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Barroco: Percursos e Contrastes
Autora:
Angélica Sansevero - sanseveroa@terra.com.br

Resumo: Ao longo dos últimos dois séculos o Barroco tem sido constantemente reavaliado e reinterpretado por estudiosos das mais diversas correntes teóricas, com o rompimento de unanimidades e revisão de paradigmas que eram, aparentemente, sólidas definições conceituais. Ao retomar as idéias de alguns autores que trataram da estética barroca pretendemos revê-las sob o prisma da contemporaneidade, traçando um painel de como foram surgindo as diferentes concepções sobre o Barroco, das idéias que se tornaram paradigmas dentro do estudo da estética barroca e que, de certa forma, influenciaram um considerável número de movimentos e estudiosos de Arte.

Palavras-Chave: Barroco, Renascimento, Estética, Mundo Moderno e Contemporâneo.

Abstract: In the last two centuries, the Baroque Art has been steadily evaluated and reinterpreting by so many critic and academic studies, bring the end of the unanimity and a paradigm’s revision that was, until then, a sedimentary conceptual definition. Analyzing some authors that treated the baroque aesthetics, we intended to make a review, based on  the contemporary thought, building a picture of the many conceptions about the Baroque and the ideas that became paradigms in the studies of the baroque aesthetics and, by the years,  has a affected a considerable number of Art’s critics and studios.

Keywords: Baroque, Renaissance, Aesthetics, Modern and Contemporary World.

1. A construção do universo barroco

Não podemos negar que vivemos uma época marcada por contrastes. Oscilamos, diuturnamente, entre o êxtase e a depressão, entre a miséria e o fausto, entre o avanço técnico e a barbárie. Esquecemo-nos, contudo, de que essa ambivalência não é característica apenas de nossos tempos. Na verdade, em diferentes momentos históricos o tecido da estrutura social se viu retesado por essas contradições e, em inúmeras vezes, sua trama cedeu aos rompantes ocasionados por esse embate.

Alguns desses momentos marcados pela ambivalência possuem, por isso mesmo, um especial atrativo para os estudos acadêmicos. Esse é o caso das grandes transformações que influíram diretamente na organização social, como a chamada Revolução Agrícola do Neolítico, a Revolução Industrial dos séculos XVIII e XX, e a Revolução Cibernética que hoje atravessamos.

Mas também existem fatos que, por terem se estruturado a partir de manifestações ligadas a elementos estéticos particulares, foram vistos pela crítica de historiadores e sociólogos, muitas vezes, como de menor influência em relação aos mecanismos de saber e poder de nossa sociedade. Poderíamos citar como exemplo desse tipo de avaliação os estilos  Românico, Gótico e Barroco.

Entretanto, um dentre esses estilos tem sido, ao longo dos últimos dois séculos, constantemente reavaliado e reinterpretado por estudiosos das mais diversas correntes teóricas. O Barroco, especialmente, teve o poder de romper unanimidades e levar à revisão de paradigmas que eram, aparentemente, sólidas definições conceituais.

Desse modo, ao retornarmos as idéias de alguns autores que tratam da estética barroca, o que pretendemos é, sobretudo, revê-las sobre o prisma da contemporaneidade. Para isso, traçaremos um painel de como foram surgindo as diferentes concepções sobre o Barroco, isto é, daquelas idéias que se tornaram paradigmas dentro do estudo da estética barroca e que, de certa forma, influenciaram um considerável número de críticos.

O fato de vivermos uma época em que o embate de realidades extremamente distintas faz parte de nosso dia-a-dia nos leva, inadvertidamente, a uma associação desse cotidiano com o universo barroco e seus paradoxos. Na verdade, ao falarmos sobre o Barroco, estaremos buscando respostas para muitas das inquietações que nos apresentam nesse limiar do século XXI.

O homem não viu sempre a realidade como vê agora. A percepção do homem é histórica, portanto ele aprendeu a ver, criou modos de ver, desapareceu e criou outros modos. E o Barroco é um dos modos de ver a realidade, que surge em determinado momento da história da visualidade. A palavra barroco deriva da denominação dada pelos comerciantes e joalheiros ibéricos no início da Era Moderna a qualquer pérola imperfeita: “barrueco” (BAZIN, 1994, p.1).

Afora essa origem do termo, associado a algo que fugia dos padrões normais (uma pérola imperfeita), o barroco passou a designar nas Artes o “pecado da divergência” em relação ao ideal clássico da Renascença (GOMBRICH, 1990, p.109) e, por extensão, uma arte menor que desvirtuava o belo e o exato em favor de um virtuosismo exagerado e desmedido por parte dos artistas.

Propenso à evasão, o artista barroco prefere “formas que alçam vôo” às que são estáticas e densas (BAZIN, 1993, p. 2). Apaixonado pelo patético, capta sofrimentos e sentimentos, vida e morte nos extremos da violência, enquanto o artista clássico aspira a mostrar a figura  humana em plena posse de seus poderes.

Essa visão de que o Barroco seria a corrupção da perfeição greco-romana se iniciou, portanto, quase assim que surgiram as primeiras manifestações artísticas que rompiam com a estética renascentista. De fato, alguns críticos situam outro estilo, o Maneirismo, entre a Renascença e o Barroco (GOMBRICH, 1990, p. 111), mas, a nosso ver, sua indefinição entre essas duas estéticas só demonstra que ele foi, na verdade, uma transição entre duas concepções de estar-no-mundo e ver-o-mundo que são, por essência, extremamente distintas.

A Europa do século XVII vivia a consolidação de uma nova realidade, que dizia respeito não só à vida material, social, econômica, mas também às coisas do espírito, da subjetividade. Ocorria, então, uma sutil mudança no modo de os homens letrados encararem tanto o ver-o-mundo quanto o estar-no-mundo. Esse conflito é que está estampado nas obras barrocas, em sua grande maioria. Não se trata de questionar a existência de Deus, mas sim de se ter uma nova postura frente às coisas do espírito, já que o ser humano passou a se enxergar como um microcosmo repleto de vícios e desejos que precisava combater antes de louvar a Deus.

O teórico suíço Heinrich Wölfflin foi o primeiro crítico de arte a perceber que por trás do universo barroco havia muito mais a ser estudado do que apenas a degenerescência em relação ao ideal clássico renascentista. Em síntese, Wölfflin defendia que todos os estilos artísticos surgidos na Arte ocidental até o final do século XIX e início do século XX foram, na realidade, uma alternância entre duas estruturas: a clássica e a barroca. É óbvio que ao enxergar essa polaridade, tão bem demarcada Wölfflin estava deixando de lado outros aspectos do universo barroco. No entanto, a validade de seu trabalho está, justamente, no fato de ter conseguido chamar a atenção da crítica de Arte para o Barroco e, também, ter definido algumas categorias conceituais do estilo.

Em Renascença e Barroco, Wölfflin deixa explícito que há uma oposição bem demarcada entre o estilo renascentista e o barroco. Ele atribui ao primeiro uma “beleza tranqüila”, que causa um “bem-estar geral”, enquanto que o segundo domina o espectador com o “poder da emoção”, causando um turbilhão “imediato e avassalador” (1988 p.47). Na visão wölffliniana, essa polaridade e intenções e de como representá-las é que vai definir as características do Barroco, sempre em oposição àquelas do Renascimento.

Wölfflin o primeiro a perceber que o artista barroco “não evoca a plenitude do ser, mas o devir, o acontecer; não a satisfação, mas a insatisfação e a instabilidade” (1888, p. 48). Essa insatisfação pode ser entendida como a necessidade de fugir da formalidade do classicismo renascentista e, em resumo, é essa uma das principais teses de Wölfflin. Ele vê o Barroco como “um retorno a um estado informal” (1888, p.65), no sentido de a criação não estar aprisionada por regras pré-estabelecida ou padrões de representação formal.

O Barroco é marcado pela multiplicidade de elementos que o definem. Para Wölfflin, um desses elementos é o caráter pictórico que transparece em todas as manifestações artísticas barrocas. Como a característica principal do estilo pictórico é justamente o contraste entre luz e sombra, o que ele vai trabalhar, na verdade, é a massa e a matéria. E a matéria representa, por essência, a própria carne e seus desejos.

1.2. O espaço barroco

 No Barroco há uma retórica e uma exploração do trompel’oeil, ou seja, da ilusão de ótica que conduz ao delírio e à vertigem. Contraditoriamente, mais que a Renascença esta arte busca a ilusão. O sentido do real e do irreal depende basicamente do olhar, e é por ele que apreendemos os termos da realidade. A arte que trabalha com a ilusão desse sentido chega ao delírio, a violentar a noção de realidade com eficácia, pois passa a representar a irrealidade em termos de realidade.

 O Barroco consegue provocar exatamente essa vertigem por explorar elementos da visualidade e os elementos que fingem a realidade. Ele é realista por um lado, mas usa isto para criar a ilusão. Na Santa Ceia (Figura 1) de Leonardo Da Vinci, temos alguns elementos de ilusão: a ceia, o mural, está na parede de fundo do refeitório do convento. O artista imita a sala do refeitório no quadro, projeta o espaço na perspectiva mural que ele pinta e cria a ilusão de que esse espaço real se prolonga no quadro. Faz com que a Santa Ceia da mesma maneira que uma ceia real aconteça ali, no espaço real do refeitório.

Enquanto o artista renascentista usa o trompe-l’oeil para acentuar o fator de realidade ao que pintou, o artista barroco faz ao contrário; ele usa o trompe-l’oeil para imprimir o fator da irrealidade, de delírio, de vertigem, de desequilíbrio. O Barroco não busca a autenticidade, mas a retórica, a ilusão. Giulio Carlo Argan, um dos grandes críticos de arte, diz que “o Barroco substituiu a pintura que nascera em Veneza, ou seja, substitui uma pintura poética por uma pintura retórica” [1].

Figura 1: Leonardo Da Vinci. Ultima Ceia, 1495.

A exploração da retórica faz da arquitetura, um meio de expressão muito característico da arte barroca, e da igreja um local onde se dá realmente o grande acontecimento do espaço barroco. O artista barroco trabalha a ilusão no espaço arquitetônico, cria falsas perspectivas dentro da perspectiva real: escadarias, reentrâncias de vazios e cheios que não existem, mas que a pintura faz existir nos muros do templo e especialmente no teto.

A pintura do forro da nave da igreja de São Francisco de Assis em Ouro Preto (Figura 2), realizada por Manuel da Costa Ataíde é uma perspectiva que "cria a ilusão de que a nave se abre, da cimalha real para cima, diretamente para o céu, e nele, entre nuvens e anjinhos-músicos, encontra-se, radiosa e doce, pacífica e serena, a Nossa Senhora mulata” (MORAIS, 2002, p.60).

Figura 2: Manuel da Costa Ataíde, Nossa Senhora dos Anjos,  Ouro Preto, MG, 1801-1802.

Essa perspectiva alucinada que o Barroco cria no espaço da igreja transforma-a inteiramente num grande trompel’oeil. Todo seu espaço vira uma grande ilusão de ótica, como se tivéssemos realmente num espaço de fantasia, sinfônico, que atua com a realidade das coisas verdadeiras.

1.3. O barroco como alegoria

A alegoria é, em síntese, aquilo que representa algo para dar a idéia de um outro algo. Reino da metáfora e do simbolismo, sua utilização leva a um refinamento extremo do como transmitir uma determinada mensagem.

A arte religiosa cristã, por isso mesmo, se tornou um dos campos em que a alegoria mais foi usada, especialmente em duas épocas bem distintas: nos anos de perseguição romana ao cristianismo primitivo, em que peixes, touros, leões e pombos pintados nas paredes das escuras catacumbas fizeram surgir o sentimento de identidade dos primeiros fiéis; e nos séculos XVI e XVII, nos quais a Igreja Católica investiu forças no sentido de fazer da arte sacra uma ferramenta para a catequese e a persuasão dos fiéis através da sensibilidade.

Após o Concílio de Trento, convocado pelo papa Paulo III em 1545, o "representar algo" na arte religiosa ganhou novos contornos (TRIADÓ, 1991, p. 31). Ao mesmo tempo em que os seguidores das idéias que se reafirmaram nas discussões do Concílio pregavam, com diletantismo, a simplicidade e a clareza das pinturas e esculturas de cunho religioso, também era recomendado que essas obras atingissem os fiéis através da sensibilidade, e não pela razão, a fim de estimular a piedade pela persuasão dos sentidos.

Na verdade, como bem observa Giulio Carlo Argan, a obra de arte "se faz presente no presente absoluto da consciência que a percebe" (1992, p. 27), e é justamente esse o sentido pensado, pela Igreja da Contra-Reforma, para as representações artísticas de caráter religioso. Elas deviam atingir a consciência do observador, mas não de forma racional.

Além disso, deviam vir respaldadas por uma reverência ao sagrado, por uma vertigem frente à santidade. O gosto pelo alegórico, no entanto, não foi um privilégio da arte barroca. De fato, desde a Antigüidade mais remota o homem usou símbolos e alegorias para explicar e representar seu mundo. Contudo, segundo Walter Benjamin, foi somente na Renascença que tal prática se viu re-introduzida na Europa, especialmente devido ao "gosto" pelo resgate da herança cultural greco-romana e, em alguns casos, egípcia (1925, p.190-191).

O ato de produzir uma obra de arte repleta de rebuscamentos, portanto, ia além da simples necessidade decorativa. O rébus 2 renascentista significou a retomada de toda uma simbologia alegórica que além de adornar os monumentos, fachadas arquitetônicas, pinturas e esculturas com imagens carregadas de inúmeros significados - quase sempre enigmáticos - colocavam o fiel em meio a um turbilhão de sensibilidade e Fé.

Desse modo, no Barroco, ao se construir uma alegoria para se representar algo se estava, na verdade, contemplando os aspectos mais íntimos de uma cena bíblica ou da vida de um santo através de uma apoteose simbólica. A alegoria barroca traz para o primeiro plano - ou seja, o da cotidianidade - a tensão entre imanência e transcendência que se tornou a base da catequese católica da Contra-Reforma:

 [...] “A função da escrita por imagens, do Barroco, não é tanto o desvendamento como o desnudamento das coisas sensoriais. O emblemático não mostra a essência “atrás da imagem”. Ele traz essa essência para a própria imagem, apresentando-a como escrita, como legenda explicativa, que nos livros emblemáticos é parte integrante da imagem representada” (BENJAMIN, 1925, p 207).

Ao desnudar as coisas sensoriais, a alegoria barroca, quase sempre, tomava como tema aquele momento limítrofe em que a Fé era posta à prova. Os martírios e sua crueldade intrínseca eram o campo de deleite das construções alegóricas, justamente por se prestarem tão bem à representação do puramente sensorial. Segundo Benjamin (1925, p. 240), essa característica se justificava plenamente por ser o Barroco pouco reflexivo: se o corpo era martirizado, o personagem perdia sua humanidade, transcendendo-a e ascendendo ao patamar do sagrado, pois com a morte "o espírito se libera, [e] o corpo atinge, nesse momento, a plenitude dos seus direitos" (BENJAMIN, 1925, p. 241).

Contudo, esse aspecto da alegoria, no Barroco, se constituía numa renovação do contraste entre paganismo e cristianismo - contraste esse existente desde o Cristianismo primitivo - em que o último era reforçado pela Contra-Reforma. Retomando o embate entre o material/demoníaco e o espiritual/sagrado da Idade Média, a alegoria barroca levou a novos horizontes a representação dos medos, desejos e crenças do homem europeu da Idade Moderna.

1.4. A projeção do desejo barroco

Não devemos deixar de levar em conta que durante todo o período em que eram produzidas obras barrocas - criticadas das mais diversas formas, como já vimos - havia um refinamento da representação alegórica. Se uma parte considerável dos críticos atacava veementemente a estética barroca, inúmeros artistas faziam uso dela para mostrar as diferenças existentes entre a obra divina e aquela que era fruto da criação humana:

O conceito de arte como produção de um ser novo, que se acrescenta aos fenômenos da natureza, [...] tomou feições radicais na poética do Barroco, quando se deu ênfase à artificialidade da arte, à distinção nítida entre o que é dado por Deus aos homens e o que estes forjam com seu talento”  (Bosi, 1991, p. 14).

Nesse sentido, o que interessava ao artista barroco, de modo genérico, era tentar atingir uma compreensão da "multiplicidade dos fenômenos" (Bazin, 1993, p. 2) que estava a seu redor, utilizando para isso a obra artística. A representação barroca cristalizava o fluxo de eterno devir, fluxo esse em que se inseriam as coisas do mundo, através da alegoria. Essa alegoria nada mais era do que a dissimulação da diferença - característica fundamental da sociedade européia na Idade Moderna - através de representações tendentes à semelhança.

Sendo a alma o elo fundamental entre o ser humano e a essência divina, o fato de ela ser susceptível às mais diversas paixões e desejos se tornou o principal elemento a ser representado nas artes figurativas do período barroco. O homem barroco era um ser atormentado pelo amor, pela raiva, pelo sofrimento, pela ternura, pela alegria, tristeza, medo, belicismo, fúria, candura, nostalgia, audácia, desespero e tantos outros sentimentos a serem representados que, em última instância, aquilo que mais se destacava nas pinturas, esculturas e projetos arquitetônicos era o movimento, a ação. A esse respeito, afirma Germain Bazin:

[...] “Esses movimentos da alma eram exteriorizados por movimentos do corpo e do rosto, ou seja, pela ação. As manifestações exteriores de um estado de santidade converteram-se nas de um transporte de paixão. O santo do período barroco é um confessor da fé - demonstra a fé através da palavra, do martírio e do êxtase”. (1993, p. 23).

Os "movimentos da alma" que Bazin cita são, a nosso ver, os elementos constituintes do imaginário barroco. Segundo Gaston Bachelard (1991, p. 147-148), “o imaginário se torna palpável quando, fugazmente, se coloca como uma possibilidade de desdobramento do real: o querer ver (subjetivo) algo faz com que esse algo se materialize através de algum elemento do real (objetivo)”. Desse modo, o Barroco também pode ser visto como a projeção de um desejo do imaginário coletivo, ou seja, o de reconstruir um mundo que se encontra desmoronado, que teve suas bases afetadas pelos questionamentos religiosos, pelo desenvolvimento mercantil e pelas contradições sociais.

No entanto, esse desejo também é o desejo do próprio artista: desejo de representar o devir, desejo de transcendência, desejo de salvação. Trata-se de um conflito constante entre a carne e o espírito, já que a satisfação de um representa, por extensão, a negação do outro. Paradoxalmente, essa polaridade alma/ espírito, corpo/carne é que possibilita a transcendência. Gilles Deleuze, ao retomar a obra de Leibniz, desnuda essa aparente contradição:

No Barroco, a alma tem com o corpo uma relação complexa: sempre inseparável do corpo, ela encontra nele uma animalidade que a atordoa, que a trava nas redobras da matéria, mas nele encontra também uma humanidade orgânica ou cerebral (o grau de desenvolvimento) que lhe permite elevar-se e que a fará ascender a dobras totalmente distintas” (1991, p. 26).

Desse modo, as singularidades inflexivas das almas individuais podem ser correlacionadas às singularidades de movimento da linha e do ponto no Barroco: seus desvios e curvaturas são o reflexo dessa condição. Mais ainda, cada intervalo na obra barroca, segundo Deleuze (1991), é um espaço aberto ao surgimento de uma nova dobra, uma redobra. O dobrar e o redobrar, dois movimentos de contenção, não se opõem diretamente ao desdobrar, que por essência é uma expansão de algo anteriormente escondido na dobra. Os três movimentos são complementares e representam o afastar-se e aproximar-se da essência divina através de uma contínua "tangência", que coloca toda a obra em constante "suspensão" no espaço, posto que não se consiga superar o conflito divindade / vida profana.

E qual é a mola propulsora dessa vida profana, senão o desejo? É ele que vai moldar a criação de dobras e redobras, a fim de dissimular sua própria essência frente à torrente de dogmas e exemplos catequizantes que passaram a povoar as artes visuais no período Barroco.

Deleuze esclarece que, na perspectiva leibniziana, o objeto barroco se diferencia de seus antecessores justamente por tornar-se um "acontecimento", e desprender-se da concepção quantitativa da História. Nesse sentido, o pensamento de Leibniz se aproxima de Nietzsche, no que diz respeito ao perspectivismo: ele é a "condição sob a qual a verdade de uma variação aparece ao sujeito" (Deleuze, 1991, p. 37).

Em síntese, a perspectiva barroca independe do sujeito, já que aquilo que a determina é o ponto de vista, o local a partir do qual qualquer sujeito pode observar o objeto barroco e apreendê-lo. E como o que importa realmente é o ponto de vista, o artista do período barroco coloca sua representação pessoal do desejo sob a possibilidade de ser admirada, interpretada e avaliada por toda a humanidade. Desse modo, a dobra barroca se torna também a dobra do desejo, e por serem ilimitadas as possibilidades de redobramentos e desdobramentos, esse desejo se lança ao infinito, ao devir.

1.5. O Barroco como estilo moderno e contemporâneo

A recuperação do Barroco como estilo artístico de importância, como expressão autêntica da cultura e da arte, se manifesta na época moderna, no século XIX, depois do Impressionismo. Segundo Hauser (in NOVAES, 1988, p.222), “sem a assimilação do Impressionismo não se teria resgatado o Barroco”, exatamente pelo fato de que a visão clássica é que rejeita o Barroco, porque ele explora certos níveis de expressão que eram um avanço, uma visão nova do homem, de sua própria situação histórica.

A rejeição do barroco era ao mesmo tempo, uma rejeição do moderno. Então, porque o Impressionismo possibilita essa compreensão do Barroco? Porque começa com ele, uma nova maneira de entender a linguagem pictórica e o espaço humano.

Wölfflin, o homem que conceitua pela primeira vez o Barroco, divide a história da arte em duas linhas fundamentais: a expressão “linear”, em que predomina o contorno, a linha, a precisão, a definição dos planos, e a “pictórica”, em que o claro-escuro, o meio tom, a mancha, que é basicamente a linguagem do Impressionismo é também a linguagem do Barroco (in Novaes, 1988, p.222).

O Barroco, antes mesmo de ser conceituado, já era reconhecido e valorizado pelos pintores de vanguarda do século XIX. Os homens que estavam falando a nova linguagem da arte encontravam identidade não na pintura clássica ou neoclássica, mas exatamente naqueles pintores que romperam com essa linguagem tranqüila, fechada, racional, que surgiria com a Renascença.

Há muito de barroco na nossa realidade. O espaço operístico e inquieto do Barroco, ao contrário do espaço renascentista, expressa uma transformação na visão de mundo do homem dessa época. É esse espaço infinito, móvel, que o homem já não governa, que gera o espaço barroco. E o trompe-l’oeil, a ilusão, é a tentativa de buscar nesse espaço angustiante algo que o transcenda; então se busca a ilusão como uma forma de, sem poder mais negar a nova realidade, criar uma nova fantasia dentro de um espaço real que não pode negar nem, tranqüilamente, assimilar.

Hoje, às portas do terceiro milênio, numa época marcada pela perspectiva de enormes avanços científicos, tecnológicos, culturais e sociais, volta à tona a discussão sobre a estética Barroca, mas sob novo enfoque. A multiplicidade de nosso mundo, com tudo se partindo em inúmeros fragmentos, plenos de significados, mas, apesar disso, carregados de uma instabilidade e de uma mutabilidade que lhes é inerente, tem levado muitos teóricos a reconhecer em nossos dias algumas características do Barroco sob nova roupagem e,  por isso mesmo, transmutadas no conceito de Neobarroco.

Omar Calabrese é um dos autores que defendem o uso do termo neobarroco em lugar de “pós-moderno”, palavra que, segundo ele, teria como principal característica ter se tornado uma expressão passe-partout, cujo uso abusivo acabou por esvaziar de sentido (1987 p. 24). Calabrese, por exemplo, afirma que “muitos importantes fenômenos de cultura de nosso tempo são marcas de uma ‘forma’ interna específica que pode trazer à mente o barroco” (1987, p. 27).

De certo modo, ele baseia sua posição no formalismo de Wölfflin e dos autores que seguiram sua linha teórica, como Severo Sarduy (1975). O Barroco, na perspectiva wölffliniana, é visto como “uma atitude generalizada e uma qualidade formal dos objetos que o exprimem” (CALABRESE, 1987, p. 27). O próprio Wölfflin enxergava nessa formalidade recorrente, que oscila entre o Barroco e o Clássico, “a imagem de um movimento espiral” (1915, p. 260) em que a estética e as representações culturais se aproximariam de momentos históricos anteriores sem, contudo, repeti-los por inteiro.

A volta ao ponto inicial é impossível, mas a referência a ele, assim como a proximidade a sua essência, não o é. Essa atemporaneidade do Barroco, aliada a sua multiplicidade é, segundo Ariano Suassuna (1999), intrínseca ao próprio estilo:

A qualquer momento a gente pode encontrar um grande artista barroco [...]. O barroco, por ser a primeira manifestação romântica de subversão do clássico, contém em si elementos clássicos e barrocos, medievais e renascentistas, pagãos e religiosos, cômicos e trágicos”.

Omar Calabrese, ao avaliar a contemporaneidade e rotulá-la como "Idade Neobarroca", procura analisar vários aspectos de nossa sociedade através de nove pares conceituais, quase como Wölfflin fizera com o Barroco em Conceitos Fundamentais de História da Arte 3 . A seu ver, nosso mundo poderia ser definido por meio de conceitos como ritmo/repetição 4, limite/excesso 5, pormenor/fragmento 6, instabilidade/metamorfose 7, desordem/caos 8, nó/ labirinto 9, complexidade/ dissipação 10, quase/ não-sei-quê 11 e distorção/ perversão12.

A diferença entre a proposta de Calabrese e os pares conceituais wölfflinianos residem no fato de que ela não comporta oposições intrínsecas, mas sim complementaridades.  Essa visão de que vivemos numa recriação do Barroco pode ser inquietante, mas nos remete a uma série de questionamentos interessantes: o fato de estarmos, todos os dias, nos dividindo em um extenso rol de fragmentos, dentro dos quais quase sempre utilizamos diferentes máscaras, aumentando cada vez mais a multiplicidade que essa fragmentação acarreta não seria uma característica intrínseca ao Barroco?

Mais ainda: essa busca constante pelo devir que todos vivenciam diuturnamente, carregada de tensões entre carne e espírito, desejo e quietude, não é também um aspecto que estava presente no Barroco? A constatação científica de que a estrutura microfísica e até mesmo atômica dos elementos, com os fractais, teria uma configuração muito aproximada às mônadas de Leibniz, sempre se dobrando e redobrando sobre si mesmas, não nos remete ao ideário Barroco? Por fim, a falta de certezas absolutas, característica maior de nossa época, não seria o principal elemento a nos aproximar do mundo Barroco?

Referências Bibliográficas

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BOSI, A. Reflexões sobre a Arte. 4a ed. São Paulo: Ática, 1991.

CALABRESE, O. A idade neobarroca. São Paulo: Martins Fontes; Lisboa: Edições 70, 1988.

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HAUSER, A. História social da literatura e da arte. São Paulo: Mestre Jou, 1982.

MORAIS, F.O Brasil na visão do artista: o país e sua gente.São Paulo: Prêmio, 2002.

NOVAES, A. O Olhar. São Paulo: Cia. das Letras, 1988.

READ, H. O sentido da arte. São Paulo: Ibrasa, 1976.

SUASSUNA, A. Um Barroco no Mocambo. Revista Bravo! nº. 17, ano 2, fev./1999, p.85, 1999.

TRIADÓ, Juan Ramón. Saber ver a arte barroca. São Paulo: Martins Fontes, 1991.

WÖLFFLIN, H. Renascença e barroco. São Paulo: Perspectiva, 1989.

________. Conceitos fundamentais de História da Arte. São Paulo: Martins Fontes, 1984.

Notas:

[1] GULLAR, F. “Barroco: olhar e vertigem”. apud. NOVAES, A. O Olhar. São Paulo: Cia. das Letras, 1988, p. 221.

[2] Palavra de origem latina, que pode significar a representação de idéias, enigmas, palavras ou sílabas por ideogramas.

[3] Quase trinta anos depois de Renascença e Barroco, Wölfflin lançou Conceitos Fundamentais da História da Arte (1915). Tratava-se de sua obra da maturidade, mas nela retomava muitas das formulações presentes em Renascença e Barroco. Se antes havia apenas se esboçado sua visão de que na verdade existem apenas dois estilos artísticos, o Clássico e o Barroco, foi em Conceitos Fundamentais que essa teoria se desenvolveu plenamente, através da formulação de cinco pares de conceitos: linear X pictórico; plano X profundidade; forma fechada X forma aberta; pluralidade X unidade e clareza X obscuridade (Wölfflin, 1915: 15-16).

[4] No modelo calabresiano, a sociedade contemporânea seria marcada pelo ritmo e pela repetição, na produção ou no consumo de bens culturais e econômicos, situação que transparece no uso continuado e frenético das mais diversas formas de expressão, inclusive artísticas. Calabrese exemplifica esse conceito afirmando que seriados televisivos, histórias em quadrinhos, romances açucarados e filmes de produção barata repetem exaustivamente a forma presente em alguma obra de sucesso e, desse modo, através da "mecânica repetição" vão aperfeiçoando e produzindo, involuntariamente, uma determinada estética (1987:41). Apesar de uma obra de arte ser "irrepetível", outros autores podem tentar tocar sua aura reinterpretando o mesmo tema, mesmo que através de diferentes meios de expressão.

[5] O limite/ excesso de que fala Calabrese é o do campo cultural e dos sistemas culturais, e se aproxima das idéias de Wölfflin, no que diz respeito ao conceito aberto/ fechado presente na oposição Clássico/ Barroco. Calabrese parte do pressuposto de que ao se aceitar "uma idéia espacial da estrutura e da distribuição do saber em sistemas e subsistemas, ou seja, um espaço global articulado em regiões localizadas, deveremos também aceitar que este espaço, para ser organizado, deva ter uma geometria ou uma tipologia" (1987: 61).

Em síntese, o campo cultural, na sociedade neobarroca, se pauta pelo estabelecimento de limites e pelas tentativas de excedê-los constantemente, característica que já estaria presente no Barroco histórico, onde essa tendência ao rompimento de limites se manifestou na extrapolação da perspectiva linear com o uso do trompe-l'oeil, dos enquadramentos revolucionários, da anamorfose e do escorço (Calabrese, 1987: 64).

[6] Para Calabrese torna-se impossível explicar esses dois termos (pormenor/ fragmento) de modo dissociado da conceituação de totalidade. No entanto, ele destaca o fato de que é através da observação do fragmento, ou do pormenor, que se pode apreender "um certo gosto" (1987: 84) e se identificar "pelo menos dois tipos de divisibilidade: o corte e a ruptura" (1987: 85). O pormenor seria esse corte, podendo ser exemplificado, hoje, pelo zoom da câmera televisiva, enquanto o fragmento representa a inexistência de referência para com o todo, como o recorte ínfimo de uma foto super-ampliada, em que se identifica apenas o grão da emulsão fotográfica (Calabrese,1987: 88-89). O pormenor pressupõe a possibilidade de reconstituir o todo de que ele foi apartado, já o fragmento, não.

[7] O mundo contemporâneo, assim como o mundo barroco, é um universo povoado de monstros, fruto da necessidade de se representar "não só o sobrenatural ou o fantástico, como, acima de tudo, o ' maravilhoso', que depende da raridade e casualidade de sua gênese na natureza e da oculta e misteriosa ideologia da sua forma” (Calabrese, 1987: 106). Ora, a existência desses monstros, sejam eles os ET dos filmes de ficção científica ou as bestas-feras do Novo Mundo, é proveniente de uma instabilidade mórfica, de uma mutabilidade intrínseca à fantasia sobre outros mundos. Se hoje exercitamo-la com a criação de seres intergalácticos, o homem da Idade Moderna o fazia a respeito das novas terras que se apresentavam em seu horizonte. Paralelamente, designar como monstruoso algo que se desvirtua do gosto médio é, segundo Calabrese, uma característica da tensão estabelecida entre formas opostas de ver o mundo, daí a designação de adjetivos depreciativos ao Barroco histórico e à estética Neobarroca.

[8] A idéia de existência de uma ordem imutável das coisas-do-mundo, com um fundo dogmático e intocável, é uma das características do pensamento cristão da Idade Moderna. A ele se opunha a visão "caótica" de homens como Galileu Galilei, por exemplo. A "desordem" do Novo Mundo pressupunha a necessidade de ordená-lo. Já o conceito de caoticidade remete à irregularidade, à "não pertinência local da ordem" (Calabrese, 1987: 133). Essa oposição existente no Barroco histórico se repete hoje, mas com um novo vencedor: à regularidade dogmática cristã se opõem as muitas teorias científicas do caos. Ao conceito de desordem (e da existência de uma ordem que está sendo desrespeitada) contrapõe-se o de caos, designando fenômenos marcados por uma complexidade absurda, que não pode ser compreendida com os instrumentos do pensamento racionalista, por pertencerem a uma outra dinâmica.

[9] O nó e o labirinto são imagens recorrentes no Barroco histórico, assim como a descrição de casos - ou histórias - em que a agudeza e perspicácia do espírito humano conseguiu vencê-los e restabelecer a ordem nas coisas-do-mundo. Para Calabrese, "onde quer que ressurja o espírito da perda em si, da argúcia, da agudeza, aí reencontramos pontualmente labirintos" (1987: 146). O nó e o labirinto são complexidades que trazem em si a existência de uma linearidade, de um conjunto, ou mesmo de várias linearidades e vários conjuntos: o nó é uma dobra ou redobra de uma linha - ou mesmo várias - e o labirinto, um emaranhado de percursos, dos quais apenas um leva à saída, ou à solução do problema. Para resolvê-los e desemaranhar o nó e também sair do labirinto é preciso encará-los com a ambigüidade de quem observa a globalidade do sistema em questão e ainda o microcosmo do nó ou do labirinto (Calabrese, 1987: 147).

[10] Os conceitos de complexidade e dissipação formam um dos pares mais imaginativos da teoria de Calabrese. Usando correlações com a Física, a Astronomia e a Cosmologia, ele expõe um paradoxo, inerente ao Barroco histórico e ao Neobarroco: todo sistema seja ele de forças físicas ou mesmo de "forças culturais" tende a complexizar-se e, nesse processo, chegar a um estágio em que passará a dissipar sua "energia", dando origem a outros sistemas. No entanto, essa dissipação é condicionada pela estabilidade/instabilidade do meio em que está inserido o sistema: quanto mais instável ele for, mais propícia é a dissipação das "energias" e a criação de novos sistemas (Calabrese, 1987: 159-168).

[11] Apesar de, num primeiro momento, esses dois conceitos de Calabrese remeterem a uma mesma imagem de imprecisão, em sua essência são bem diversos. O quase representa uma possibilidade real de se chegar a uma aproximação de um resultado exato: é o avizinhar-se de algo, tão comum na Matemática pura. Já o não-sei-quê é aquele sentimento "de mal-estar que experimentamos perante o que é incompleto, a inquietação que sentimos por aquilo que é imprecisável, indefinível, inexplicável" (Calabrese, 1987: 172). O oscilar entre essas duas concepções de imprecisão, uma que pressupõe a exatidão e outra que nem a cogita, seria, no modelo teórico calabresiano, uma das características do Barroco histórico que se repetiria no Neobarroco.

[12] Segundo Calabrese, tanto o Barroco como o Neobarroco têm como um aspecto característico a distorção do passado e do presente como forma de marcar sua singularidade. Já a perversão da citação distorcida desse passado e/ ou presente é o passo seguinte na re-elaboração de seu próprio sistema estético, estando no cerne da multiplicidade das duas estéticas e, portanto, constituindo um de seus elementos basais (Calabrese, 1987: 185-195).

Revista Digital Art& - ISSN 1806-2962 - Ano V - Número 08 - Outubro de 2007 - Webmaster - Todos os Direitos Reservado

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