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O Ensino nas Academias de Arte: Uma revisão historiográfica
Autora:
Rosane Bezerra Soares - rosanebezerra@oi.com.br

Resumo: Observa-se hoje um interesse crescente no estudo da arte produzida no século 19 no Brasil e em outros países. Historiadores procuram analisar as obras do período a partir de novos ângulos. O artigo apresenta reflexões sobre a base do sistema acadêmico e sobre a importância do desenho em sua formação.

Palavras-chave: desenho – ensino acadêmico – século 19

Abstract: There has been a growing interest in the study of the arts that was developed during the 19th century in Brazil and abroad. Historians try to analyze its production from another point of view. This article reflects on concepts of the academic system and the importance of drawing for the constitution of the system.

Key-words: drawing – academic teaching – 19th centuries

1. Introdução

No contexto da atual revisão historiográfica observa-se um grande interesse pelo estudo do século 19, em diversos países, inclusive no Brasil. É importante destacar que, nos últimos cem anos, gerações ligadas ao Modernismo estabeleceram-se trazendo não apenas transformações nos produtos artísticos, mas também a recusa das experiências artísticas anteriores; e foi a partir dessas idéias que grande parte da historiografia do século 20 interpretou o século anterior. Assim, a historiografia da arte moderna é freqüentemente marcada pela ênfase no pioneirismo na arte, pelo espírito de ruptura com o passado e pelo confronto entre vanguarda e academicismo.  

Vítima de idéias preconcebidas e de um juízo estético negativo, a arte produzida no Brasil no século 19 recebeu, muitas vezes, análises superficiais. Criou-se um círculo vicioso, onde a visão desfavorável comprometeu a pesquisa e a ausência dessa favoreceu a continuação desse juízo. Comentando sobre a arte brasileira do século 19, Sonia Gomes Pereira destaca que a produção artística acadêmica “[...] nunca foi uniforme e nem sempre acompanhou rigidamente a teoria que lhe dava sustentação” [2008:16]. Entretanto, a autora ressalta que grande parte da literatura sobre a Academia concentrou-se na apresentação de toda a sua atuação e de toda a sua produção com o rótulo genérico de “acadêmico”. Não foram apresentados, por outro lado, os conceitos definindo o academicismo e os diversos estilos artísticos. Academicismo é um sistema de ensino ou de produção, além de uma postura do artista diante de sua obra, mas não é exatamente um estilo. Assim, geralmente não são analisados os verdadeiros estilos da época.

Apesar da importância do tema, não são encontrados muitos estudos sobre as academias de arte dentro da historiografia mundial. O livro de Nikolaus Pevsner, Academies of Art: Past and Present [1940] permaneceria, durante um longo período, como a única obra dedicada ao assunto, com edição publicada recentemente no Brasil.

Além disso, durante muito tempo, a historiografia da arte esteve pautada na rígida classificação de estilos partindo de obras e fatos históricos. Permanecia a idéia de que existiria uma relação entre as linguagens artísticas e os períodos históricos como, no Brasil, o barroco e a colônia ou o neoclassicismo e o império.  Partia-se também de modelos lineares de análise, como a noção de progresso na arte. Entretanto, é possível observar um quadro muito mais complexo na arquitetura, na escultura e na pintura, destacando-se, por exemplo, diversas manifestações formais em um mesmo período.

Na recente reavaliação crítica da arte brasileira do século 19 e início do século 20, destaca-se o estudo da Academia Imperial / Escola Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro como estrutura de ensino, como instituição normalizadora do campo artístico pela organização das exposições gerais e concessão de prêmios e também como instituição participante de um projeto político de construção da nação. Entretanto, em relação à Academia, ainda há muito a ser estudado. Para a maior compreensão da importância das academias, é interessante observar as questões que a nortearam.

2. O Crescimento das Academias de Arte

Sabemos que o termo “academia” teria surgido na Antigüidade ligado à escola de Platão em Atenas, na qual o filósofo desenvolvia suas idéias de matemática, biologia, astronomia, teoria política, etc. e que ficava próxima ao local onde vivera o herói Academus. Já no século 16 o nome “academia” foi escolhido para as instituições voltadas ao ensino das artes visuais com o propósito de destacar uma linha divisória entre a atividade manual e a intelectual na produção artística.  Segundo Harold Osborne [1987:31], a palavra accademia, no Renascimento, era utilizada por grupos de artistas que discutiam problemas teóricos e práticos relacionados ao desenho.

Ainda no século 16 surgiu uma tendência que consistia na delimitação entre a teoria e a prática artísticas. A idéia da obra de arte torna-se uma vasta construção a priori. Esse projeto inicial segue uma ordem hierárquica: a idéia domina o edifício especulativo, sistematizado em um conhecimento separado do ato de fazer, até que sejam abordados os preceitos e os conselhos de ateliê que constituem a prática. Segundo tal concepção, a totalidade da composição está presente no espírito do artista antes da execução da obra. O ato de conceber a obra pertence à própria arte, e a obra é uma tradução da idéia. A idéia tende agora a se identificar com a forma, tal como se manifesta no espírito do artista.

Fundada em 1593, a Academia de São Lucas, também conhecida como Academia de Roma, teve como seu primeiro diretor o pintor-filósofo Federico Zuccaro (1540-1609). Em seu livro Idéia dos Pintores, Escultores e Arquitetos [1607] distinguiu o “desenho interior” e o “desenho exterior”; o primeiro estaria relacionado à idéia que se produz no intelecto e o segundo ao ato de pintar ou esculpir. Zuccaro destacava, assim, a dignidade intelectual e a autonomia criativa relacionadas ao desenho (ou disegno, no sentido de projeto) e, conseqüentemente, ao artista. Procurou uma explicação para a palavra disegno e sua etimologia, definindo-a como segno di Dio (desenho, signo de Deus). Zuccaro organizava debates periódicos sobre a teoria da arte, tornando a Academia de São Lucas a mais influente da Europa até o século 19, quando o centro de ensino da arte passa a ser Paris.

Nicolas Poussin (1593-1665), considerado como o fundador da pintura francesa, formulou o que seria a base do ensino nas academias de arte da França . Como pintor, buscava a representação da emoção por meio dos gestos e das expressões faciais das figuras.

O ideal clássico é desafiado no século 17 por meio de dois movimentos pictóricos: o maneirismo final, que introduz um imaginário pouco compatível com as regras estabelecidas pelas gerações precedentes e o naturalismo de Caravaggio. Entretanto, com Giovanni Battista Agucchi (1570-1632) e especialmente Giovanni Pietro Bellori (1613-1696), a idéia torna-se uma arma de combate contra essas tendências, sustentando a tarefa de restauração da doutrina clássica. Assim, a idéia, tendo sua origem na natureza no ato da imitação, apresenta também sua origem no espírito do artista que a concebe. Essa dupla determinação estará na base da doutrina acadêmica até o século 19. Dessa visão forma-se uma concepção do ideal clássico que irá inspirar Johann Joachim Winckelmann (1717-1768) e será adotada pela Academia.

Luís XIV funda a Academia Real de Pintura e Escultura em Paris em 1648; outras academias são construídas em alguns países da Europa, mas nenhuma conjugou tantos fatores que lhe conferiam prestígio excepcional. As atividades na Academia desenvolviam-se apresentando como objetivos ensinar e estimular a reflexão sobre arte, além de contribuir para a difusão da monarquia absoluta.  Esses objetivos partem de uma definição da arte baseada no desenho, pois, o desenho pode ser ensinado devido ao estabelecimento de regras, possibilita a formação de conceitos e permite a transformação da história em quadro. Durante a segunda metade do século 18, na França, seria difícil imaginar uma teoria da arte de vulto surgindo e desenvolvendo-se fora do campo da Academia. A teoria da arte é ensinada e encarnada pela Academia Real de Pintura e Escultura, e os debates suscitados produzem práticas discursivas até então desconhecidas na França.

Ainda no século 18, Johann Joachim Winckelmann (1717-1768) sistematizou a História da Arte e apresentou um conceito de imitação que se aplica à bela natureza e ao antigo, partindo da pureza e da austeridade de uma ordem inspirada em Vitrúvio e na arte grega. Em 1755 publica Reflexões sobre a imitação das obras gregas em pintura e em escultura, destacando a idéia do Belo ideal, nascido do modelo da escultura clássica; renova assim as idéias estéticas de sua época. O seu pensamento foi decisivo no desenvolvimento das teorias sobre arte.

Assim, a idéia foi metamorfoseada em ideal, sendo adotada pela Academia. Durante o século 18 as academias já seriam transformadas em principal centro de instrução artística. Além disso, a Academia implantaria outros modelos, não apenas o sistema de ensino, como as exposições regulares nos eventos conhecidos como Salons, anuais desde 1737 e bienais a partir de 1751. Os Salons contribuíam para despertar o interesse dos espectadores; surgiram, então, formas de comentários escritos, textos críticos desenvolvidos como literatura, entre outros; inaugura-se assim a crítica de arte.

Os acadêmicos consideravam a si mesmos como intelectuais, especialmente pela sua capacidade de desenvolver um disegno, ou seja, projetar, partindo de esboços. Na Academia havia uma grande ênfase na erudição clássica, bíblica e na pintura histórica, daí a grande importância do desenho, veículo característico do “projeto”. Paralelamente, eram desenvolvidos textos teóricos sobre a arte. Havia ainda uma hierarquia de gêneros; destacava-se em primeiro lugar a pintura histórica, o retrato, a “pintura de gênero”, a paisagem e, finalmente, a natureza morta.

O ensino em Paris, englobando a Academia e a Escola de Belas-Artes, torna-se o modelo adotado internacionalmente no século 19. A parte prática era desenvolvida em ateliês privados, escolhidos pelos alunos; a Escola de Belas Artes oferecia apenas as disciplinas teóricas. O ensino era concentrado na realização e julgamento de concursos e o processo era dividido em duas etapas: a primeira, em que se concebia a idéia da obra; a segunda, com a sua realização técnica. Assim, na primeira fase o aluno construía um esboço de sua solução para uma questão proposta pelo concurso na Escola e, posteriormente, desenvolvia a idéia inicial, geralmente no ateliê de seu mestre, concluindo então a obra que retornaria à instituição para julgamento. O júri iria compará-la com o esboço inicial; o aluno não poderia afastar-se da idéia primordial, ou seria desclassificado. Assim, num primeiro momento, haveria o trabalho conceitual e o pressuposto de que o desenho estaria diretamente ligado à idéia da obra. Nos concursos a realização do desenho inicial demonstrava o potencial do aluno na escolha da composição da obra. A Escola deveria organizar e julgar os concursos mensais e, a Academia, julgar e organizar o Grande Prêmio de Roma, além de nomear os professores.         

Praticada nos ateliês, a composição envolvia um conhecimento geralmente não codificado teoricamente. Mais do que uma solução formal da obra, a composição exigia do artista o conhecimento de um amplo repertório tradicional, incluindo os modelos antigos e do Renascimento, que exibiam soluções de mestres a questões concomitantemente formais e temáticas. Muitas vezes os alunos realizavam viagens à Itália para a observação direta dos modelos, entretanto, as academias de arte procuravam oferecer modelos como material didático.

O ensino acadêmico, baseado na Antigüidade, na cópia de desenhos dos mestres e nos modelos vivos estende-se por vários países.

No Brasil, ocupando um lugar central na história das artes visuais do país, a história da Escola de Belas Artes do Rio de Janeiro confunde-se freqüentemente com a história da arte brasileira nos séculos 19 e 20. Criada em 1816 pela Missão Artística Francesa como Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios, logo transformada em Academia Imperial de Belas Artes, sofre duas modificações importantes: em 1890, tornou-se Escola Nacional de Belas Artes; em 1966, tornou-se a Escola de Belas Artes, já incorporada à Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Sobre a história da Academia Imperial de Belas Artes, Adolfo Morales de Los Rios Filho, formado em 1914 pela Escola Nacional de Belas Artes, organizaria, para o Terceiro Congresso de História Nacional em 1938, publicado pelo Instituto Histórico Geográfico Brasileiro, o mais completo histórico sobre o assunto, sob o título “O Ensino Artístico: Subsídio para sua História”. O autor traça então a história da Academia de Belas Artes, desde a vinda dos artistas franceses até a sua transformação em Escola Nacional de Belas Artes.

Em 1954 Alfredo Galvão publica “Subsídios para a História da Academia Imperial de Belas Artes”, reunindo biografias dos diretores e professores da instituição, da qual foi aluno, professor e vice-diretor. E, em 1990, Carlos Roberto M. Levy publica “Exposições Gerais da Academia Imperial e da Escola Nacional de Belas Artes”, apresentando as obras que constam nos catálogos das Exposições Gerais.

Diante do reconhecimento da importância do estudo das academias em geral e da Academia Imperial/Escola Nacional de Belas Artes em particular, pesquisas envolvendo esse universo são desenvolvidas em diversos pontos do país.

3. Considerações Finais

A compreensão do sistema acadêmico de ensino é fundamental para o entendimento da produção artística do século 19. Além disso, com o fenômeno de multiplicação das academias de arte por vários países, é interessante considerar o papel do sistema acadêmico na formação dos modernistas do início do século 20 e a repercussão dos seus procedimentos nos movimentos de vanguarda.

Assim, o estudo da arte do século 19 tem despertado grande interesse após a superação da visão excludente modernista. Tornou-se um lugar-comum entre os modernos considerar as produções do período como realizações desenvolvidas sem qualquer manifestação criativa, ou seja, meras cópias. Entretanto, destaca-se nesse estudo, entre as características gerais do sistema acadêmico, a ênfase no disegno que, ao contrário do pensamento daqueles que associam o sistema a um procedimento isento de criatividade, permite escolhas e, sim, criação. A obra nasce de um processo de seleção, entre inúmeras possibilidades. Não haveria, então, no sistema acadêmico, espaço para a criação? A valorização do artista, apto a fazer escolhas, apontaria para a formação de um novo quadro na historiografia da arte.

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