:: Cultura Popular ::

Editora Responsável: Profª. Drª. Isabela Nascimento Frade

O que é o Popular?

A essa pergunta se rende a primeira série de entrevistas que iremos publicar em nossa coluna. O intuito é abrir espaço para visões atualizadas que possam abrir essa questão, levando-nos a seus mais sutis desdobramentos. Em muitos estudos, o popular se encontra, como seu espaço privilegiado, referências e identidades que tecem elos em formas múltiplas e diversas entre si. Que elemento aglutinante é esse? De que se constitui o fato popular? E a arte popular? É uma manifestação efetiva ou figura de retórica em nossas explanações teóricas? Como retirar uma forma de seu contexto histórico-social e qualificá-la na sua articulação a uma tradição artística externa, alheia à sua própria dinâmica, como querem alguns  de nossos educadores? Nesse sentido, seqüestrando o fato popular e o adaptando às próprias condições de recepção e entendimento da arte?

Ao transpormos os territórios próprios dos fenômenos populares estamos nos alienando de suas mais fortes condições de existência? Em que medida nossa tradição artística ocidental erudita, em sua conduta de isolamento das obras para efetivar os processos de contemplação e deleite (a que fomos habituados pela nossa educação artística) especialmente em museus e coleções de arte, não retira seu sentido maior de forma vital, exatamente por sua função de destaque e reverência, contribuindo para a diluição e o enfraquecimento dessas mesmas práticas que desejamos atingir? Nesses novos territórios de eleição e valorização – ao nosso modo – é o próprio grau de diferença que as constituem como arte e como populares - enfoque dirigido para um olhar que as entende como formas exóticas e curiosas, quase sempre conformando-as a uma classificação que as dispõem como formas primitivas e ingênuas.

Essa perspectiva de pesquisador – como aquele que se abre para a descoberta e não assume de antemão uma posição sobre aquilo que pretende observar – que busco imprimir aqui, em um movimento de conquista de nossa própria liberdade de entendimento, buscando abrir novas brechas em um modelo hegemônico de cultura e arte para podermos nos aproximar de formas e modelos culturais diversos sem comprimi-los, de antemão, ao sistema classificador a que já estamos acostumados e, de certo modo, aprisionados, uma vez que não há possibilidade, para muitos, de poder mover-se em direção à diferença.

Essa aventura em direção ao re-conhecimento da alteridade visa trabalhar ao revés de uma hegemonia do institucionalizado e do padronizado por uma visão mutiladora que, fortemente enraizada em nossas escolas e universidades, cotidianamente exibe cenas absurdas de violência simbólica. Essa coluna se configura, assim, como um espaço de discussão e indagação objetivando contribuir no alargamento de nossos valores e conceitos, dotando-nos de prudente atitude e madura reflexão ao acompanharmos as investidas de pesquisadores que se aprofundam nesse campo difuso e multi-dinâmico das manifestações populares contemporâneas.

Profª. Drª. Isabela Nascimento Frade
Editora de Cultura Popular.

 

Felipe Ferreira

Nosso entrevistado, Felipe Ferreira é professor adjunto do Instituto de Artes da UERJ, vice-coordenador do Mestrado em Artes do IART/UERJ, pesquisador de Carnaval e Cultura Popular e líder do grupo de pesquisa Laboratório da Arte Carnavalesca

Art&: Como se situam hoje os estudos acadêmicos em cultura popular? Como articular o saber disciplinar, elaborado em bases cientificistas com a lógica aberta e a viva dinâmica dos saberes populares?

Felipe Ferreira: A academia no Brasil tem reservado um espaço bastante secundário aos estudos em cultura popular baseando-se na crença oitocentista que estes se resumem a uma compreensão “erudita” da produção cultural de certas camadas da população ligadas a uma espécie de raiz “verdadeira”, “pura” e “essencial”. Em que pese a grande importância dessa produção, o chamado saber popular, não se manifesta somente em rincões afastados e pretensamente preservados dos avanços da chamada “cultura da elite”, da “grande cultura” associada, quase sempre, a uma globalização encarada somente em sua face impositiva. A cultura popular, entretanto, pode, e deve, ser abordada como um processo dinâmico no qual as regras (venham elas das academias, da mídia de massa ou das ruas) se articulam através de negociações cotidianas, de transações ordinárias. É na cultura popular que se barganham as desigualdades e os desequilíbrios entre as diferentes forças que determinam uma cultura em seu sentido mais amplo.

O “saber disciplinar” não pode se restringir à lógica simplista das oposições que procura capturar o popular a partir de regras e definições totalizantes geralmente opostas aos gostos e formulações de uma elite também idealizada. O popular não está numa identidade formal mas no espaço da prática do dia-a-dia que articula aceitações e reações a múltiplas influências, sejam elas globais, regionais ou locais.

Art&: A arte contemporânea tem estado empenhada na ruptura com a forma estética. (Retornaremos à mesma posição que Da Vinci e entendendo que a arte é apenas “una cosa mentale”?) Seria interessante pensar que, assim, ela estaria rompendo o elo com os modelos sensíveis de comunicação da arte popular? A arte contemporânea continuaria deste modo a trabalhar na progressiva autonomização do campo artístico ou  estaríamos, ao contrário, no limiar de uma nova abertura de diálogo com as diferenças?

Felipe Ferreira: Acredito que a arte popular seja uma forma de expressão dos processos hegemônicos (de aceitação e reação) característicos da sociedade moderna. Nesse sentido ela estabelece uma estética própria que, de um certo modo, acaba forçando a revisão dos conceitos estéticos estabelecidos (pela arte contemporânea, por exemplo) e apresentando respostas (e novos problemas) a muitas das questões que interessam a filosofia da arte contemporânea. Entretanto, a incorporação de elementos da arte popular presente nas obras de muitos artistas de mercado contemporâneos (privilegiando a materialidade do “popular” e deixam de lado seu sentido mais profundo) não pode ser entendida como um diálogo produtivo com o popular, mas como um aproveitamento de suas formas finais e um esvaziamento de seus significados que são, quase sempre, reduzidos a uma visualidade agradável, porém estéril em termos de questionamento da arte.

Art&: O que explicaria, em termos mais gerais, as aproximações de alguns artistas contemporâneos em direção a algumas manifestações populares? Qual o sentido desses produtos? Eles inaugurariam formas híbridos de particular condição e estariam situados no contínuo espaço de diálogo entre o popular e o erudito?  O que há  de inovador nessas novas apropriações do popular?

Felipe Ferreira: O continuo espaço de diálogo entre o “popular” e o “erudito” é uma das características mais marcantes do que definimos como cultura popular. Por sua vez, o diálogo que se vê na arte contemporânea é, normalmente, uma forma de reduzir a expressão popular a sua substancialidade, transformando-a em elemento material da “grande arte”. Incorporar as questões da arte e da cultura populares à arte de mercado contemporânea não é, necessariamente, anexar seus estilhaços, mas compreender sua coerência, sua dinâmica própria e sua proeminência do mundo contemporâneo.

Art&:Em que se define a Cultura Popular? Como articular um conjunto heterogêneo de manifestações reunidas em um único e grande conjunto – os fatos populares – sem perder as suas qualidades mais significativas?

Felipe Ferreira: Em que pese a dificuldade da tarefa, definir-se cultura popular na atualidade passa pela compreensão não de sua manifestações, necessariamente heterogêneas, mas de sua existência como um espaço de disputas hegemônicas que articula as mais diversas referências através do consumo ativo e cotidiano de conceitos, objetos, práticas e idéias. O espaço do popular estabelece-se através de regras próprias, negociadas a cada caso onde conceitos como tradição, raiz, povo, belo, bom, estão em constante processo de renegociação.

Art&: Podemos falar de uma arte popular? Como ela acontece? Ela é arte em seu próprio meio social ou esse é um modelo atribuído no espaço de sua assimilação por um pensamento academicamente elaborado?

Felipe Ferreira: A questão específica da arte popular se estabelece no contexto da questão da arte em geral. Produto de uma sociedade situada num espaço/tempo específico a conceituação de uma obra como arte tout court depende de uma série de fatores, interesses e gostos reunidos na idéia de “mundo da arte”, ou seja, de um grupo de pessoas (artistas, críticos, galeristas etc) que define dinamicamente o que é ou o que não é arte. Nesse sentido, a idéia de arte popular está intrinsecamente ligada à constituição de um “mundo da arte popular” que estabelece parâmetros, regras e interesses capazes de incluir determinada obra, ou artista, dentro de um mercado com regras e característica próprias.

Art&:Ao ser definido como artista popular, o sujeito alcança notoriedade e tem acesso a ambientes da cultura  antes inaccessíveis. Muitas vezes ele é destacado de seu meio e perde o vínculo com outras práticas as quais estava anteriormente ligado. Qual o papel do artista popular nesse processo de eleição? De que modo o título de “artista” pode influir em seu trabalho?

Felipe Ferreira: O papel do artista popular seja ele pintor, escultor ou sambista não pode diferir daquele de qualquer outro “artista”. O acesso a ambiente e culturas antes inacessíveis a ele é mais um dado a ser articulado em sua criação. O importante nesse caso não é o isolamento do artista da contemporaneidade, mas a continuidade (ou não) da dinâmica cotidiana dos processos necessários a sua criação. Essa continuidade, entretanto, não é uma garantia da “popularidade” do artista ou de sua obra que continuam dependendo do sistema de legitimação do mundo da arte popular.

Art&: Por outro lado, artistas com formação acadêmica estão se voltando para práticas eminentemente populares. O carnaval carioca é prova disso, com estudantes de Belas Artes esculpindo as imagens alegóricas e compondo indumentárias. Eles se tornam, assim, artistas populares?

Felipe Ferreira: A questão dos artistas do carnaval pode ser inserida naquela dos artistas populares em geral. Entretanto ela possui algumas peculiaridades visto que cada um desses artistas se articula a uma “obra” única, que é a escola de samba em desfile. Esta é definida, a priori, como cultura popular, principalmente por suas fortes relações com o carnaval, a “festa popular” por excelência, impregnando tudo a sua volta com essa espécie de aura popularizante. Entretanto, se por um lado o desfile das escolas de samba (do grupo especial do Rio de Janeiro) está muito longe de poder ser definido como uma produção popular, por outro esses grupos carnavalescos são exemplos perfeitos da idéia de cultura popular como espaço cotidiano de articulação de múltiplas influências. Sob esse aspecto, os artistas envolvidos com o carnaval (carnavalescos, escultores, pintores, aderecistas, figurinistas, chapeleiros etc) podem ser considerados como artistas populares na medida em que se expressam num lugar privilegiado da expressão do popular.

Art&: A mídia televisiva durante o carnaval tem se voltado principalmente para louvar a figura do carnavalesco. Qual a dimensão mais concreta desse fenômeno? Ao carnavalesco não se está atribuindo a figura emblemática de “grande artista” em detrimento das outras formas de participação que se agrupam em uma Escola de Samba? Há efetivamente uma função centralizadora do carnavalesco ou esse é um efeito à distância, apropriado apenas para a tela da TV?

Felipe Ferreira: A função atual do carnavalesco é coordenar um processo de criação de várias fases. Responsabilizar-se diretamente pela criação de todas, nenhuma ou algumas dessas fases dependo de cada carnavalesco. A própria elaboração e decupagem (divisão por partes) do enredo, função precípua do carnavalesco até então, vem sendo exercida, em alguns casos, por grupos ou criadores especializados. Entretanto, apesar de assumir cada vez mais a função de diretor artístico do evento, o carnavalesco ainda é visto pelo “mundo do carnaval” (conceito comparável ao de “mundo da arte”) como “o artista”, “o gênio criador” individual.

Art&: Ainda sobre a TV e seus efeitos... observa-se no desfile das Escolas de Samba  a intensa participação de celebridades (artistas de televisão, jogadores de futebol, cantores), personalidades já moduladas pela linguagem midiática da telinha. Observa-se ainda a sua performance voltada para atrair a atenção e maior espaço de exposição. Não há novidade nisso e minha questão recai para a própria continuidade desse fato: houve um aumento da presença dos agentes da televisão e em sua pressão para transformar o carnaval em um espetáculo vendável? Quais as formas de expressão excluídas nos discursos televisivos? O que a TV não consegue enquadrar? Como os demais atores sociais do carnaval se posicionam sobre isso?

Felipe Ferreira: A televisão foi a grande responsável pelo crescimento em importância dos desfiles carnavalescos. Sem desprezar a influências das grandes revistas ilustradas das décadas de 1940 e 1950, é a partir das transmissões televisivas intensivas iniciadas na década de 1970 que as escolas se fixariam definitivamente como um fenômeno de abrangência nacional, e internacional. As escolas passaram, desde então, a incorporar os paradigmas estabelecidos pelo discurso televisivo, incrementando suas fantasias e alegorias, incentivando temas de interesse nacional, organizando seus desfiles de forma mais “legível” entre outras modificações, num processo contínuo de exclusões e inclusões de formas de expressão características da tensão hegemônica da cultura popular. Reflexo do interesse de diferentes atores, os formatos adquiridos pelas escolas de samba através desse processo foram constantemente questionados, ou tensionados. É a presença, e a atuação, desses atores, mais do que a “força da mídia televisiva”, que determina as modificações sofridas pelas escolas de samba.

Art&: Por que Escola de Samba? O que há de escolar nisso? Que escola é essa?

FF: Apesar de existir alguma controvérsia sobre a origem do nome escola de samba, seu significado parece remontar as primeira décadas do século XX, quando os grupos populares do carnaval do Rio de Janeiro  – chamados então indiscriminadamente de ranchos, cordões, clubes ou  sociedades – passaram a ser vistos pela elite cultural como importantes expressões da “alma” brasileira. Muitos desses grupos (que mais tarde seriam definidos como ranchos) passaram a valorizar os aspectos culturais de seus desfiles, assumindo uma postura pedagógica refletida principalmente em seus enredos. Para reforçar essas características alguns desses grupos passaram a se autodenominar de “rancho-escola” ou “rancho-universidade”. É a partir dessa idéia, que não esconde o interesse por uma espécie de aceitação pela intelectualidade, que os novos grupos de samba surgidos a partir de finais da década de 1920 começam a ser chamados de “escolas de samba”.

Art&: Como o carnaval se tornou, ao lado do futebol, em um dos principais ícones da brasilidade?

Felipe Ferreira: A década de 1940 marca o interesse do governo brasileiro em se integrar à nova organização mundial através, entre outros coisas, da valorização da cultura nacional entendida como a cultura das camadas populares. A razoável projeção das escolas de samba na época associada a sua relativa “simplicidade”, ligada a uma “essência popular” e ao ritmo que havia sido praticamente oficializado como expressão musical do Brasil – o samba – apontam para o grande interesse em tornar as escolas de samba a síntese da nossa cultura. O grande alcance do rádio e das revistas impressas teve grande importância na divulgação do ritmo e na criação de um imaginário ligado ao samba e às escolas. A cabrocha, o malandro, o sambista, o pandeiro e o tamborim, tornam-se ícones da brasilidade viajando o mundo através de nossas músicas (Aquarela Brasileira), de nossos cantores (Carmem Miranda) e das diversas traduções de nosso imaginário (Zé Carioca).

Art&: Felipe, cultura é invenção? Fale com a gente sobre o seu livro Inventando Carnavais e sobre suas últimas pesquisas.

Felipe Ferreira: O livro Inventado Carnavais (Editora UFRJ) é uma versão resumida de minha tese de doutorado em Geografia Cultural (PPGG-UFRJ), Nele procurei abordar a formação do carnaval brasileiro através da relação da festa com o espaço urbano da cidade desde o período dos entrudos até finais do século XIX. O texto busca estabelecer uma relação entre a ação direta da população da cidade e a formatação do carnaval carioca como uma festa da cidade e do país. A abordagem espacial do tema permitiu escapar da visão evolucionista, seqüencial, de causa e feito e perceber as diferentes influências que deram formas à folia carioca.

É essa abordagem dinâmica do carnaval que tenho utilizado para compreender as várias feições da festa no Brasil e no mundo. O principal resultado desse enfoque foi o Livro de Ouro do Carnaval Brasileiro (Ediouro), que traça uma história inédita do carnaval no país associando suas modificações às grandes ondas de influência sofridas pela nação.

Atualmente tenho concentrado minhas pesquisas em alguns dos personagens que povoam a folia carnavalesca carioca, como o índio de cordão e o malandro, destacando as variadas influências que moldaram seus perfis.

Foliões brincam fantasiados de velhos. Ilustração de Raul Pederneiras de 1924.

Nossa tradição carnavalesca é vasta, rica, com inúmeras variações: somos herdeiros de muitos carnavais!

Eventos Científicos de interesse:

1. XIII Congresso Brasileiro de Folclore. Este ano os trabalhos apresentados voltam-se para a temática: Diversidade, Educação e Políticas Públicas. De 19 a 23 de setembro em Fortaleza, Ceará. Organizado pela Comissão Brasileira de Folclore e Comissão Cearense de Folclore, com apoio do Governo de Estado do Ceará. Evento anual de grande repercussão que reúne pesquisadores de todo o país.

2. Semana de Cultura Popular. De 22 a 26 de outubro no Rio de Janeiro. Organizado pelos pesquisadores do Núcleo de Cultura Popular da UERJ.


ISSN 1806-2962

 

Revista Digital Art& - ISSN 1806-2962 - Ano V - Número 08 - Outubro de 2007 - Webmaster - Todos os Direitos Reservados