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Arte e Política no Pará na Transição do Século XIX ao XX 
Autor:
William Gaia Farias - williamgaia@bol.com.br

Resumo: Este artigo tem como objetivo analisar a relação entre República e arte no Pará, sobretudo a respeito das práticas políticas que tiveram influência no campo artístico. Sendo assim, se consideram que, mesmo não existindo uma arte genuinamente republicana, as representações artísticas foram significativas para divulgação política do novo regime, o que certamente levou ao investimento, por parte dos primeiros governos republicanos, em questão de interesse do campo artístico, tais como, obras, agremiações artísticas, pensões, exposições etc. As fontes utilizadas neste trabalho foram jornais, relatórios de governo, mensagens de governadores, iconografias e obras raras.

Palavras-chave: República, Arte, Governos, Teatro, Imprensa.


Abstract: This article proposes of analyze relation between Republic and art in the Pará, first all of considering, the politic practices have under the influence in artistic area. As though, consider even if don’t exist an art republican originality, the artistic representation was very important publish at politic the new regime, certainly the first republican government invested in artistic area. For example: Work, artistic associations, pensions and expositions etc. the documents utilized these work were: newspaper, authority’s report, government’s communication, image and rare work.

Key Words: Republic, Art, Governments, Theater, Newspaper.

1 - A Chegada da República

No Brasil a Proclamação da República foi resultado de um golpe militar e, por isso os republicanos precisaram continuar investindo na propaganda objetivando alcançar o consentimento da sociedade em vista a consolidação do regime, afinal o novo regime não fora proclamado com a participação popular. No estado do Pará a propaganda republicana teve início em 1886, ano de fundação do Club Republicano sendo intensa, pelo menos até a virada do século XIX ao XX. Sem dúvida a atuação na sociedade era imprescindível para a empreitada dos divulgadores republicanos. Segundo Siqueira era importante assegurar a legitimidade do regime e “[...] cumprir a promessa, isto é, encarnar a idéia de República, significava a construção de um novo estado e de sua articulação com a polis e o demos, ou seja, a reorganização do espaço público [...]” [SIQUEIRA, 1994: P. ?]. 

Esta era uma das tarefas fundamentais para o Partido Republicano do Pará, cuja formação básica era a de integrantes da agremiação precursora da campanha republicana: o Club Republicano do Pará.

Proclamado o novo regime, a campanha dos históricos ganhou novos contornos. Era preciso legitimar, justificar e exaltar o regime que fora estabelecido por vias não democráticas. Também era importante evitar que os antigos liberais e conservadores, que alguns dias após a Aclamação já experimentavam uma roupagem republicana, chegassem ao poder. Não por acaso, travou-se uma luta entre os republicanos históricos concentrados no Partido Republicano do Pará - PRP e os novos republicanos representados pelo Partido Republicano Democrático - PRD, Partido Nacional – PN e Partido Católico - PC. Os dois últimos se juntaram para formar o Partido Nacional Católico – PNC [ALVARES, 1990. P. 78.]. A respeito desta nova configuração político-partidárias Janotti (1989) defende que os adesistas se organizaram em partidos políticos e concentraram-se "[...] em torno de políticos influentes do Império, cercaram-se de jornalistas competentes e contaram em seu meio com intelectuais [...]" [P.240.] que divulgavam suas propostas políticas. Assim apresentaram-se como grupos políticos organizados [IBID.]. Estas afirmativas são pertinentes quando nos referimos ao PNC, que existiu somente até o ano de 1892, ocasião da morte de seu líder, o cônego Manuel José de Siqueira Mendes [A REPÚBLICA. 08/03/1892. P.1]. 

2 - Enredos da Divulgação

Ainda que em pequeno número, os republicanos históricos não divulgavam seus ideais apenas através de textos escritos, pois como cientificistas bastante influenciados pelo positivismo, trabalharam com iconografias publicadas nos dias festivos, de acordo com o pressuposto comteano que defende a exaltação dos homens que praticaram “grandes feitos”, já que seriam condutores da Humanidade pelas virtudes cívicas conquistadas em vida. Preocupados em legitimar o poder republicano, complementaram seus textos escritos com as imagens que exaltavam o novo regime[1]. Era preciso assinalar, através de imagens, o início dos novos tempos marcados pelo "progresso". Relacionadas com o novo regime, as imagens também poderiam atingir um grupo maior, ou seja, a camada iletrada da sociedade, o que apenas por meio de discursos impregnados pelo cientificismo seria inviável.

O trabalho com a manipulação do imaginário - que, por sinal, é atividade muito trabalhosa -, envolvia a articulação de discursos construídos a partir de signos que ocupavam o lugar da palavra escrita ou lhe serviam de reforço. Assim, a mensagem ou discurso era passada através de um conjunto de elementos revestidos de conteúdos simbólicos que objetivavam atingir o imaginário de determinados grupos.

A manipulação do imaginário, para os republicanos históricos, foi arma valiosa para justificar o novo regime e legitimar o poder. Nesse viés, José Murilo de Carvalho realizou admirável pesquisa sobre o material iconográfico produzido no Rio de Janeiro no início do novo regime, estudando as disputas pela construção de símbolos e heróis para a República e defendendo a tese de que teria ocorrido uma batalha pelo imaginário republicano [CARVALHO, 1990].

A propaganda foi intensa e os republicanos do Pará acreditavam ser a imprensa fundamental à divulgação do regime. Os artigos publicados cotidianamente criticavam a Monarquia e exaltavam a República, ainda que através de textos sobrecarregados pelo cientificismo. Parecia fundamental colocar as habilidades intelectuais a serviço do novo regime, pois as letras e iconografias poderiam ampliar o número de seguidores da República.

Na coluna dedicada à redação de A República freqüentemente eram publicados textos de análise de conjuntura, nos quais se apresentavam os problemas da República como provenientes da ação dos grupos de oposição por serem agremiações marcadas pela presença de monarquistas, uma vez que: 

Não se conspira somente contra a República e contra seu governo, aqui na capital, adulterando os fatos, espalhando boatos alarmantes e procurando intrigar os seus melhores e mais dedicados servidores. Estendem o enredo conspirador por todo o interior do Estado, e aproveitando-se da boa-fé do povo das cidades, das vilas e das freguesias, urdem a trama criminosa, inventam, enganam, falsificam, mentem [A REPÚBLICA, 10/04/1890. P.1].  

Como precursores dos ideais republicanos, os divulgadores do novo regime contavam com uma base mínima para a projeção política, já que emergiram ao poder no momento da Aclamação da República no Pará. Assim justificaram em seus discursos nos textos e imagens, sustentando argumentos para dirigir a política republicana no Pará.

Com o estabelecimento do regime republicano surgiu a necessidade de recriar o imaginário coletivo a partir de elementos que pudessem situar a República como regime à altura dos novos tempos iniciado com o Golpe Militar de 1889 e identificado como revolução. De acordo com a retórica dos republicanos, a Proclamação seria o momento de rompimento com paradigmas políticos e sociais ultrapassados e identificados com o regime monárquico. Sendo assim, símbolos, personalidades e datas que marcaram a transição de regime político no Brasil deveriam ser lembrados e comemorados de forma eficiente. A este respeito o Governo Provisório assinou o decreto n. 155-B, de 14 de janeiro de 1890, considerando a necessidade de comemoração dos dias que compunham o calendário cívico da República brasileira [OLIVEIRA, 1989, P.180]. Como anotou Lúcia Lippi de Oliveira “As revoluções têm que lidar ao mesmo tempo com a organização de uma vida social e política e com a construção de um imaginário capaz de recuperar o equilíbrio perdido ao longo do tempo [...]” [IBID. P.172]. Identificando a Proclamação como revolução e as personalidades mais destacadas como heróicos revolucionários, os republicanos se empenharam bastante no sentido de festejar a República.

Para as festas de 15 e 16 de Novembro de 1890, no Pará, a comissão de comemoração à República solicitou aos comerciantes que não abrissem seus estabelecimentos e que durante a noite mantivessem iluminadas as casas comerciais e residências, além de promoverem por outros meios o "[...] brilhantismo que exige a comemoração dos grandes dias da nova pátria [...]" [A REPÚBLICA, 13/11/1890. P. 1].

Além de textos freqüentemente publicados na imprensa, o governo procurou comemorar e inventar a tradição[2]. Em 1890, no primeiro aniversário do novo regime, o jornal A República tornou publico alguns textos com informações sobre os preparativos para as festividades republicanas que aconteceriam nos dias 15 e 16 de novembro. Neste mês, o governo sustentou o argumento de que pretendia presentear o povo e o regime republicano e divulgou um edital sobre a abertura de um concurso para a escolha do projeto e do escultor que produziria um monumento à República. Também estabeleceu que, durante a festividade, ocorresse cerimônia solene para o assentamento da pedra inaugural no local que receberia o referido monumento.

Os democratas não perderam a oportunidade de criticar o governo dos republicanos históricos no momento em que o governador do estado recorreu a um empréstimo. Defendiam que não se destinava a qualquer investimento em políticas públicas, e sim à ostentação do poder dos republicanos históricos que promoviam todos os tipos de gastos sem compromisso com a coisa pública, tais como as altas despesas com as festividades de 15 e 16 de Novembro, cujo valor estimado era de 15 contos de réis [O DEMOCRATA, 15/10/1890. P.1].

Na capital federal, de acordo com Carla Siqueira, os jornais oposicionistas também publicaram vários textos, bastante críticos, ao governo republicano. Pelo menos dois jornais pesquisados por Siqueira [1994], O Tribuno e o Jornal do Commércio, eram monarquistas, por isso a linguagem era direcionada à tentativa de desvinculação do 15 de Novembro como marco dos novos tempos assinalados pela prosperidade e como o começo de uma era revolucionária, conforme defendiam os republicanos [SIQUEIRA. OP. CIT. P.161]. No Pará, as criticas promovidas pela oposição não questionavam o regime, antes evidenciando que as disputas eram mais pela hegemonia política do que a negação da República como regime político a ser seguido. À primeira vista o que ocorria era a disputa pelo consentimento de conduzir o novo regime.

O governo parecia não se importar tanto com este tipo de crítica, talvez por considerar imperiosa a necessidade da festa cívica enquanto função pedagógica [CARVALHO, 1990; FERREIRA NETO, 1989] que pudesse fazer convergir o imaginário social para a exaltação do regime e assim dilatar a compreensão de que a República seria o regime do "progresso", pois, como argumenta Carla Siqueira, o governo entendia que o grupo dirigente encarregado de “manter viva a idéia de República, como slogan organizador da sociedade”. A comemoração do dia 15 de Novembro, data máxima da República, contribui para este esforço: tenta enquadrar a sociedade neste sentido construtivo [SIQUEIRA, 1994, P.164]. 

De acordo com Carla Siqueira, a questão do sistema representativo e do voto também guarda relações com as comemorações, pois “[...] a comemoração atenta à fabricação de um consenso o mais abrangente possível, ou mesmo unanimidade [...]” [IBID. P.164]. Neste viés, ao festejar a República, procurava-se o entendimento de que, junto com o tempo do novo regime, marcava-se também o tempo da civilidade, o ponto de "evolução" e da liberdade que estaria condensada no republicanismo dentro de uma perspectiva jus naturalista. 

3 - MANIFESTAÇÕES ARTÍSTICAS NA CONSTRUÇÃO DA REPÚBLICA

Em obra intitulada No Coração do povo, o historiador paraense Geraldo Coelho realiza interessante abordagem acerca do monumento escultural erguido em Belém no final do século XIX, que pode servir de ponto de partida para breves considerações sobre a utilização da arte no alvorecer da República no Pará [COELHO. OP. CIT.].

Antes de partir para a leitura do monumento, o historiador apresenta algumas considerações acerca dos republicanos históricos do Pará e conclui que formavam um clube que:

"[...] alinhava-se ao evolucionismo de Saldanha Marinho e Quintino Bocaiúva [...]". Defende ainda que a grande maioria dos republicanos paraenses "saíram dos quadros dessa elite que a economia do látex melhor definiria [...]" [IBID.].

Neste último caso, a afirmativa não é válida quando relacionada ao grupo de republicanos históricos, visto que a maioria dos integrantes não era envolvida nos grandes negócios do látex. Eram profissionais liberais, advogados, médicos, professores, jornalistas, funcionários públicos e militares que ascendiam ao poder político com a Proclamação, principalmente o grupo que permaneceu no poder durante a primeira década republicana.

Na interpretação de Coelho, não houve um grupo radical como o de Silva Jardim, ou seja, defensor de uma solução revolucionária, como forma de proclamar o regime republicano. Porém isto não significa que após a Aclamação os embates entre as elites políticas não tenham sido tencionados, uma vez que as disputas extrapolaram o espaço de luta das elites políticas, até atingir o ponto em que as investidas em revoltas tornaram-se caminhos para a conquista do poder. Portanto, o clima não conturbado da primeira fase, a da atuação do Club Republicano, não se repetiu durante a primeira década republicana; uma segunda fase marcada por tensões, revoltas, deportações e empastelamento de jornais.

A respeito da utilização da imagem feminina pelos republicanos do Pará, Coelho defende que, além do monumento à República - do qual o autor faz uma expressiva leitura do conjunto escultural - não houve um uso sistemático da imagem feminina enquanto simbologia. Na observação de Geraldo Coelho, só no começo da década de 1910 isso viria a ocorrer, ou seja, Marriane "[...] apareceria de forma mais universalizada [...]" [IBID. P.12]. O historiador aponta a Proclamação da República portuguesa como "processo deflagrador" do uso de imagem. Portanto, coube aos comerciantes portugueses que viviam em Belém o papel de fecundar a República-Mulher no Pará: 

Como era expressiva a presença de elementos da comunidade portuguesa da imigração em lojas maçônicas de Belém, é possível que esse fato haja contingenciado a forma como a iconografia foi desenvolvida. De qualquer modo, tratou-se não apenas de uma floração extemporânea de Marriane no cenário público do Pará, como também de uma linguagem simbólica distante da cultura republicana local_ e, mesmo, nacional” [IBID. P.42]. 

Todavia, cabe lembrar que os republicanos históricos agrupados no Partido Republicano do Pará, dirigindo-se publicamente através do jornal A República, a partir do segundo período de circulação, passaram a publicar iconografias homenageando republicanos locais e nacionais em datas comemorativas, muitas vezes utilizando figuras femininas para representar a República. Porém é claro que, além da escultura da Praça da República, o uso da imagem da República-Mulher ficava restrito às iconografias dos jornais. Foi a partir de 1910, como anota Coelho, que o apelo político à imagem feminina apresentou-se de forma mais ampla, mas antes de tudo, como um reflexo e não plena fecundação da Proclamação da República portuguesa. Retomando as interpretações de Geraldo Coelho sobre o complexo escultural erguido na Praça da República, encontramos a seguinte afirmativa:

Muito provavelmente, as preocupações de Justo em erguer em Belém um edificante monumento à ordem republicana brasileira refletissem, em termos locais, a mesma perplexidade que tomou conta de Aristides Lobo no Rio de Janeiro no 15 de novembro de 1889. No Pará e no Brasil como um todo, a República praticamente nasceu do ventre do telégrafo”. [IBID. P.63].

Digamos que as preocupações em produzir um monumento não se reduziram à falta de apoio popular no dia 15 de Novembro e no próprio processo que levou à Proclamação. Havia expressiva tensão política que perdurou durante todo o período do Governo Provisório no Pará. Trata-se de um período marcado por deportações, violência física e revoltas. Por isso, de maneira mais urgente do que acredita Geraldo Coelho, a imagem era uma forma de exaltar o novo regime que, logo no primeiro momento, experimentava um cenário conflituoso a ele relacionado.

De fato havia no Pará um "republicanismo doutrinário", apresentado visivelmente nas páginas do jornal A República como "[...] um republicanismo pautado na erudição e pelo distanciamento em relação às classes menos politizadas da sociedade local" [IBID.]. Isso não quer dizer que os rumos do regime fossem traçados apenas pelos republicanos históricos, e muito menos que grupos sociais da base da sociedade paraense ficassem alheios às transformações políticas, aos governos e aos principais debates.

Quando da inauguração do monumento em 1897, segundo Coelho "[...] a República brasileira já havia passado pela Revolta da Armada, pelos Batalhões Patrióticos dos jacobinos cariocas, pelos pronunciamentos sistemáticos da Escola Militar e enfrentado a si mesmo em Canudos" [IBID. P.93].

Como se vê, o autor refere-se à Revolta da Armada, à Guerra de Canudos, bem como a outros eventos, sem ao menos mencionar os impasses políticos experimentados pelos republicanos paraenses. Nesta linha de análise, parece que no Pará a República não teve que enfrentar sérios problemas. Contudo, é evidente a ocorrência de vários conflitos intrinsecamente relacionados ao regime republicano. Neste caso, é válido que se dê ênfase aos movimentos ocorridos no Pará no alvorecer do regime republicano, como a Revolta de 11 de Junho e a Revolta do Capim, que devem figurar entre as mais significativas revoltas do período provisório da República, além de outras duas tentativas de revolta que visavam a deposição do governador do estado [FARIAS, 2005]. Ainda no momento da gênese do monumento à República erguido teso em Belém, impasses, conflitos e revoltas relacionados à estrutura do regime recém proclamado já se apresentavam no cenário paraense.

Portanto, as iconografias começaram a ser publicadas e utilizadas de forma sistemática na propaganda republicana, principalmente nas datas comemorativas, logo no primeiro ano do novo regime. Nas edições do jornal A República, no período analisado neste texto, encontra-se uma série de iconografias produzidas pelo artista alemão Carlos Wiegandt que fundou sua oficina no ano de 1871 com grande dificuldade e segundo o próprio Wiegandt, sua prosperidade ocorreu a partir da transformação de regime político, pois:

Trabalhei, esforcei-me, e hoje vejo coroado os meus esforços graças ao novo regimen republicano que colocou no Governo homens que têm sabido desenvolver as artes, outrora tão esquecidas, concorrendo com patriótica atividade para um futuro auspicioso deste Pará” [MOURA, 1895. P.145-47]. 

Esta manifestação do artista é de 1895, período em que a publicação de iconografias homenageando a República e os pretensos heróis republicanos dilataram-se inclusive com o uso de alegorias femininas, o que o artista alemão atribuía claramente ao novo regime. Ora, Vovelle, discutindo acerca da herança simbólica da República Francesa, afirma que o movimento francês também levou a valorização de alguns segmentos do campo artístico, principalmente daqueles que colocaram a arte a serviço da revolução [VOVELLE, 1997].

Hans-Karl Wiegandt era o nome original do artista alemão, que chegou ao Brasil por volta de 1868, dirigindo-se inicialmente ao estado de Pernambuco. Em 1870 chegou a Belém, abrindo seu ateliê no ano seguinte. No Pará ficou conhecido como João Carlos Wiegandt e na concepção de Vicente Salles, esse artista acabou exercendo um papel em muitos pontos semelhante ao que Ângelo Agostini exerceu no Rio de Janeiro, sendo o iniciador da impressão caricata em terras paraenses [SALLES, 2001. P.75].

Os seus primeiros trabalhos na imprensa paraense foram publicados no jornal A Província do Pará de 19 de setembro de 1880, em homenagem ao maestro e compositor Carlos Gomes, e no jornal Diário de Notícias, com a iconografia do maestro paraense Henrique Eulalio Gurjão [IBID. P.108] Seriam as primeiras obras de um conjunto interessante e digno de colocar o artista em destaque, possibilitando a ampla divulgação da litografia paraense na passagem do século XIX ao XX.

A oficina de Wiegandt realizava vários tipos de trabalhos como seja desenho, gravura, pintura, impressão de papéis comerciais, papéis de valor, cartazes, rótulos, etiquetas, impressos em cromolitografia para fábricas e industriais, diplomas, patentes, cartas geográficas, desenhos arquitetônicos, artísticos e científicos. Também trabalhava em mármore "produzindo esculturas e relevos para a arquitetura urbana e arte cemiterial" [IBID. P.102]. O artista também teve a iniciativa de publicar um jornal, em 17 de dezembro de 1898, em comemoração ao aniversário de Lemos, aparecendo como proprietário da tipografia Carlos Wiegandt que editou o jornal Antônio Lemos, mesmo sendo em caráter especial [SARGES. OP. CIT. P.73].

Entre as obras em mármore, merece destaque a homenagem à República, litografada no mármore da jardineira de centro na qual Paes de Carvalho subiu para proferir o discurso de Aclamação da República no Pará [REBELLO, 1965. P.123]. No mármore da jardineira procurava-se a perpetuação dos dias 15 e 16 de Novembro de 1889, como início dos novos tempos. Na parte superior ficava a litogravura do brasão da República. Após o texto aparecem os símbolos do Exército, a espada; da Armada, a âncora; e do Club Republicano do Pará, a pena. É expressivo o conjunto de obras de autoria de Wiegandt, que atuava em variados ramos e na litografia inquestionavelmente, foi hegemônico em seu tempo.

As imagens estampadas nos jornais paraenses que circularam no final do século XIX e início do XX, quase sempre eram obras de Wiegandt e o restante, provavelmente, era produzido por artistas por ele influenciados. Com o estabelecimento do regime republicano, Wiegandt alcançou maior prestígio, tendo seu trabalho reconhecido e chegando a ser nomeado professor de desenho da Escola Normal [SALLES. OP. CIT. P.102]. O artista alemão também era apresentado no jornal A República como professor do Lyceu de Artes e Offícios Benjamin Constant [A República, 15/11/1892. P.1], instituto de ensino no qual os alunos homenagearam o governador Lauro Sodré com uma iconografia que apresentava traços marcantes do estilo de Carlos Wiegandt [O PIMPÃO, 15/08/1891. P.1].

A arte de Wiegandt pode ser verificada nas principais datas comemorativas do regime republicano e em datas de aniversários de políticos, intelectuais e grandes expressões sociais. As homenagens eram publicadas, preferencialmente, nos periódicos que circulavam no Pará. A República-Mulher, as armas do Exército e da Marinha, os ramos de flores, o barrete frígio, o gorro operário, a bandeira da República brasileira e as árvores, simbolizando a região, fizeram parte das obras do artista alemão que também produziu a Efígie de Marx, publicada no jornal operário O Trabalho, editado a partir de 01/02/1891 [O TRABALHO, 01/02/1891. APUD. SALLES. OP. CIT. P.79].

A coincidência da República com o momento econômico favorável ao Pará contribuiu para algumas transformações na capital paraense. Iniciou-se um período bastante favorável ao campo artístico, a ponto de alguns artistas acreditarem estar vivendo um momento de esplendor. As artes “Tomam grande impulso, amparadas por condições políticas e econômicas vantajosas. O governo pode subvencionar estudo de dezenas de artistas nos melhores centros da arte européia. São beneficiados, em especial, jovens dotados de aptidões para a pintura e para a música” [SALLES. 1994, P.131].

Na realidade, como já afirmado, Wiegandt foi o precursor, mas logo os governos republicanos investiram na formação de artistas locais financiando seus estudos nos grandes centros europeus. Afinal a República não poderia ser estabelecida apenas com a força das leis e das armas de fogo. A arte era parte integrante da política, um instrumento persuasivo importado para construção da hegemonia republicana, sendo os espaços públicos locais privilegiados para discursos, principalmente quando se tratava de imagens que deveriam forjar sentimentos republicanos [SALGUEIRO, 2002. P.2].

O campo artístico, como diria o filósofo italiano Antonio Gramsci, também funcionava como aparelho privado de hegemonia [GRAMSCI, 1991], ainda que a oposição aos primeiros governos republicanos, entendendo que a República não tinha “dono”, não deixasse de se manifestar pela imprensa e em movimentos de contestação aos projetos dos governos republicanos. Havia uma relação de reciprocidade, pois a arte tanto estava a serviço da República, como a República financiava a arte.  

4 - A Política nos Palcos Teatrais

No Largo da Pólvora, mais precisamente na Praça D. Pedro II, bem ao centro, ainda nos escombros do Império, o grande ícone da concepção de civilização e modernidade da capital paraense fora erguido: o Theatro da Paz que significava o principal espaço de apresentação e representação artística ligando a capital paraense às grandes metrópoles européias esquadrinhando um viés da visão de mundo das elites paraenses. O teatro apresentava-se imperioso ainda na paisagem arquitetônica do centro da Praça D. Pedro II que, em menos de duas décadas, viria a se chamar Praça da República.

Com a Proclamação da República a preocupação com a definição dos lugares para a construção de símbolos fundadores do novo regime, levou a mudança do nome da praça e, em seguida mudou a imagem do teatro. Afinal, como ostentar o belo teatro, no centro da recém renomeada Praça da República, sem lhe atribuir um significado republicano? Esta preocupação parece ter sido grande para os construtores da República no Pará. Ainda no primeiro ano do novo regime, o teatro recebeu um novo pano de boca, tão novo como o próprio regime político. Assim ficava explícito o interesse do governo republicano em identificar os espaços privilegiados da capital paraense com o regime proclamado por meio do Golpe de 15 de novembro de 1889.

O teatro, cuja construção foi iniciada em março de 1869 e concluída em 1874, devido questões judiciais envolvendo o governo e a firma contratada para a execução da obra [IBID, P. 74] só veio a ser inaugurado em 1878 [SILVEIRA, 2005].

Seu projeto inaugural foi assinado pelo engenheiro militar José Tibúrcio de Magalhães, mas modificado pelo fiscal do governo Antonio Augusto Calandrini de Chermont no ano de 1904, já no período republicano. Dentre outras alterações, o fiscal do governo ampliou o pórtico da entrada, acrescentou algumas esculturas e reduziu o número de colunas da fachada, de sete para seis colunas, como forma de adequá-la ao Art Noveau.

Com base em paradigmas europeus, modernidade e civilização se expressavam na arquitetura do teatro, nos espetáculos, nos trajes e na presença da elite paraense. Como código simbólico da modernidade, a casa de espetáculos, antes mesmo de sua inauguração, já estava inserida na lógica da reprodução capitalista. O empresário Vicente Pontes de Oliveira, em momento anterior ao da inauguração, já havia até assinado contrato responsabilizando-se pela manutenção do Theatro da Paz e adquirido o direito de explorar economicamente os espetáculos artísticos que aí se apresentassem. Vale salientar aqui que Vicente Pontes de Oliveira era um investidor bastante experiente no ramo de exploração das artes cênicas no Pará onde já atuava antes da existência do Theatro da Paz. Assim, não perderia perder esse contrato bastante vantajoso e assinado em 15 de outubro de 1877 que, entre outras coisas, definia:

Ficava ele responsável pelo serviço de iluminação, decoração, cenografia e acessórios de cena, obrigando-se a dar, durante e anos, com uma companhia organizada por si só ou por outrem, espetáculos dramáticos, tudo mediante a indenização pela província da quantia de 40 contos de réis, paga em quatro prestações. Assim conseguiu que o monopólio da exploração de mais uma casa de espetáculos, a maior e a mais importante do Norte do país” [SALLES. OP. CIT. 1994. P.78]. 

A preocupação com a beleza do grande teatro não se esgotara com a construção, a manutenção do prédio e do calendário de espetáculos. Era patente o desejo de fazer do teatro um espaço cada vez mais privilegiado, pois, em 1887, o governo provincial não mediu esforços para contratar o pintor italiano Domenico De Angelis para decorar a sala de espetáculos. O renomado pintor veio então a Belém, acompanhado de um significativo grupo de artistas. Na realidade Domenico coordenou uma equipe que contava também com Capranesi, outro destacado artista italiano. Essa mesma equipe também executou a obra artística da Catedral da Sé [MOURA. OP. CIT. P.110].

A arte no Theatro da Paz, logo à primeira vista, apresentava-se nos camarotes e no salão nobre, admiravelmente decorado para receber um público seleto para o qual o teatro fora erguido suntuosamente na parte central da cidade que iniciava a sua trajetória de capital brasileira da borracha e cuja elite apresentava-se como capaz de freqüentar os melhores locais, mesmo que o teatro tenha custado caro aos belenenses da segunda metade do século XIX, uma vez que seu orçamento quase chegou à quantia de 800 contos de réis [SALLES. OP. CIT. 1994. P.78].

É verdade que a cidade apresentava sérios problemas relacionados ao saneamento e a outros serviços básicos de infra-estrutura, mas, para o grupo dirigente, havia a necessidade imperiosa de um espetáculo em forma de teatro e ao mesmo tempo de um teatro para dar espetáculos, uma glória, enfim, no palco e fora dele. 

Considerando os padrões nacionais da época, um teatro magnífico expressivo, precisava ele mesmo ser espetacular. No teto foi pintado o espetáculo de Apolo, Deus das artes, da poesia e da luz que se apresentava imperioso e no comando de um carro conduzido por cavalos, que, surgindo das nuvens, acompanhado de musas, entrava majestosamente na Amazônia, região que também se apresentava ao Velho Mundo como espaço de civilidade expressa pelas obras de grandes artistas. Mas Diana, a caçadora, apresentada como uma tapuia, não poderia eximir-se ao grande espetáculo, pois simbolizava a mulher fin de siecle que tinha no teatro um dos mais requintados espaços públicos.

A Praça da República era um lugar de encontros, onde se situavam os principais espaços públicos de sociabilidade e de debates sobre várias questões políticas, sociais e culturais. Era o centro da boemia intelectual paraense. De certa forma, havia alguma relação entre a Praça da República e a Rua do Ouvidor, pois os círculos de intelectuais paraenses discutiam questões e temas locais, nacionais e internacionais travando longos debates nos cafés, magazines, teatros, quiosques e outros locais públicos situados nas cercanias do Theatro da Paz, o local privilegiado da capital paraense. Estes debates estavam relacionados a questões da vida belenense e às problemáticas de âmbito nacional que circulavam na Rua do Ouvidor e chegavam à capital paraense por meio da imprensa instigando os burburinhos nos locais públicos mais freqüentados de Belém.

No lado oriental do Theatro da Paz, José Guilherme Kopke Corrêa Pinto mandou construir o Café Chic e o Teatro-Circo Cosmopolita dentro de um estilo parisiense. O Café Chic era o primeiro edifício moderno para o período, sendo inaugurado em 09/05/1880. “[...] Café Chic era tido como sem igual em todo o Norte. Era dirigido por João Maria da Silva – o João Chic – amigo dos artistas e dos poetas. Tinha em seu anexo o Hotel da Paz que hospedou em 1882, Carlos Gomes, na sua primeira visita ao Pará” [IBID. P.129]. Já na vigência do regime republicano, na década de 1890, o Café Cantante Alcazar, foi construído e se tornou um marco na vida da boemia paraense [IBID. P.146] Na mesma década, erigiu-se o Teatro Politeama, no local onde ficava o Teatro-Circo Cosmopolita, um prédio bem mais elegante [IBID. P.132] que o anterior.

Era importante no momento exaltar a República e colocar símbolos e temários republicanos nos lugares chaves da capital. Essa premissa evidencia-se com a inauguração, nesse mesmo ano, de um pano de boca para o Theatro da Paz e cuja tela exaltava a República a partir do enredo que representava a constituição de um Brasil mestiço, mas, sobretudo, republicano. O primeiro pano de boca em 1890 já tinha 12 anos encontrando-se em péssimas condições e a administração do teatro reclamava a sua substituição desde o ano de 1886 [Relatório do Presidente da Província, 1886, PP.91-93]. Não se encontra qualquer foto ou descrição do antigo pano de boca, mas certamente não seria nada favorável à exaltação republicana, havendo ainda grande possibilidade de se tratar de uma obra impregnada de símbolos, signos e sinais tidos como representações monárquicas, pois como bem defende  Valéria Salgueiro “[...] os poderes políticos e as religiões com freqüência utilizaram a pintura como um meio de persuadir e de alcançar maior prestígio” [SALGUEIRO, 2002. P.2].

A tela do pano de boca inaugurada em 1890 reúne elementos simbólicos de exaltação à sociedade brasileira apresentando um espetáculo em ambiente de confraternização entre índios, mestiços e lusitanos, tendo como cenário a selva amazônica, onde todos saudavam os novos tempos inaugurados com o novo regime. A obra, encomendada pelo governo republicano, foi de responsabilidade do ateliê de Carpezat, em Paris.

Não há informações precisas sobre a autoria do pano de boca, mas há evidencias suficientes para creditar ao cenógrafo pernambucano e artista de Carpezat Chrispim do Amaral, que estudou na Itália, trabalhou na França e realizou cenografias no Theatro da Paz e no Teatro Amazonas [IBID.] Chrispim era um migrante pernambucano que no Pará se destacou como artista e viajou para a Europa, passando a fazer parte da equipe do ateliê de Carpezat. Trata-se de um especialista em painéis para pano de boca. Em Belém foi o autor do primeiro do Theatro da Paz quando foi inaugurado em fevereiro de 1878 e do Theatro Politeama. Em Manaus, pintou o pano de boca do Teatro Amazonas. Em 1890, foi publicada uma nota na imprensa que atribuía a Chrispim do Amaral a autoria do pano de boca do lindo teatro paraense:

O grande pano-de-boca representando a apoteose da República, será apresentado ao respeitável público, como também magníficos cenários pintados na Europa, sob a direção do talentoso Chrispim do Amaral [...]” [A REPÚBLICA, 14/08/1890. P.1].

Note-se ainda que o referido artista fizesse o plano orçamentário da obra em 1886 quando a administração solicitou ao presidente da província a quantia de 3:000$000 de réis [RELATÓRIO. OP. CIT. P.91].

Contudo, o novo painel contendo símbolos republicanos não foi bem recebido por alguns críticos (de arte ou não, profissionais ou amadores), principalmente quanto à concepção estética, devido o temário de uma República representada por negros, indígenas e mestiços. Trata-se de uma época em que as teorias raciais tinham bastante penetração e aceitação no Brasil [SCHWARCZ, 1993], sendo inclusive mais fortes que o próprio regime republicano. Ainda assim é possível que, em uma manifestação de identidade étnica, a intenção do artista fosse de representar a mestiçagem da sociedade brasileira como aspecto expressivo, pois o próprio Chrispim do Amaral era mulato.

O sentido pedagógico da simbologia republicana no que diz respeito à República-Mulher estava presente no painel de Chrispim, tamanha era a influência francesa nos códigos simbólicos brasileiros no período de transição de regime político. Portanto, entre várias viagens, Marianne, veio da França para o Brasil. Mesmo o Brasil tendo sido o último país da América a proclamar a República, Marianne seguiu viagem para outros países do Velho Mundo como, por exemplo, Portugal, onde o uso sistemático das simbologias republicanas herdadas da Revolução Francesa só se verificaria a partir de 1910, com a Proclamação da República portuguesa.

A inauguração do pano de boca, é claro, também deveria ser marcada por grandes apresentações no teatro afinal, tratava-se do dia 15 de agosto de 1890, dia em que se comemorava a “Adesão” do Pará a Independência, data sugestiva para ser ressignificada em torno da República. Na noite da inauguração a empresa Gama Malcher abriu as apresentações com um grande espetáculo, digno do evento que se comemorava. Reuniram-se artistas, políticos e intelectuais. Um hino, classificado como hino republicano do estado do Pará, foi regido pelo maestro Gama Malcher em homenagem ao regime e ao Dr. Justo Leite Chermont que, na condição de governador, era o chefe máximo da República no Pará: “O hino também foi executado em cena aberta, cujo coro foi executado pela companhia lírica, [...] fazendo o corpo do baile e a apoteose da República [...]”. Na ocasião, após os discursos, houve um grande espetáculo com a apresentação da ópera Ernani, de Verdi. O barítono paraense José Lima Braga esteve em cena no papel de Carlos V – [IBID.].

O afã de adaptações e melhorias no Theatro da Paz continuou, e em 1904 passaria pela mais significativa reforma. O trabalho visava sua adequação ao requinte do Art Nouveau, mas, coincidentemente, com a conclusão da reforma do teatro em 1905 a economia gomífera iniciou sua marcha para a crise, o que representou o início das grandes dificuldades para garantir a contratação de companhias líricas para espetáculos.

A hegemonia republicana buscava ser construída e o teatro revelava-se um dos lugares privilegiados para tal fim. Dentro desse contexto, em 22 de junho de 1890 teve início a Primeira Estação Lírica Republicana que ocorreu no Theatro da Paz. A temporada teve em sua abertura a ópera La Somnambula, de Donizetti que foi a apresentação principal da companhia lírica organizada na Itália que contou com a participação do mesmo José Candido da Gama Malcher. A apresentação teve como destaque a participação do barítono paraense José Lima Braga que ainda era estudante no Conservatório de Nápoles. José Braga já havia se apresentado em vários teatros da Europa, mas estava fazendo sua estréia na terra natal [IBID.].

Enfim, ao mesmo tempo em que se mostrava espaço de diversão, trabalho, ostentação, o teatro era igualmente um grande palco político, dos camarins aos camarotes. As temáticas das peças encenadas no Theatro da Paz eram diversificadas. Da Europa vinham as companhias líricas compostas por artistas contratados por um agente brasileiro com a função de realizar contatos e assinar contratos. Além das companhias contratadas na Europa, havia ainda as companhias nacionais e as sociedades artísticas locais. A presença das companhias estrangeiras, longe de significar uma crise para os artistas e empresários locais, intensificou o desenvolvimento do teatro em estruturas fechadas e a céu aberto com temporadas pré-definidas ou improvisadas.

Sob a República, o palco do Theatro da Paz, além das atribuições artísticas, teve funções políticas e sociais específicas. Solidariedade e filantropia faziam parte dos espetáculos nos teatros paraenses. Auxílios direcionados à educação eram freqüentemente promovidos por meio de espetáculos em seus palcos. Associações, escolas, clubes e artistas dentre outros necessitados recebiam atenção especial e ajuda financeira que deles vinham.

Os trabalhadores, por meio de suas associações, representavam dramas ou comédias relacionados às suas vidas. Afinal, assim como a vida imita a arte, a arte a imita e também a ajuda. Dentre outros benefícios, no Theatro da Paz, em 12 de janeiro de 1891, ocorreu a apresentação do drama socialista, Gaspar o serralheiro que foi dedicado aos operários paraenses [IBID. P.137]. Mais uma vez temos exemplo de manifestação artística cujo título sugere a crítica político-social.

Em nove de agosto de 1891 uma matinée litero-musical foi realizada em benefício do Lyceu de Artes e Offícios Benjamin Constant. No dia 14 de agosto outro espetáculo fora realizado em benefício do liceu. Tal benesse partiu do Corpo Cênico da Associação Dramática Recreativa Beneficente. Como podemos apreender, os artistas não poderiam deixar passar a oportunidade de contribuir para a criação de uma escola destinada aos operários. O teatro era um lugar viável para conseguir recursos básicos ao estabelecimento de ensino. Afinal, do Liceu poderiam surgir novos talentos, uma vez que se tratava de uma escola que também tinha como princípio a formação de operários e artistas plásticos.

No dia 10 de julho de 1892, o Corpo Cênico do Ateneu Commercial do Pará promoveu um espetáculo no Theatro da Paz em benefício do paraense Alípio César Pinto da Silva, um jovem tipógrafo que se destacava como flautista e desejava concluir seus estudos de música no Conservatório de Milão [IBID. P.143].

O maestro Roberto Barros compôs a marcha intitulada Lauro Sodré que foi executada em 30 de maio de 1894, contando com uma orquestra de 40 professores, sob a batuta do próprio Roberto Barros. Era um benefício ao professor de música Joaquim Barros que se encontrava doente e precisava de recursos para seu tratamento de saúde. O enfermo era irmão do maestro, mas naquela ocasião os artistas também rendiam homenagem a Lauro Sodré, como protetor da arte e da República [A REPÚBLICA, 30/05/1894. P.1].

De acordo com suas aptidões, influências e condição social, também as mulheres se expressavam no campo artístico. A jovem Cecília Ierecê Lemos, filha do político e jornalista Antonio José Lemos, escreveu a letra de uma valsa e a enviou para Milão para análise do maestro Carlos Gomes. A obra recebeu o título de Artes e Offícios na Amazônia, sendo impressa na Europa, instrumentada por Carlos Gomes, executada no Theatro da Paz e oferecida ao Lyceu de Artes e Ofícios Benjamin Constant. Conforme defende Ignácio Moura; “Ella entregou todos os exemplares impressos da sua obra ao presidente da Sociedade Propagadora de Ensino para serem vendidos em benefício do Lyceu Benjamin Constant [...]” [MOURA. OP. CIT. P.95.]. Após a avaliação de seus escritos, Carlos Gomes escreveu que: “A valsa da mademoiselle Cecília pode ocupar um “posto em qualquer concerto”, tanto a quatro mãos, como dois pianos e mais até. Interessei-me pela valsa por ter reconhecido o talento e a inspiração espontânea de mademoiselle Cecília [...]” [IBID. P.96]. 

O maestro fez calorosos elogios a Cecília Lemos, defendendo que a mesma possuía um talento genial. Na ocasião da execução da ópera, Cecília foi saudada em seu camarote pelos maestros Carlos Gomes e Gama Malcher. A jovem compositora era paraense, tinha 22 anos e até o momento em que escrevera a valsa ainda não havia saído do estado, embora já tivesse escrito a valsa A Província do Pará, orquestrada em Belém pelo imigrante italiano Luigi Sarti, em homenagem a Antonio Lemos, seu pai, proprietário do jornal que possuía mesmo nome da valsa. Cecília recebeu aulas particulares de professores de ciências, artes e boas maneiras. O próprio maestro Carlos Gomes, quando esteve na capital paraense em 1885, lhe deu algumas lições de harmonia e contraponto [IBID.].

Enquanto apresentação e representação o teatro estava nas ruas de Belém, e não apenas nos círculos letrados e elites locais. Nos arraiais das festividades populares, de acordo com os calendários das festas locais, pequenos teatros mambembes se apresentavam e as temáticas políticas locais e nacionais ocupavam lugar de destaque no espetáculo.

Muitos trabalhadores, além de atuarem como artistas e amantes das artes, com certeza utilizaram o teatro como instrumento de críticas políticas e sociais. Fazer e apreciar o teatro não pertencia apenas ao domínio das elites, pois de forma orgânica os trabalhadores participavam da produção artística na capital paraense.

Os historiadores como expectadores noturnos e diurnos, podem por meio da imaginação que emerge do diálogo com as fontes, acompanhar as pequenas companhias de teatro a se apresentarem nos arraiais de Belém, encenando peças críticas quanto a questões políticas e sociais daquele fin de siecle. Afinal é também na imaginação que se encontra o espetáculo da relação entre presente e passado, de acordo com a capacidade quase alquimística de viajar pelo tempo, como passageiros e navegantes que selecionam percursos e observam com atenção personagens idos, mas eternizados em antigos alfarrábios poeirentos.

Foi possível acompanhar as festividades religiosas do Círio de Nazaré em outubro de 1892, quando funcionaram três teatros no arraial de Nazaré. Um deles, o Teatro Variedades, formado por um grupo de artistas amadores que apresentaram algumas peças a partir do dia 27. Das apresentações, destacaram-se às comédias O Malaquias e Manda quem pode que pelos títulos parecem ter discorrido sobre temáticas que representavam aspectos da vida política local [SALLES. 1994. P.145]. Mesmo não se encontrando os textos destas comédias, apenas pelos títulos infere-se tratarem de encenações sobre aspectos da política paraense. Malaquias era uma denominação pejorativa, direcionada aos capoeiras que se envolviam em questões políticas. A origem desta denominação conforme se verá no segundo capítulo, está nas ações movidas pelo capoeira Pedro Paulo Batista, que muito trabalho deu às autoridades políticas e policiais durante o primeiro ano de República no Pará. O título Manda quem pode, sem dúvida, está ligado às relações de poder vigente na política local, remete a idéia de uma política autoritária e repressiva em curso no alvorecer da República.

Em 1891, o agente contratante paraense na Europa não conseguiu recrutar artistas e formar companhias, pois os italianos não quiseram embarcar sem antes se certificarem sobre os acontecimentos no Brasil. Só vieram após informações precisas quando atestarem menores riscos de serem atingidos por questões que não lhes diziam respeito [SALLES. 1994. P.147].

No inicio do ano de 1893 novamente houve grande dificuldade em trazer artistas da Europa para Belém devido à instabilidade política do país. A Revolta da Armada já era notícia internacional, e isto certamente causava medo aos interessados em apresentações em terras brasileiras. Em alguns momentos, tanto os apreciadores e investidores do teatro quanto os artistas sentiram reflexos dos conflitos políticos do início da República.

Os momentos de instabilidade política, ao mesmo tempo em que impunham obstáculos à promoção da vinda de artistas do continente europeu, forneciam temas para os artistas nacionais. A Companhia de Operetas e Revistas, de responsabilidade do autor e empresário Francisco Moreira de Vasconcelos, apresentou uma série de peças dentre as quais merece destaque Os Revoltosos, sobre a Revolta da Armada liderada pelo almirante Custódio de Melo [SALLES. 1994. P.157].

Espetáculos poderiam ser realizados com os mais destacados brasileiros do cenário internacional. Carlos Gomes, por exemplo, tinha lugar de destaque na capital paraense. Afinal, como artista que brilhava cantando o Brasil e encantando o mundo ocidental, era digno de grande reconhecimento e deveria ser valorizado pelos artistas e governos republicanos. O maestro campineiro voltou ao Pará pela última vez no ano de 1896 quando já estava bastante adoentado. Mesmo assim foi empossado no cargo de diretor do Conservatório de Música, falecendo em 16 de setembro daquele mesmo ano [IBID.].

Talvez a vinda de Carlos Gomes para Belém fosse também uma forma de agraciar os artistas e amantes das artes no Pará, além de um investimento do governador Lauro Sodré no significado simbólico que representava a presença do maestro e compositor em terras paraenses. Era significativo e motivo de orgulho para os paraenses ter o maestro como diretor do Conservatório de Música, principalmente na gestão de Lauro Sodré que não perdia a oportunidade de exaltar o novo regime, vendo nos grandes personagens um elemento valioso de culto à República, tanto que com a morte do compositor a escola de música passou a se chamar Conservatório Carlos Gomes. 

Considerações Finais

O final do século XIX marcou a presença de artistas vindos das grandes cidades italianas e francesas e outros que visitaram a capital paraense. Como centros artísticos reconhecidos na época, Paris, Roma e Milão eram as mais importantes cidades para formação a artística. Na primeira oportunidade, os paraenses migravam para estes centros, visando o aperfeiçoamento.

Desde o Império os talentos locais também eram levados para o Velho Mundo. Mas a estreita relação entre a capital paraense e os grandes centros europeus, foi ainda mais provocada e aproveitada pelos governos republicanos que investiram mais nos estudos de artistas na Europa.

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A República, Belém, 15/11/1892. P.1 

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Arquivo Público do Estado do Pará. Fundo: Executivo. Falla do Presidente  da Província Jerônimo Francisco Coelho no dia 1 de outubro de dirigida à Assembléia Provincial. Belém: Typographia do Diário de Notícias, 1848. 

Arquivo Público do Estado do Pará. Fundo: Executivo. Relatório do Presidente  da Província Fausto Augusto d’Aguiar apresentado à Assembléia Provincial. Belém: Typographia do Diário de Notícias, 1851. 

Arquivo Público do Estado do Pará. Fundo: Executivo. Relatório do Presidente  da Província Henrique Baurepaire Rohan apresentado à Assembléia Provincial. Belém: Typographia do Diário de Notícias, 1856. 

Arquivo Público do Estado do Pará. Fundo: Executivo. Relatório do presidente da província João Antonio d’Araújo Freitas Henriques. Belém: Typographia do Diário de Notícias, 1886.  

Arquivo Público do Estado do Pará. Fundo Executivo. Mensagem dirigida ao Congresso do Estado do Pará pelo governador do estado Dr. Lauro Sodré. Pará: Imprensa do Diário Official, 1897. 

O Democrata, Belém, 15/10/1890. P.1. 

O Pimpão, Belém, 15/08/1892. P.1

Notas:

[1] Há mais materiais iconográficos publicados nas datas comemorativas no periódico A República, entretanto destacamos as seguintes edições: A República. Belém, 16/02/1890. p. 1. Os retratos do Dr. José Paes de Carvalho, Presidente do Diretório do Partido Republicano do Pará ao lado do Dr. Justo Leite Chermont, chefe do Governo Provisório do estado do Pará. Acompanhando as iconografias encontra-se alguns signos e símbolos de representação da República na região. Na segunda página foram publicados vários artigos em homenagem aos dois republicanos históricos. A República. Belém, 21/04/1891. p. 1. Tiradentes é o homenageado do dia, por isso na primeira página encontramos um apresentação iconográfica do mártir inconfidente. Acompanhando a iconografia temos a publicação da sentença de morte proferida contra Tiradentes. Na página seguinte, temos vários artigos sobrecarregados de linguagem científica. Esses artigos, em conjunto, são direcionados para a exaltação do regime republicano a partir da memória da Inconfidência Mineira.

[2] Esta noção de tradição inventada pode ser verificada em HOBSBAWM, É. RANGER, T. 1984.

 

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