibilita aos participantes remotos uma nova perspectiva do ambiente.

A existência da obra depende da interação com o interator, aquele que modifica a obra em tempo real. Tanto os participantes locais como os participantes remotos – aqueles que participam do evento através da web – podem interferir no processo de locomoção do biobô e, ao mesmo tempo, ocupar sua perspectiva de visão.  Assim, o participante tanto pode interagir com a obra do interior quanto do exterior do domo.

Se considerarmos o ponto de vista do participante remoto, observamos que, já num princípio, o humano se torna um ser híbrido, posto que se misturam os componentes do humano, da máquina e do transgênico. Mesmo tomando o ponto de vista do biobô, nem as amebas, nem os seres humanos têm controle sobre o biobô, que se converte em lugar de interação entre organismos e interatores. O que se estabelece é uma conexão entre o físico e o virtual, entre o biológico e o tecnológico, rompendo as fronteiras entre os seres e desenvolvendo uma nova ecologia. O artista coloca, então, em evidência, a interação entre a máquina e os seres vivos, permitindo que coexistam elementos do espaço virtual e do real, buscando expandir o corpo através do eletrônico e da forma de tele-ação.

A tele-ação, aliás, já vinha sendo trabalhada por Kac, durante a década de 90, pela Arte da Telepresença, quando o artista já apresentava as relações entre entidades diferentes (humanos e animais não-humanos) mediadas pela telepresença. Podem ser destacadas a Rara Avis (1996) e a Darker Than Night (1999) e Uirapuru (1996/99). Todos esses trabalhos se assemelham, já que esses projetos exploram a interface homem-máquina-animal, como um sentido das relações mediadas por empatia. Darker Than Night é um trabalho interativo no qual participantes humanos, um morcego-robô e outros 300 morcegos egípcios ocupam uma caverna e interagem mutuamente pelas emissões e conversações freqüentes. Rara Avis é uma instalação, na qual o participante pode atuar presencial ou remotamente no aviário a partir do ponto de vista da arara-robô. E Uirapuru investiga a telepresença interativa personificada pelo pássaro amazônico que é transformado em um peixe voador e em seu avatar. Os peixes telerrobóticos podem ser controlados por uma interface local e também pela rede, unindo realidade virtual com telepresença na internet.

Dan Collins (2003) explica que a instalação possui quatro câmeras posicionadas para dentro e para fora do domo. Duas delas – uma montada sobre o eixo central do braço do robô e outro no alto da instalação – dão a opção ao usuário de interagir com a obra através das alavancas pan e zoom em tempo real. Uma outra câmera está localizada na armação de pedra e outra nos sons produzidos pela faixa de água e em contato com os peixes e as plantas. Um visitante pela internet pode estabelecer várias regras de visão dependendo da posição que escolha. Logo ele pode, segundo Collins, interagir com a obra observando “o olho de Deus de cima; um adjacente literal do olho do peixe na lagoa; a opinião de um micróbio no molde do sorriso; e uma perspectiva peripatética sempre mutável  girando entorno do biobot.”[3]. O visitante remoto também pode ver os próprios humanos confinados na instalação ao redor do domo.

O visitante remoto, conectado à internet vê o espaço da perspectiva do biobô, olhando o externo, percebendo rostos e corpos do ambiente transgênico dos interatores locais. O participante conectado observa os visitantes locais como parte da ecologia de criaturas vivas retratadas no projeto, como se humanos e transgênicos co-existissem simbolicamente em uma “internetesfera”.

Os visitantes podem acreditar temporariamente que seu olhar é o único olhar humano contemplando os organismos do domo. Quando navegam na interface da internet, contudo, percebem que espectadores remotos também podem experimentar o ambiente do ponto de vista do olho de um pássaro, visualizando-o, de alto a baixo, por meio de uma câmera instalada sobre o domo. Eles podem fazer movimentos de pan, tilt e zoom, vendo, do alto ou de mais perto, humanos, camundongos, plantas, peixes e o biobô (KAC, 2003, p. 262).

Os visitantes locais, por sua vez, através de um computador on-line instalado na galeria, percebem o sentido da experiência na internet, remotamente. Segundo Collins (2003), os múltiplos pontos de acesso à obra e de suas alusões, deslocando entre os campos da arte e da ciência, posiciona o interator entre dois pólos distintos, mas inter-cruzáveis: alegoria e percepção, atos e interpretação e experiências sensoriais.

4. Pressupostos filosóficos da comunicação em O Oitavo Dia

Para o artista Eduardo Kac, com O Oitavo Dia, a ecologia transgênica está instalada. A obra como uma importante “metáfora da vida na Terra” leva-nos a uma reflexão mais profunda acerca do uso continuado de vigilância e de técnicas de controle sobre o mundo natural. A cápsula que acomoda a fauna e a flora fluorescentes permite a ocorrência de relacionamentos até então invisíveis na natureza.

O conceito de dominação do homem sobre a natureza foi herdado do discurso transposto na Bíblia, que promete o controle para a raça humana, mas não deixa legado para os demais animais. O Oitavo Dia parece transgredir o discurso bíblico posto que, ao apresentar seres transgênicos “exóticos”, convida-nos a nos abrirmos para “essa variedade infinita de imagens e medos “estranhos” das espécies de vida – os medos, os sonhos e as invenções – que assombram nossa imaginação coletiva”[4] (COLLINS, 2003). O que pretende Kac com a arte transgênica é realizar um trabalho “no qual as noções românticas daquilo que é ‘natural’ tem sido questionado e o papel humano na história da evolução das outras espécies”[5] (KAC; apud BAKER, 2003, p. 29).

De fato, ao efetivar a comunicação entre as diversas entidades integrantes da obra, Kac coloca em evidência a necessidade de refletir acerca da diferença entre o animal e o humano. Isso porque toda a filosofia acerca dessa relação sempre foi a de exaltar a superioridade e subjugação do animal em referência ao humano. Para Kac, o interessante seria desfazer a polaridade, estabelecendo uma ambigüidade e uma subjetividade para a comunicação entre esses seres. Segundo Britton e Collins (2003, p. 29), “Kac similarmente acredita que os artistas podem oferecer importantes alternativas para as polaridades no debate da engenharia genética, colocando ‘ambigüidade e subjetividade’ no lugar de polaridade”[6].

Assim, ao selecionar e desenvolver seres transgênicos especificamente para o projeto artístico, o autor propõe uma reflexão sobre essa evolução transgênica e como ela afeta o homem em sua relação com os outros seres. Para o próprio autor, a obra mostra que a convivência entre humanos e outras espécies revelam novos caminhos, pois evocam a necessidade de interrogar a diferença, levando em conta clones, transgênicos e quimeras. Enquanto nos colocamos em posição de exploração do estranho, do bizarro, do tabu, torna-se impossível construir uma abertura entre nós humanos e as espécies de vida transgênica bastante familiares que nos cercam no momento de significação da obra.

A criação dos sujeitos transgênicos eleva a obra à reflexão de questões como a ética e a estética, elementos indissociáveis. Em entrevista publicada originalmente no jornal Folha de São Paulo, Eduardo Kac explicou que sua preocupação estética é a de “inventar novos sujeitos sociais. Criar seres com características físicas sim, como a coloração, mas também mentais”. Acrescenta ainda que “no momento em que esse ser - o ser transgênico - está em sua frente e te olha nos olhos é impossível não levar em consideração a responsabilidade que você passa a ter”.

De Aristóteles a Heidegger, a filosofia sempre buscou refletir sobre essa temática. Segundo Heidegger, o homem deve tentar compreender o animal não-humano como ‘o outro’, não como um ser subjugado ao homem, mas como, de fato, um ser-outro. Dessa forma, deveria se dar à transposição imaginativa do ser humano em um animal não humano. É nessa auto-transposição que o outro remanesce naquilo que de fato é e como é.

Esta compreensão devia ser alcançada, Heidegger propõe, com a transposição imaginativa do ser humano no ânima. Nesta auto-transposição o outro ser é suposto precisamente para remanescer o que é e como é. Transpondo-se isso dever significar... poder ir junto com o outro quando o outro está em posição de respeito a ele. “É um ‘ir com’ empreendido para a causa do ‘que aprende diretamente como é estar com este ser[7] (BAKER, 2003, p. 31).

Dan Collins (2003) explica que em O Oitavo Dia, no que diz respeito à constituição genética dos seres, os diversos organismos vivos estão conectados. Kac justifica que o Projeto Genoma Humano mostra que os humanos possuem em seu genoma seqüências oriundas de vírus adquiridas ao longo da história da evolução, o que mostra sermos também transgênicos. A construção desses sujeitos sociais transgênicos faz com que o sujeito humano seja convidado à aproximação com esse outro quando ele mesmo, mediado por dispositivos tecnológicos, se hibridiza, colocando-se na posição do outro. Collins, acerca dessa questão, propõe a seguinte reflexão: “por que os seres humanos e o genoma humano se tornam cada vez mais ‘transgênicos’, estaremos preparados cada vez mais para aceitar uma definição fluida do que de fato constitui o humano?[8].

Nisso há um paradoxo. O que pode parecer fazer-nos comuns entre entidades vastamente diferentes torna-se também característica que nos coloca, inexoravelmente, no papel de “outro”. Como afirma Collins (2003), a maioria dos povos concordaria que o verde fluorescente é a marca da diferença. O grau de bioluminescência marca a distância entre seres transgênicos de O Oitavo Dia e nós humanos. Logo, evidencia-se a constituição de um índice de alteridade entre os sujeitos da obra.

A utilização crescente da técnica de transgenia é apresentada na obra que toca literalmente na questão da evolução transgênica. De fato, não conseguimos perceber a complexidade implícita nos diferentes objetos transgênicos que estão a nossa disposição. Consumimos deliberadamente refrigerantes, cereais, sopas, óleos, alimentos enlatados, biscoitos modificados em laboratório, sem, contudo, refletir as suas implicações no mundo contemporâneo. Não nos atemos à transformação cultural que a tecnologia transgênica propõe. E O Oitavo Dia dramatiza esta circunstância. Quando Kac cria as criaturas transgênicas e as insere em um ambiente de convívio com os humanos, propõe uma análise desses animais não humanos como um outro, seres com os quais estabelecemos relações de ética e responsabilidade.

O tradicional conceito de responsabilidade sobre o animal, Kac o pensa como elemento chave da relação comunicativa entre as entidades. Quando se cria novas vidas transgênicas, é preciso pensar o sentimento de responsabilidade que temos para com o outro. A responsabilidade humana para com o animal não-humano é um item discutido por Derrida. O filósofo propõe olhar o outro, o animal não-humano, com responsabilidade pessoal, ou seja, o cuidado que temos com este animal e as possibilidade que ele tem de se manifestar enquanto outro.

A responsabilidade é excessiva ou não é uma responsabilidade. Uma responsabilidade limitada, medida, calculável, racionalmente distribuída já adquire o tom da moralidade, e como tais serviços somente, e vergonhosamente, se adquire uma boa consciência.[9] (BAKER, 2003, p. 33)

A essa proposição de Derrida, podemos acrescentar o pensamento de Lévynas (2000), para quem a aparição do rosto desnudo em seu mundo revela um outro que exige respeito e acolhida, posto que seja o estranho, fraco e indefeso. Isso significa não tratar sua “aparente” diferença como indiferença, negando sua infinitude, reduzindo-o a um mero ente do mundo. Aí reside a ética da autoridade: dar abertura a esse outro que se revela outro pela bioluminescência, para refletir a comunicação entre o ser humano e o ser transgênico.

A relação face-a-face entre o eu e o outro estabelece a proximidade, cujo sentido primordial e último, para Lévinas, é a responsabilidade do eu pelo outro sem, contudo, seja necessária a ocorrência da reciprocidade, posto que, se houvesse essa exigência, não se trataria mais de uma relação desinteressada.

Segundo Emmanuel Lévinas, reconhecer a diferença não significa incorporar a indiferença. Ao contrário, trata-se de assumir a responsabilidade por esse outro. Dessa forma, o projeto artístico reflete o poder e a tecnologia, a ética e a estética, questionando todo tipo de heranças imutáveis.

O resultado do projeto é a plenitude de possibilidades interpretativas, posto que o ecossistema transgênico se configure em uma espécie de resposta da natureza à pretensiosa sabedoria que designa o homem como o senhor de todas as formas vivas do universo. Assim, essa combinação da arte com a engenharia genética não suscita a criação de criaturas vivas modificadas em laboratório visando à reprodução e manipulação desses seres. Ao contrário, o artista propõe uma reflexão mais profunda acerca dos desenvolvimentos artístico-científicos, discutindo questões de ética e responsabilidade. “A sua meta” – conclui Arlindo Machado (2000) – “é sempre a dimensão simbólica da genética e não a sua dimensão simplesmente operacional”.

Enfim, O Oitavo Dia, com seres transgênicos é uma chamada para um diálogo sobre a ética e a responsabilidade perceptíveis no relacionamento entre seres humanos, plantas e animais que co-habitam o mesmo espaço.

5. Considerações Finais

O Oitavo Dia se torna um importante objeto de estudo quando queremos observar as implicações sociais advindas do uso de tecnologia transgênica. A partir disso deixa-nos um convite para refletir a nova ecologia surgida na constituição desse projeto artístico, na qual humanos e seres transgênicos convivem dialogicamente. A comunicação existente entre os seres permite refletir como sujeitos sociais aparentemente tão distintos co-habitam o mesmo espaço. A obra coloca em questão a relação tradicional entre sujeito e objeto, dando lugar ao aspecto fundamental da noção da presença do outro. Esse outro é um ser que deve ser respeitado, já que sem o outro tampouco o eu pode ser si mesmo e, sem sua presença, na obra, não existe sentido algum.

Referências

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Notas:

[1] Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – Doutorado em Comunicação e Semiótica

[2]This bot, perched on six articulated robotic legs, is a wavy, hand blown glass vessel about a foot hight housing na array of electronic components. Among its many features are two miniature video cameras and a “brain” comprised of an illuminated petri dish filled with a population of slime mold. On tiny video camera is mounted directly above the amoebae where it can be focused by a finely threaded mechanism; the order is on a pivoting arm affixed to the top of the biobot.” (Tradução minha)

[3] god’s eye from above; a literal fish-eye adjacent to the pond; a microbe’s view of the slime mold; and a peripatetic ever shifting perspective from the rotating arm f the biobot.” (Tradução minha)

[4]that infinite variety of ‘alien’ images and life forms – the fears, dreams, and inventions – that haut our collective imagination” (Tradução minha)

[5]in which romantic notions of what is ‘natural’ have to be questioned and the human role in the evolutionary history of other species” (Tradução minha)

[6]Kac similarly believes that ‘artists can offer important alternatives to the polarizes debate’ about genetic engineering, putting ‘ambiguity and subtlety’ in place of polarity

[7]This understanding was to be achieved, Heidegger proposed, through an imaginative transposition of the human into in animal. In this self-transposition, ‘the other being is precisely supposed to remain what it is and how it is. Transposing oneself into this being means… being able to go along with the other while remaining other with respect to it’. It is a ‘going-along-with’ undertaken for the sake of ‘directly learning how it is with this being.” (Tradução minha)

[8]Further, as humans and the human genome become increasingly ‘transgenic’, will we be prepared to accept a fluid definition of what constitutes ‘humanness’?” (Tradução minha)

[9]‘Responsability carries within it, and must do so, an essential excessiveness.’ Responsibility ‘is excessive or it is not a responsibility. A limited, measured, calculable, rationally distributed responsibility is already the becoming-right of morality,’ and as such serves only, and shamefully, to give oneself a good conscience’” (Tradução minha)

 

Revista Digital Art& - ISSN 1806-2962 - Ano V - Número 07 - Abril de 2007 - Webmaster - Todos os Direitos Reservados

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