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Apontamentos sobre o Jogo à partir de Peter Slade e Viola Spolin [1]
Autor:
Fabiano Tadeu Grazioli - tadeugraz@yahoo.com.br

Resumo: O texto focaliza algumas contribuições de Peter Slade e de Viola Spolin para os estudos relacionados ao jogo, destacando as categorias que cada autor assinalou no trabalho de compreendê-lo e sistematizá-lo.  Aborda também a possibilidade de o jogo evoluir das categorias mais simples para as mais complexas, resultando em experiências significativas com a linguagem teatral.

Palavras-chave: jogo teatral, jogo dramático, expressão dramática.

Abstract: The text focuses on some contributions of Peter Slade and Viola Spolin for the studies related to the game, approaching the categories that each author pointed out in the way to understand and systemize it. It also approaches the possibility of the game to elevate from the simplest categories to the most complex ones, resulting in significant experiences with the theatrical language.

Keywords: theatrical game, dramatical game, dramatical expression.

1. Considerações iniciais

A relação entre teatro e jogo é estreita, pois muitos são os diretores que partem da prática desta atividade para conceber seus espetáculos. Segundo Koudela (1992, p.148), o processo de trabalho com jogos “visa efetivar a passagem do teatro concebido como ilusão para o teatro concebido como realidade cênica”. Tão estreita quanto a relação teatro-jogo é a relação entre jogo e vida. Essa dependência fica evidente, quando Peter Slade trata da ausência do ato de jogar na vida do indivíduo:

A falta de jogo pode significar uma parte de si mesmo permanentemente perdida. É esta parte desconhecida, não criada, do próprio eu, esse elo perdido, que pode ser a causa de muitas dificuldades e incertezas nos anos vindouros (SLADE, 1978, p.20).

Tanto no teatro quanto na vida, o jogo constitui um elemento fundador. Diversos estudiosos do teatro e das áreas do conhecimento relacionadas a ele se dedicaram ao estudo do jogo. A partir da década de cinqüenta, do século passado, surgiram muitos trabalhos a respeito do tema e também diversas propostas educacionais que buscam nele a sua fundamentação. Nessa profusão de psicólogos, arte-educadores, diretores teatrais e professores que já contribuíram para uma discussão séria sobre o tema, surgiram diversos pensamentos que, embora se nutrissem de algumas fontes comuns, deram ao tema enfoques distintos. Desse modo, a expressão jogo, que designa a criação e a improvisação coletiva, passou a receber diversos complementos que acrescentavam a ela o sentido específico com que cada estudioso a designava.

2. Peter Slade

Richard Courtney em Jogo, Teatro e Pensamento: as bases intelectuais do teatro na educação, aponta Slade, como precursor do teatro criativo[2].  Nos seus estudos sobre o jogo, Slade (1978, p.17) propõe a terminologia jogo dramático infantil e assim a define: “é uma forma de arte por direito próprio, não é uma atividade inventada por alguém, mas sim o comportamento real dos seres humanos.” Segundo ele, o jogo dramático “é uma parte vital da vida jovem. Não é uma atividade de ócio, mas antes a maneira de a criança pensar, comprovar, relaxar, trabalhar, lembrar, ousar, experimentar, criar e absorver” (SLADE, 1978, p.17).

O autor atribui à ação de jogar (no sentido de brincar, fazer de conta) o impulso primordial, a raiz do jogo dramático. A brincadeira pode ser a de representar o jogo e essa brincadeira teatral infantil pode apresentar ocasiões de caracterização e situação emocional tão nítidas que a fazem ascender para o jogo dramático infantil. As categorias que Slade propõe não estão de acordo com a distinção entre jogo realista (onde a situação a ser encenada é pré-estabelecida pelo orientador, seja ele o professor ou o diretor teatral) e jogo imaginativo (atividade na qual a encenação é fruto da imaginação e criatividade do indivíduo e não conta com qualquer interferência externa), como estabelecem alguns teóricos. Na sua opinião,

[...] “o jogo (e certamente nos estágios mais precoces) é tão fluído, contendo a qualquer momento experiências da vida cotidiana exterior e da vida imaginativa interior, que se torna discutível se um deveria ser encarado como uma atividade distinta do outro. É importante, naturalmente que a diferença seja compreendida, mas a distinção pertence mais ao intelecto do que ao jogo propriamente dito. A criança sadia se desenvolve para a realidade à medida que vai ganhando experiência de vida” (SLADE, 1978, p. 19).

O jogo realista não é refutado por Slade; pelo contrário, é sugerido por ele dentre as dinâmicas e exercícios que descreve e propõe. O que ele não quer é que se efetive uma divisão entre esse e o jogo imaginário, uma vez que, na prática, ambos dificilmente são dissociados. Desse modo, entendendo a prática do jogo como encaminhamento fundamental para a sua teorização, o autor propõe a distinção entre jogo projetado e jogo pessoal. O primeiro caso é “mais evidente nos estágios mais precoces da criança pequena, que ainda não está pronta para usar seu corpo totalmente” (SLADE, 1978, p. 19). "Por conta disso, no jogo projetado, o corpo é usado com algumas restrições, ao contrário da mente, que é amplamente ativada. Há uma tendência à quietude e a principal parte do corpo utilizada são as mãos, pois essa categoria conta com a presença de objetos ou brinquedos que “ou assumem caracteres da mente ou se tornam parte do local [...] onde o drama acontece” (SLADE, 1978, p. 19).

O jogo pessoal se manifesta aproximadamente aos cinco anos de idade e se intensifica de acordo com o controle que a criança exerce sobre o corpo. De acordo com Slade “é o drama óbvio: a pessoa inteira ou o ‘eu’ total é usado. Ele se caracteriza por movimento e notamos a dança entrando e a experiência de ser coisas ou pessoas” (1978, p. 19). Nota-se, nesse caso, a disposição da criança para o barulho e para o esforço físico.

Quanto à influência do jogo na vida da pessoa, podemos esperar, segundo Slade, contribuições específicas de cada categoria. Do jogo projetado pode-se ter, como provável, o desenvolvimento de atividades relacionadas à arte, jogos e esportes calmos, bem como a habilidade em ler e escrever. Já do jogo pessoal, espera-se contribuição na propagação das mais variadas formas de atuação, tais como esportes que envolvem ação, liderança e controle pessoal.

3. Viola Spolin

No rol dos autores que se propuseram a estudar o jogo, Viola Spolin tem lugar de destaque. A autora dedicou sua carreira de professora de teatro à sistematização de uma proposta para o ensino desta arte em diversos e opostos contextos. Sua definição de jogo articula os princípios que destacamos como fundamentais para o desenvolvimento da arte dramática, como envolvimento, estimulação da criatividade, liberdade criadora e, principalmente, a oportunidade de experimentar, conforme podemos conferir:

O jogo é uma forma natural de grupos que propicia o envolvimento e a liberdade pessoal necessários para a experiência. Os jogos desenvolvem as técnicas e habilidades pessoais necessárias para o jogo em si, através do próprio ato de jogar. As habilidades são desenvolvidas no próprio momento em que a pessoa está jogando, divertindo-se ao máximo e recebendo toda a estimulação que o jogo tem para oferecer – é este o exato momento em que ela está verdadeiramente aberta. (SPOLIN, 1992, p. 4.).

A experiência é, para Spolin (1992, p. 4), resultado do jogo, e, considerando qualquer pessoa capaz de experimentar, ela afasta do seu programa de oficinas qualquer suposição que pretenda relacionar o jogo à presença ou à ausência do talento:

Todas as pessoas são capazes de atuar no palco. Todas as pessoas são capazes de improvisar. As pessoas que desejarem são capazes de jogar e aprender a ter valor no palco. Aprendemos através da experiência, e ninguém ensina nada a ninguém. Isto é válido tanto para a criança que se movimenta inicialmente chutando o ar, engatinhando e depois andando, como para o cientista com suas equações. Se o ambiente permitir, pode-se aprender qualquer coisa, e se o indivíduo permitir, o ambiente lhe ensinará tudo que ele tem para ensinar. “Talento” ou “falta de talento” tem muito pouco a ver com isso (SPOLIN, 1992, p. 4).

Na perspectiva da autora, a experiência provém da interação entre indivíduo e ambiente e não há limites para ela ensinar a quem se disponha a jogar. Quanto ao tratamento que Spolin dá ao jogo, no sentido de adequá-lo a uma das categorias já citadas, inferimos que o jogo realista, ligado à vida exterior da criança, também conhecido como jogo de regras, por estabelecer, de antemão, os passos elementares da atividade a ser desenvolvida, é o princípio de seus exercícios e, desse modo, a palavra jogo, a partir de Spolin, passa a receber o complemento teatral.

Analisando as atividades que a autora propõe em seu treinamento, verificamos tratar-se de propostas esquematizadas ou pré-esquematizadas, diferenciando-se do faz-de-conta, no seu sentido natural (jogo imaginário). É dentro de um espaço e de uma cena determinados e, a partir de personagens pré-estabelecidas, que o jogo teatral se realiza. Por vezes, um ou dois desses elementos podem faltar, deixando espaço para a elaboração coletiva dos mesmos; em suma, é propondo alguns limites para a improvisação que Spolin concebe os jogos teatrais, tornando-os uma atividade de regras explícitas. Outra característica dos exercícios de Spolin é que o grupo que os pratica pode ser dividido em dois times: sujeitos que jogam e sujeitos que observam, procedimento que leva o aluno a transitar por um binômio fundamental da atividade teatral: atores e platéia.

Colocados frente a frente, percebemos que o jogo dramático rearticula as características do jogo imaginativo e o jogo teatral às características do jogo realista. A diferença fundamental entre essas categorias é que jogos dramáticos ou imaginativos possuem como princípio a livre articulação de idéias, deixando os alunos ou atores criarem e desenvolverem, por conta, as atividades. Os jogos teatrais ou realistas, por sua vez, distanciam-se dos demais por estabelecerem algumas normas e regras, tendo em vista alguns encaminhamentos pré-estabelecidos para o desenvolvimento das atividades.

4. A evolução do jogo

A par desses conceitos, salientamos uma característica dos jogos que termina por justificar a existência dessas várias categorias e reafirma a importância de cada uma delas no contexto escolar: a possibilidade de os jogos evoluírem e, numa perspectiva crescente, resultarem em dinâmicas e encenações que, de fato, constituam uma experiência significativa com a linguagem teatral. Essa idéia é levantada pelos PCN (Ensino de quinta a oitava série): “O jogo teatral é um jogo de construção em que a consciência do ‘como se’ é gradativamente trabalhada, em direção à articulação de uma linguagem artística, o teatro” (BRASIL, 1998, p. 88) [3].

O documento salienta o caráter progressivo que permeia o jogo, fazendo com que o aluno caminhe, a partir dele, para a compreensão e manipulação da linguagem teatral. Essa possibilidade também é prevista pelos PCN (Ensino de primeira a quarta série):

A dramatização acompanha o desenvolvimento da criança como uma manifestação espontânea, assumindo feições e funções diversas, sem perder jamais o caráter de interação e de promoção de equilíbrio entre ela e meio ambiente. Essa atividade evolui do jogo espontâneo [jogo dramático] para o jogo de regras [jogo teatral], do individual para o coletivo (BRASIL, 1998, p. 88).

De acordo com o referido texto, salientamos que a evolução do jogo, das categorias mais simples para as mais complexas, é inerente à criança, ou seja, ela encontra correspondência no seu desenvolvimento. Nesse sentido Koudela (1992, p.148.) assegura que “a mesma revolução que ocorre com a criança em desenvolvimento pode ser acompanhada no processo de crescimento do indivíduo no palco.” Assim, a dramatização funciona como mediadora entre a criança e o mundo, possibilitando a interação e o equilíbrio necessários para um desenvolvimento sadio. 

O crescimento sucessivo das modalidades do jogo também é notificado por Courtney: “Na medida em que a criança vai se tornando mais velha, ela gradualmente necessita de uma platéia, assim há um tipo de jogo para cada idade determinada, e a educação deve propiciar-lhe um desenvolvimento da experiência dramática” (COURTNEY, 2003, p. 47).

Ao sugerir a necessidade de platéia para a criança, o autor está supondo a mudança do jogo dramático para o jogo teatral e também para estágios mais avançados, como a encenação teatral. Essa idéia também é assimilada por Marie Dienesch (In: REVERBEL, 1988, p. 109), que afirma que “o Jogo Dramático constitui-se na melhor e indispensável preparação ao teatro para os alunos que, especialmente dotados, poderão abordar uma forma de arte mais complexa e mais elaborada”.

A passagem de um estágio a outro, ao longo do desenvolvimento intelectual da criança, é explicada por Koudela como

[...] “uma transição muito gradativa, que envolve o problema de tornar manifesto o gesto espontâneo e depois levar a criança à decodificação do seu significado, até que ela o utilize conscientemente, para estabelecer o processo de comunicação com a platéia (KOUDELA, 1992, p. 45)”.

A autora caracteriza a mudança de uma categoria à outra na medida em que a expressão da pura imaginação passa a ter um sentido consciente de comunicação, traçando, assim, a diferença essencial aos dois níveis do jogo.

5. Conclusão: jogo e teatro na escola

A evolução do jogo é também focalizada pela diretora e professora de teatro Olga Reverbel, que encaminha suas considerações para o campo escolar, apontando o jogo como uma forma de expressão que pode acompanhar o aluno em qualquer estágio:

O jogo dramático é uma atividade rica que pode ser aplicada em qualquer série, da pré-escola ao 2º grau [...]. O que varia é o tema do jogo, que tende a tornar-se progressivamente mais complexo, acompanhando a faixa etária dos participantes. (REVERBEL, 1988, p. 112)

O jogo deve ser cultivado, portanto, como um modo de fortalecer o processo de expressão, que é intrínseco ao ser humano. Construindo representações, indiferente do nível ou da categoria do jogo, o aluno registra e lê o mundo que está ao seu redor.  Tal oportunidade deve ser deve ser garantida à criança desde a mais terna infância, e assegurada quando a mesma entra na escola, conforme registram os PCN (Ensino de primeira a quarta série):

A criança, ao começar a freqüentar a escola, possui a capacidade da teatralidade como um potencial e como uma prática espontânea vivenciada através dos jogos de faz-de-conta. Cabe à escola estar atenta ao desenvolvimento do jogo dramatizado oferecendo condições para o exercício consciente e eficaz, para aquisição e ordenação progressiva da linguagem dramática. Deve tornar consciente as suas possibilidades, sem a perda da espontaneidade lúdica e criativa que é característica da criança ao ingressar na escola (BRASIL, 1997, p. 84).

Por meio do jogo e do caminho consciente por suas etapas e categorias, o indivíduo pode chegar ao conhecimento e à utilização da linguagem teatral. Na verdade, a prática do jogo não seria uma oportunidade que a escola estaria oferecendo, mas sim uma garantia do desenvolvimento de aspectos corporais e intelectuais que estão, desde muito cedo, latentes no indivíduo como que esperando para serem desenvolvidos.

6. Referências Bibliográficas

BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. PCN: Arte. (Educação Fundamental – primeira à quarta série). Brasília, 1997.

________. Ministério da Educação e do Desporto. PCN: Arte. (Educação Fundamental – quinta à oitava série). Brasília, 1998.

COURTNEY, R. Jogo, Teatro e Pensamento: as bases intelectuais do teatro na educação. São Paulo: Perspectiva, 2003.

KOUDELA, I.D. Jogos teatrais. São Paulo: Perspectiva, 1992.

REVERBEL, O. Um caminho do teatro na escola. São Paulo: Scipione, 1988.

SLADE, P. O jogo dramático infantil. São Paulo: Summus, 1978.

SPOLIN, V. Improvisação para o teatro. São Paulo: Perspectiva, 1992.

Notas:

[1] Uma versão simplificada deste artigo foi publicada no formato de uma subseção na obra GRAZIOLI, F.T. Teatro de se ler: o texto teatral e a formação de leitor. Passo Fundo: UPF Editora, 2007.

[2] De acordo com Courtney (2003, p. 46) é a atividade teatral com suas características intrínsecas e procedimentos específicos, como uma atividade que não procura fora de si mesma justificativas para sua existência.

[3] É importante salientar que, embora utilize a nomenclatura de Spolin - jogo teatral - este documento não está se referindo à categoria desenvolvida pela autora, ou seja, a categoria análoga ao jogo de regras.

Revista Digital Art& - ISSN 1806-2962 - Ano V - Número 08 - Outubro de 2007 - Webmaster - Todos os Direitos Reservado

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