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A Fragmentação da Figura Humana na Arte: Da Representação à Virtualização do Corpo
Autora: Regilene Aparecida Sarzi Ribeiro - sarziart@ig.com.br

Resumo: O artigo busca tecer relações entre a Fragmentação da Figura Humana na Arte, entendida como a representação do corpo humano por partes, braços, pernas, torsos e cabeça na Arte Moderna e Contemporânea com o processo de Virtualização do Corpo e o advento das novas tecnologias. O recorte temporal se reporta à passagem do século XVIII para o XIX, até o século XX, quando surge uma nova configuração do olhar humano sobre si mesmo, que altera sensivelmente a representação da figura humana de um sistema representativo, pautado na tradição clássica e no respeito pelo intacto, para uma frieza e racionalidade técnica que paulatinamente expõe o corpo e sua fragilidade. As pesquisas nesta área apontam para o avanço tecnológico e para o uso dos novos meios de produção de imagens e sentidos, como um dos motivos do contato cada vez mais intenso do homem com o seu corpo. Essas maneiras de construir e se relacionar com o corpo do homem pós-moderno e as artes do corpo biocibernético, desencadearam um processo de virtualização dos corpos. O sucessivo desmembramento dos corpos e a obsessiva destruição dos cânones apontam para uma nova configuração do corpo: um corpo virtualizado e multiplicado pela fragmentação.

Palavras-chave: história da arte; figura humana; fragmentação; corpo virtual.

Abstract: The article search weave relations between the fragmentation of the Human Figure on the Art, knower how the human body representation by parts, arms, legs, torsos and head on the Modern and Contemporary Art with the process the Virtualization Body and the advent from the news technologies. The temporal cut to remit at the passage on the 18th century for 19th until 20th century, when appear the new configuration the human look about oneself. That conducts modifies sensitively the representation of human figure the one representative system, ruled on the classic tradition and respect by intact, for one coldness and technique rationalism, that showiness exposes on body and your fragility. The researches in this area point for the technologic advance and for the use the news mediums production the images and sense, how one the motives the more contacts the man with your body. Those ways the construct and to regard with the body of post-modern man and the arts biocibernetic body, unchain one process the body's virtualization. The successive bodies disintegrate and the obsessive destruction the canons point for one the new body configuration: one virtualizable and multipliable body by fragmentation.

Keywords: art history; human figure; fragmentation; virtual body.

O presente artigo tem como tema a Fragmentação da Figura Humana na Arte, entendida como a representação do corpo humano por partes: braços, pernas, torsos, cabeça; e busca relacionar o tema na Arte Moderna e Contemporânea com o processo de Virtualização do Corpo, sobretudo, com o advento das novas tecnologias.

O texto é uma parte dos resultados das pesquisas com o tema da Figura Humana e as suas mais variadas formas de representação nas Artes Visuais. Foi desenvolvido no formato de um artigo e apresentado ao final da disciplina Imagem e Novos Meios, ministrada pelo Prof. Dr. Milton Terumitsu Sogabe, no segundo semestre de 2005, no Programa de Pós Graduação em Artes Visuais - Mestrado - do Instituto de Artes da UNESP, campus de São Paulo.

Do século XVIII para o XIX, surge uma nova configuração do olhar humano sobre si mesmo, que vai alterar sensivelmente o sistema de representação da figura humana.

Antes era um sistema representativo pautado na tradição clássica, na inspiração religiosa e no respeito pelo intacto e pela imagem de um corpo belo e coeso. Agora os corpos são representados por meio de uma frieza e racionalidade técnicas que paulatinamente expõem o corpo e sua fragilidade, suas deformações e torna essa figura humana representada mais próxima do real, no sentido de aproximação com a realidade e não mais idealizada, como sempre fora pela cultura clássica.

Esse foco sobre si mesmo, desloca o olhar do homem do Divino para o seu próprio ser, para o seu corpo real. Por conseguinte, o corpo é agora colocado em evidência e à disposição da arte e da ciência conforme afirma Coli: "De imagem divina até o Neoclassicismo o Corpo passa a ser exposto no século 19 em toda a sua fragilidade e a se constituir numa poética do fragmento contra as certezas científicas e a tirania da perfeição". (COLI, 2002, p.5)

Tal comportamento, marcado, sobretudo, pela emancipação cultural do corpo que durante séculos foi representado como símbolo da integridade humana e espelho da beleza e da divindade e que agora sofre uma divisão entre sujeito e objeto, passa agora a ser suporte do eu, mas também de outros. O corpo é ao mesmo tempo a encarnação e a representação, a carne e imagem da carne.

Essa nova relação do homem para com o seu corpo passa a existir na medida em que, segundo Villaça e Góes, "[...] a instabilidade ou impossibilidade da representação corporal surge como efeito de fatores como o abandono da concepção divina dos corpos, o crescimento do materialismo com as teorias do homem-máquina, base de uma relação mais técnica do que ética com o corpo e a crise do humanismo depois das grandes guerras". (VILLAÇA E GÓES, 2001, p.132).

As pesquisas nesta área apontam para o avanço tecnológico e para o uso dos novos meios para a produção de imagens e sentidos, como um dos motivos do contato cada vez mais intenso do homem com o seu corpo. E a relação com o corpo - objeto amplificada pode atingir o clímax com o despertar das artes do corpo biocibernético[1], como o denomina Santaella (2003).

Para Levy, essas maneiras de se construir e se relacionar com o corpo do homem pós-moderno, desencadearam um processo de "virtualização dos corpos" (LEVY, 1996, p.27). É para esse movimento que este breve estudo pretende se dirigir.

Da Representação do Corpo

Movido pelo ideal do Humanismo, que pode ser compreendido como a valorização do homem e da natureza em oposição ao divino e ao sobrenatural, o Renascimento perdurou entre os séculos XV e XVI e foi muito mais que o simples reviver da antiga cultura greco-romana, caracterizado pelo grande movimento cultural em direção ao indivíduo e à pesquisa do real.

Em A lição de Anatomia do Doutor Tulp (1632) de Rembrandt (1606-1669) ele se utiliza de recursos pictóricos e do uso da gradação de meios tons e das penumbras que envolvem os personagens da cena e uma intensa luz no corpo do cadáver, que está sendo dissecado, para criar um clima de descoberta e curiosidade pelo tema. Este recurso estabelece uma relação significativa com a pintura de figura humana da época.

Para Silva essa obra de Rembrandt, é "um exemplo clássico do início de um novo período no que se refere à concepção de corpo e que é impensável em épocas anteriores, porém o desenvolvimento da ciência tradicional traz uma valorização do conhecimento inexistente até então." (SILVA, 2001, p.17).

No Neoclassicismo (1780/1830) o projeto de beleza, que é proposto como instrumento de conhecimento universal e visava abranger todos os ramos do saber humano, buscou melhorar o mundo através do retorno à razão e de um agudo senso de moralidade. "Essa forma de racionalização, que apresenta suas raízes nas perspectivas de Descartes e Newton, se estende a vários setores da sociedade, inclusive à Arte." (SILVA, 2001, p.18). 

A representação do corpo humano ainda significava o centro e o apogeu da arte neoclássica e o respeito pelo entendimento das formas humanas era tanto, que o aprendizado neoclássico previa primeiro a pintura dos modelos nus, para depois representá-los vestidos. Para Coli, essa postura "coincide com o respeito religioso pela intacta coesão do corpo" e passa "agora, pela visão científica, as partes, organizadas e em função, produzem o todo". (COLI, 2002, p.5).  

A revolução iluminista, marcada pela postura científica e metódica, vinculou a desmontagem do corpo em partes à compreensão do todo. No final do século XVIII, enquanto a arte neoclássica estabelecia o estudo das partes do corpo humano, com a finalidade de representar melhor o conjunto perfeito, era construída a Guilhotina. Esse instrumento, além de garantir a todos os criminosos o mesmo tipo de morte, já que antes os plebeus eram enforcados e os aristocratas, decapitados, colocou o cadáver humano em evidência e junto com as guerras modernas do período napoleônico, milhares de pessoas são mortas e aleijadas.

As características da representação da figura humana, que vão sendo alteradas com as transformações de cada época, com o Romantismo (séc. XIX) são modificadas pela dramaticidade e sensibilidade dos temas e revelam aspectos que se contrapõem: como a beleza dos corpos humanos em oposição à dor e ao sofrimento que essa mesma condição humana é capaz de proporcionar aos seres humanos.

Estudos realizados para a tela A Balsa da Medusa (1819), do pintor francês Théodore Géricault (1791-1824), apresentam o tema singular de pedaços de pernas e braços humanos. Partes de corpos, que Géricault preferiu não identificar quem eram, demonstram a intenção do artista de não reconstruí-los e sim de representá-los fragmentados. Estes pedaços do corpo humano podem ser observados na obra Fragmentos Anatômicos (1818), que Coli define como "figurações de partes mortas, a espera de putrefação" (COLI, 2002, p.8) e exemplifica bem o espírito dessa época.

Já em meados do século XIX, surge na França o Realismo, que influenciou profundamente tanto a arte de vanguarda da época quanto à arte oficial e ficou caracterizado, sobretudo, por uma reação às visões subjetivas da natureza e da fantasia exagerada da paisagem romântica.

Tais reações representavam os sentimentos e as convicções de um grupo de jovens artistas comprometidos e definiu-se como base para o Impressionismo. Entre os artistas, Gustave Coubert (1819-1877) e Édouard Manet (1832-1883), são considerados fundamentais para a geração dessa nova arte.

Movimento artístico que revolucionou profundamente a pintura, o Impressionismo (1874) deu início às grandes tendências da arte do século XX. Em termos gerais os artistas impressionistas, através da observação do efeito da luz sobre os objetos, procuraram retratar em suas pinturas essas constantes alterações que a luz provoca na natureza.

Quanto à figura humana, destacamos Edgar Degas (1834 - 1917), sobretudo por sua preocupação em apreender o momento do movimento ou da expressão do corpo, como nas telas Ensaio de Bale no Palco (1873) e O Ensaio (1877). Uma de suas contribuições mais significativas para a pintura moderna é a angulação oblíqua e o enquadramento das cenas, que mostram a grande influência da fotografia sobre sua obra.    

Por volta de 1830, a invenção da Fotografia revela, através dos planos de composições e percepção mais detalhada de imagens, coisas que o olhar humano, mais lento e menos preciso, não conseguia captar.  Surgem as discussões entre a pintura e a fotografia, "a hipótese de que a fotografia reproduz a realidade como ela é e a pintura a reproduz como a se vê é insustentável: a objetiva fotográfica reproduz, pelo menos na primeira fase de seu desenvolvimento técnico, o funcionamento do olho humano." (ARGAN, 1992, p.79)

O amplo registro dos movimentos, a disposição e a iluminação dos objetos, bem como os enquadramentos e os novos enfoques trazidos pela fotografia, possibilitaram ao pintor mais dinamismo, riqueza de detalhes e a desconstrução dos contornos dos objetos, face à deformação que a foto causa ao captar a velocidade do movimento de um objeto.

Segundo Rosa Olivares[2] o olhar humano é o instrumento que mais "fragmenta" as imagens que são produzidas ao redor do próprio ser humano, e afirma ainda que "[...] a arte se faz basicamente com o olhar; por isso a história da arte, a história das imagens, sagradas ou artísticas, é repleta de fragmentos de corpos. Somente a câmera fotográfica e posteriormente a imagem cinematográfica conseguiram igualar-se ao olho [...]." (OLIVARES, 1998, p.508).

Em 1907, influenciado pelas pesquisas de Paul Cézanne (1839 -1906), pelos precursores do Cubismo (1908) assim como pela Arte Africana, o artista espanhol Pablo Picasso (1881-1973) pinta [fig. 01] "Les Demoiselles d'Avignon" (1907) e realiza, segundo Argan (1992), a primeira ação de ruptura na História da Arte Moderna. Nesta obra, Picasso decompõe o fundo e as figuras humanas em inúmeros planos rígidos e agudos. A pintura representa mimeticamente o tema da Figura Humana, mas o espaço se torna multifacetado, onde figura e fundo; forma e espaço não se distinguem.

Fig. 01 - Pablo Picasso - Le demoiselles d’Avigon (1907). Óleo sobre tela - 2,44 x 2,33 m. Nova York, Museum of Modern Art - http://www.moma.org/colection

Picasso abre caminho para o Cubismo Analítico (1908) que quebra a relação espaço-forma e revela uma continuidade absoluta entre o objeto e o espaço. Segundo Argan: "[...] a imagem parece esboçada, talhada, gravada no espaço, que se converte em matéria sólida [...]", (ARGAN, 1992, p.680), ao mesmo tempo em que penetra na superfície da pintura.

Em 1937, Picasso pinta para o pavilhão da República Espanhola na Exposição Internacional de Paris, o mural [fig. 02] "Guernica" (1937). Este painel[3] pode ser considerado um exemplo de fragmentação do tema da figura humana e nele o artista explora as distorções, fragmentações e metamorfoses que dilaceram o corpo humano em partes.

Fig. 02 - Pablo Picasso - Guernica (1937). Têmpera sobre tela - 3,54 x 7,82 m. Madri, Cason del Bon Retiro - www.picasso.fr

Paralelamente movimentos como o Futurismo (1910), Dadaísmo (1914) e o Surrealismo (1917) através de seus pensamentos e manifestos geram novas tendências no tratamento da figura humana nas Artes Plásticas. Como o Futurismo, que defende o movimento enquanto velocidade traduzida como uma força física que deforma os corpos até o limite de sua elasticidade, revelando no efeito o dinamismo invisível da causa.

Em Marcel Duchamp (1887-1968), figura determinante para o Dadaísmo, a mudança ocorre na estrutura do objeto. Na obra [fig.03] Nu descendant un escalier Nº. 2 (1912), Duchamp desmembra o corpo humano, multiplica seus componentes, altera o tipo morfológico de seus órgãos internos e muda o sistema do seu funcionamento biológico para uma mecânica mais condizente com a sociedade moderna.

Fig. 03 - Marcel Duchamp - Nu descendant un escalier Nº. 2 (1912-16). Aquarela, tinta, lápis e pastel sobre papel fotográfico - 1,47 x 0,89 m. Filadélfia, Museum of Art - http://www.philamuseum.org

Entre 1945 e 1950 "[...] a decomposição cubista permanece como a grande descoberta do século, mas deve ser explosiva e não analítica, refletir no rompimento da forma a imagem do real elaborada pela consciência dilacerada contraditória do homem do nosso tempo" (ARGAN, 1992, p. 534). Com a Nova Figuração (ARGAN, 1992, p.559), o que fica em evidência não é a questão do reconhecimento ou não da figura do corpo. A nova imagem ressalta que ela não se resume somente neste caráter da representação da figura humana e sim no valor que se confere a ela.

Nesse contexto citamos o artista inglês [fig. 04] Francis Bacon (1909-1992) e a sua polêmica produção pictórica, que "[...] assinala o limite extremo da desvalorização, da degradação voluntária não apenas da figura, mas da pintura como arte da figuração." (ARGAN, 1992, p.559). Ainda em Argan e sobre Bacon, fica clara a intenção de desconstrução da imagem do corpo e a polêmica da Nova Figuração: "[...] é absurdo falar em 'nova figuração' para a deliberada e atroz desfiguração de Bacon" (ARGAN, 1992, p. 489), que se apropria da figura humana para deformá-la e depreciá-la diante do público.

Fig. 04 - Francis Bacon - Estudo para retrato no divã dobrado (1963). Study for Portrait on Folding Bed. Óleo sobre tela - 1,98 x 1,47 m. Collection The Estate of Francis Bacon - http://www.tate.org.uk

Outro artista que explorou a fragmentação da figura humana foi [fig. 05] Andy Warhol (1930-1987), grande idealizador da Pop Art americana (1960), considerado um dos precursores do uso dessa temática na pintura contemporânea. Sobre seus torsos esclarece King: "Ao rever as imagens de Warhol de corpo humano, tem-se a impressão que o artista preferia focalizar as partes ou fragmentos, como as cabeças, torsos, pênis ou pés" (KING, 1996, p.42).

Fig. 05 - Andy Warhol - Torso (1977). Tinta sintética polímera e serigrafia sobre tela - 1,27 x 1,015 m. The Andy Warhol Foundation for the Visual Arts - http://www.warholfoudation.org

A partir da década de 60 a Arte Objetual, que surge com o Novo Realismo[4], propõe que a Arte se liberte da razão e da representação dos objetos, o corpo humano passa então a ser explorado como linguagem artística, e o movimento da Body-Art (1965) buscam a dimensão perceptual do corpo e não apenas sua materialidade.

Iniciado por volta de 1965, o movimento da Body-art teve nos alemães e austríacos seus principais adeptos, seguidos por ingleses e italianos. No Brasil, Ligia Clark, Lygia Pape. Antonio Manuel e Hélio Oiticica, protagonizaram o movimento na esfera nacional. Destaque para Lygia Clark (1920-1988), que afirma: "[...] Não é o corpo, mas a fantasmática do corpo que me interessa" (citada por CANTON, 2002, p.229), ou seja, um corpo ausente na materialidade do corpo.

O corpo para a body-art, concebido como um corpo investido de anotações míticas e fetichistas condicionadas pela sociedade, devia ser desmistificado a fim de que cada pessoa pudesse se manifestar ou se expressar naturalmente. É por esse motivo, entre outros, que as manifestações da body-art são sempre tão violentas e agressivas, tendo como base o próprio corpo do artista para a expressão conceitual.

Como o exemplo clássico da body-art temos a artista plástica [fig.06] Gina Pane, cujos rituais de autoflagelação e sofrimentos, como queimaduras e cortes produzidos por ela em seu corpo, como relata Cavalcanti: "No final, Pane talhou o ventre com uma lâmina em volta do umbigo (símbolo dos Cosmos), testemunho sobre nossos corpos de pertencerem num passado pré-histórico a outro ser" (Cavalcanti, citado por BIANCARDI, 1975, p. 7).

Fig. 06 - Gina Pane - Action Psyché (1974). Performance, incisões de lâminas de gilete sobre a pele - http://www.artcomgroup.com

Para Santaella a body-art participa desse processo de fragmentação e virtualização da imagem do corpo e, por conseguinte, das mudanças na relação do homem com o seu corpo, "[...] no momento mesmo em que, na trajetória da arte do século XX, a exploração do corpo do artista reduzido a si mesmo atingiu o seu limite, o seu ponto de saturação, no final dos anos 1970, uma outra grande transformação na relação do artista com o corpo, não apenas o seu próprio corpo, mas o corpo em geral, começou a se insinuar com o advento das tecnologias computacionais, da engenharia molecular, da explosão das tele-redes de informação e comunicação e das nanotecnologias." (SANTAELLA, 2003, p.66).        

Da Virtualização do Corpo

Nossa reflexão busca estabelecer relações entre o processo de Fragmentação da Figura Humana desencadeado na virada do século 18 para o 19, quando o fragmento ganha autonomia e se estabelece como um estilo no tratamento da figura humana, e o fenômeno da Virtualização do Corpo apontada por Levy como uma "[...] nova etapa na aventura de auto-criação que sustenta nossa espécie." (LEVY, 1996, p.27).

Para Levy a virtualização do corpo humano ocorre na medida em que, "[...] nossa vida física e psíquica passa cada vez mais por uma 'exterioridade', complicada na qual se misturam circuitos econômicos, institucionais e tecnocientíficos." (LEVY, 1996, p.27).

Ainda, segundo Levy uma das funções físicas do corpo humano que é mais afetada por esse processo de virtualização do corpo é a percepção[5], cada vez mais externalizada e projetada para fora do corpo físico do homem. Essa externalização da percepção, promovida pelas novas tecnologias, nos lança para fora do nosso corpo o tempo todo, mas é reinventada permanentemente através das experiências que vivenciamos.

Portanto, com as novas tecnologias, "[...] o corpo sai de si mesmo, adquire novas velocidades, conquista novos espaços. Verte-se no exterior e reverte a exterioridade técnica ou a alteridade biológica em subjetividade concreta. Ao se virtualizar, o corpo se multiplica." (Levy, 1996, p.33). Pierre Levy conclui que "[...] a virtualização do corpo, não é, portanto, uma desencarnação, mas uma reinvenção, uma reencarnação, uma multiplicação, uma vetorização, uma heterogenese do humano." (LEVY, 1996, p.33).

Ao observarmos algumas obras contemporâneas que exploram o corpo como tema e que usam as novas tecnologias para sua poética, fizemos algumas relações com algumas obras contemporâneas com as clássicas do período Neoclássico, como as lições de anatomia e a representação de fragmentos do corpo humano. Tal exercício iconográfico visa refletir sobre a fragmentação da imagem da figura humana como parte integrante deste processo de virtualização do corpo do homem, já que um dos resultados apontados por Levy é a multiplicação desse corpo e da imagem desse corpo, via as novas tecnologias.

Proponho uma comparação entre o pintor francês Théodore Géricault (1791-1824) e a artista multimídia brasileira Diana Domingues. Trata-se da observação dos estudos realizados para a tela [fig. 07] A Balsa da Medusa (1819) que apresentam o tema singular de pedaços de pernas e braços humanos, como na obra Fragmentos Anatômicos (1818) e a obra [fig. 08] A Ceia (1994) da artista plástica brasileira Diana Domingues, pertencente à série de vídeo-instalações "TRANS-E: o corpo e as tecnologias".

Fig. 07 - Théodore Géricault - Estudo para Balsa da Medusa  (1818- 19). Óleo sobre tela - 0,37 x 0,46 m. Coleção Musée du Louvre, Paris - http://www.louvre.fr

Fig. 08 - Diana Domingues - “A Ceia” (1994). Imagens de videolaparoscopia, tonéis de ferro e peles de animais. Coleção particular - http://www.artecno.usc.

Neste ambiente - instalação Diana Domingues, segundo Lúcia Santaella, apresenta:

"[...] pedaços de corpo produzidos por videolaparoscopia, vistos dentro de tonéis de ferro. O calor do corpo do visitante, captado por sensores infravermelhos, faz um líquido pingar e escorrer sobre os tonéis, recebendo e dando sua energia. Simetricamente, doze peles de animais, seis de cada lado dos tonéis, como corpos secos, contrastam com as vísceras humanas 'vivas por imagens'. O corpo do participante desloca-se entre corpos videográficos, entre vestígios de corpos virtuais e envia sinais de vida que fazem que os aparelhos, ao pingar, assumam funções vitais." (SANTAELLA, 2003, p.80).

Se recordarmos o comentário de Coli sobre a obra de Géricault e sua intenção de mostrar os fragmentos expostos em putrefação como "figurações de partes mortas, a espera de putrefação" (COLI, 2002, p.8). Podemos concluir que a relação entre as imagens daquela pintura (concebida em 1818) e as imagens que Diana usa para sua instalação (176 anos após), é a exposição explicita do corpo humano em fragmentos, cortados e separados do corpo intacto e original.

Uma necessidade secular de representar e de ver (o grifo é meu) o corpo em sua fragilidade, mutilado, multiplicado. Uma externalização comparada a virtualização do corpo, de que nos fala Levy (1996). Este corpo pode ser visto por dentro, através das imagens de Diana e por fora, através da exposição de suas carnes, expostas visceralmente através dos aspectos da morte, nas imagens de Géricault. O corpo humano, que em ambas as obras vive e morre, representa a necessidade da Arte de mostrá-lo, fragmentado, multiplicado, escancarado, real e exposto em sua materialidade e fragilidade física. Géricault explora o ilusionismo pictórico, as técnicas miméticas da época e atinge o realismo através da representação do corpo em sua fragilidade, suas carnes e a visão da morte. Enquanto que, Diana Domingues, expõe a sua visão da crueza da carne; dos tecidos humanos; das reentrâncias do corpo (SANTAELLA, 2003) e a vida que flui e pulsa no corpo humano, através da tecnologia e dos novos meios técnicos, como a vídeo-instalação, poeticamente utilizados pela arte contemporânea e coerente com a época e a experiência da artista.  

Dessa forma, parece que realmente a representação da figura humana fragmentada na arte, pode ser considerada como parte significante de um processo de virtualização do corpo do homem e de sua relação com essa nova maneira de se olhar, já despertado pelos primeiros contatos com a ciência e a razão no Iluminismo.

Mas é em Santaella (2003), que encontramos uma opinião que fortalece nossas reflexões acerca da fragmentação da figura humana como parte de um processo de transformação na relação do homem com o seu corpo. Fragmentação, que passa pela crise da representação até a virtualização de Levy, explorada na arte contemporânea, sobretudo, pelas artes do corpo biocibernético, do qual nos fala Santaella: "[...] a problemática do corpo não é, portanto, privilégio da arte tecnológica. A meu ver, sua intensificação crescente em todos os campos da arte foi uma antecipação que veio preparando o terreno para as artes do corpo biocibernético." (SANTAELLA, 2003, p.68).

O sucessivo desmembramento dos corpos e a obsessiva destruição dos cânones de representação de um corpo intacto, belo e perfeito, apontam, portanto, para uma nova configuração do corpo: um corpo virtualizado, multiplicado pela fragmentação, representado, sobretudo, pela arte, ao mesmo tempo real e virtual. O corpo biocibernético, virtualizado e fragmentado.

Referências Bibliográficas:

ARGAN, G.C. Arte Moderna: do Iluminismo aos movimentos contemporâneos. Trad. Denise Bottman e Frederico Carott.  São Paulo: Companhia das Letras. 1992.

BIANCARDI, C.S.C. Os Caminhos da "Body - Art". Trabalho da disciplina Procedimentos e Técnicas de Pesquisa II. São Paulo: ECA - USP, 1975.

CANTON, K. Arte Contemporânea e Corpo Virtual. In LEÃO, L. (org.), INTERLAB, São Paulo, Ed. Iluminuras, 2002.

COLI, J. O Fascínio de Frank Einstein. Folha de São Paulo. São Paulo, 02/06/2002. Caderno Mais! No. 538, p. 4-11.

SILVA, A.M. O Corpo do Mundo: algumas reflexões acerca da expectativa de corpo atual. In GRANDO, J.C. A (Des) Construção do Corpo. Blumenau: Edifurb, 2001.

KING, M. Rostos Conhecidos, Órgãos Genitais, os Retratos e Torsos de Andy Warhol. In FUNDAÇÃO BIENAL DE SÃO PAULO. Catálogo 23ª Bienal Internacional de São Paulo: Salas Especiais. São Paulo. 1996. Vol.01, p. 40-53.

LEVY, P. O que é o Virtual. Trad. Paulo Neves, São Paulo, Ed. 34, 1996.

OLIVARES, R. Pedaços de Nós Mesmos. In FUNDAÇÃO BIENAL DE SÃO PAULO. Catálogo 24ª Bienal de São Paulo: Núcleo Histórico - antropofagia e histórias de canibalismos, São Paulo, vol. 01, 1998, p. 508-512.

SANTAELLA, L. As Artes do corpo biocibernético. In DOMINGUES, Diana (org.) A Arte e a vida no século XXI, São Paulo: Ed. UNESP, 2003.

VILLAÇA, N. e GÓES, F. A Emancipação cultural do corpo. In VILLAÇA, N. e GÓES, F. (org.) Nas Fronteiras do Contemporâneo: território, identidade, arte, moda, corpo e mídia. Rio de Janeiro: Ed. Mauad/ FUJB, 2001.

Notas:

[1] "[...] por artes do corpo biocibernético quero significar as artes que tomam como foco e material de criação as transformações por que o corpo e, com ele, os equipamentos sensório-perceptivos, a mente, a consciência e a sensibilidade do ser humano vêm passando como fruto de suas simbioses com as tecnologias." (SANTAELLA, 2003, p.65).  

[2] Neste texto, traduzido do espanhol por Sandra Cowie, para o Catálogo da XXIV Bienal de São Paulo - Núcleo Histórico: Antropologia e Histórias de Canibalismos (1998), Rosa Olivares trata a fragmentação como uma forma do homem-artista se relacionar com seu próprio corpo e relata diferentes processos de fragmentação em obras de artes visuais.

[3] Sobre Guernica, afirma Argan: "Com ele morre a arte, a civilização 'clássica', a arte e a civilização cuja meta era o conhecimento, a compreensão plena da natureza e da história" (Argan, 1992, p.476).

[4] Para Argan: "[...] movimento que, em 1960, toma o nome de Nouveau Réalisme não compromete nem limita a liberdade de criação dos artistas do movimento. Mostram-nos o real nos diversos aspectos de sua totalidade expressiva" (Argan, 1992, p.555).

[5] Ver Levy,1996, p.28.

 

Revista Digital Art& - ISSN 1806-2962 - Ano V - Número 08 - Outubro de 2007 - Webmaster - Todos os Direitos Reservado

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