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Cores, Cheiros e Sabores: As Memórias de Infância como Abordagem no Ensino da Arte Contemporânea na Formação Inicial do Pedagogo
Autora:
Vanessa Freitag[1] - vanessa.freitag@gmail.com

Resumo: O trabalho que ora apresento objetiva investigar algumas experiências com arte desenvolvidas na formação inicial de acadêmicas do curso de Pedagogia da instituição na qual atuo como professora. No entanto, tive como ponto principal discutir as memórias de infância dessas estudantes, com relação às brincadeiras, cores, cheiros e sabores vivenciados, vislumbrando nelas, possibilidades de criação artística e reflexão sobre conteúdos e metodologias no ensino de arte na contemporaneidade.

Palavras-Chave: Memórias de Infância, Arte Contemporânea, Ensino de Arte, Formação Inicial de pedagogos.

Abstract: This work aims to investigate some experiences with art developed in the initial training of university students of Pedagogy in the institution in which I work as a teacher. However, my main point in this work was to discuss the students' childhood memories, with respect to experienced games, colors, smells and tastes, awakening in them opportunities for artistic creation and for reflection on content and on methodology in the teaching of art in the contemporary setting.

Keywords: Childhood Memories, Contemporary Art, Art Teaching, Initial Training Pedagogy Student

Introdução

Quanto mais intensas as vivências,
mais duradouras se fazem.”
Mario Osório Marques

Este trabalho nasceu da minha inquietação enquanto professora e pesquisadora voltada para a formação inicial de estudantes do curso de Pedagogia, no qual leciono na área de Metodologia do Ensino das Artes Visuais e, portanto, constituiu-se numa experiência vivenciada durante o primeiro semestre letivo em 2007, mais especificamente, com duas turmas de acadêmicas. Neste período, minha proposta foi trabalhar os conteúdos e metodologias das artes focalizando-me numa abordagem contemporânea da mesma e centrando-me numa temática comum a todos: as memórias de infância, tema este, que venho pesquisando a algum tempo em minha prática artística e docente.

A idéia de trabalhar as memórias com as turmas surgiu quando mostrei minha produção plástica em sala de aula, na qual utilizo referenciais de minhas memórias de infância na criação de objetos e instalações. Devido à interação e interesse demonstrado pelas alunas, concluí que seria uma boa oportunidade para que elas também pudessem vivenciar o processo criativo fazendo relações com a arte contemporânea, mediadas pelas suas próprias histórias.

Desta forma, objetivo enfocar neste artigo a experiência do processo de trabalho desenvolvido com as acadêmicas, algumas discussões que versem sobre o conceito e possibilidades educativas da memória e sua relação com a arte contemporânea na formação inicial das mesmas acadêmicas, além de artistas que se utilizam da referência à “memória” em suas criações. Dentre as questões iniciais que nortearam a pesquisa, cito as seguintes: O que é a memória e quais as suas possibilidades no campo educativo? Que relações são possíveis de serem feitas entre arte e memória? Como as acadêmicas visualizaram a arte contemporânea e o trabalho com suas memórias? Que possibilidades educativas podem ser pensadas a partir das vivências com arte e memória no contexto escolar?

Navegando por Caminhos Estranhamente Conhecidos: um encontro possível entre memória e arte

Nosso percurso teve seu início através de uma conversa amistosa com a turma sobre algumas de suas memórias de infância. Mergulhar nas vivências de cada uma possibilitou entender um pouco mais o universo delas, bem como os contextos em que estavam inseridas quando crianças, significando, com isso, reconstruir passo a passo o sentido da infância para mesmas.

A memória traz em seu bojo inúmeras possibilidades de conteúdos e formas de se olhar e compreender o mundo que nos cerca. Por isso, ela não é mera “caixa preta” em que se depositam fragmentos de lembranças e experiências, mas está continuamente sendo movimentada por imagens e sensações que temos do cotidiano vivido.

Memória tampouco é aquilo que se localiza em um passado longínquo, pois o mesmo vive no presente toda vez que evocamos um fato ou situação em específico, “não é, por isso, a memória simples armazenagem, mas estruturação e organicidade. Não só guarda e evoca, mas seleciona e prioriza o que guarda e evoca” [MARQUES, 2006, s/n]. E, ao selecionar e priorizar, identificamos o processo seletivo da memória.

Mas, então, o que é a memória? De um modo geral, a memória seria a aquisição ou o aprendizado de informações, sua evocação ou lembrança, e a conservação ou o esquecimento das experiências que temos ao longo da vida [IZQUIÉRDO, 2004]. Neste sentido, o esquecimento também é uma categoria importante quando se discute a mesma.

Lembrar e esquecer faz parte do acervo de nossas recordações. O esquecimento significa perder o contato com aqueles que pertenceram ao nosso contexto vivencial. Perder o contato traduz-se em fatos que não conseguimos mais reconstituir sozinhos, por exemplo, quando alguém procura nos ajudar no processo de relembrar algo vivido, é preciso encontrar algumas referências, algumas imagens no acervo de nossas memórias para que, mediante o relato de outrem, essas imagens se tornem lembranças reconstituídas e possam ser sentidas como vividas realmente [HALBWACHS, 2006]. Caso contrário, permanecerão no esquecimento.

Lembrar de algo também diz respeito ao aspecto afetivo de nossas memórias, por isso, de seu caráter seletivo, afinal, não podemos lembrar-nos de todas as coisas que nos aconteceram durante um dia, meses ou anos. Só lembramos eventos e situações realmente importantes para nós, sejam elas lembranças alegres, úteis, informativas ou que gostaríamos de esquecer.

E quando menciono sobre o aspecto afetivo da memória, significa aquilo que nos afeta, que nos atinge, “todavia o que nos afeta é o que rompe com a mesmidade em que vivemos; a mesmidade não nos impressiona ou nos marca” [GONDAR, 2005, P.25]. O termo afeto ou afetividade adquire um sentido mais amplo quando designamos todo o tipo de emoção, paixão ou desejo que nos atinge de forma voluntária ou involuntária. Estes podem ser tanto agradáveis como desagradáveis, provocando dor e repulsa, ao invés de prazer e alegria [ARANHA & MARTINS, 2005]. Por isso, ao lembrarmo-nos de algo, as imagens de situações cotidianas agradáveis são aquelas que primeiramente nos vêm à mente e tentamos (mas nem sempre conseguimos) esquecer aquelas responsáveis por gerar conflitos. Mas por que isso acontece?

Félix [2002] comenta que há uma “memória reprimida” formada pelos silêncios, pelo não-dito, pelo esquecimento que alguns de nós temos diante de situações passadas e que nos causaram sofrimento. Esquecer nem sempre é um ato simples e voluntário, pois há lembranças que não se apagam devido a sua importância.

O esquecimento seria uma forma de evitar que as mazelas sejam novamente revividas no momento em que as evocamos, pois além de imagens, traz consigo fortes sensações e sentimentos. Lembrar pode mexer com momentos bastante delicados de nossas vidas, por isso nem sempre falar sobre essas vivências é algo prazeroso e fácil para todos. Foi o que percebi em relação a algumas das acadêmicas das turmas com as quais trabalhei já que num primeiro momento, encontraram dificuldades em lembrar e comunicar suas memórias para o grande grupo.

Nesse caminho, as memórias dessas alunas foram evocadas a partir de um aparato de imagens que foram trazidas à mente quando se lembraram de uma experiência, ou seja “é um ato de representação do real que se dá através de imagens mentais, pois o passado enquanto tal não volta” [FÉLIX, 2002, P.23]. Durante muito tempo, as memórias tiveram como principal suporte a linguagem escrita ou oral como forma de preservação das histórias. Contudo, elas podem ser evocadas e (re)constituídas por outros meios, ou seja, através de sentidos que não somente o oral ou visual,

A evocação/lembrança dessas imagens mentais se dá através de diferentes suportes de memória que podem ser [...] de natureza perceptiva e sensorial, quando desencadeada por idéias/associações, e de natureza do universo da ‘memória dos sentidos’, sons, ruídos e cheiros que compõem o rico e diversificado universo denominado de bens ou patrimônios imateriais [OP.CIT., 2002, P.23].

Considerando a referida autora, as memórias dos sentidos foram trabalhadas nesta pesquisa com o objetivo de conhecer os gostos, as cores, as sensações, cheiros, sons e olhares sobre a infância que ficaram marcadas na percepção dessas acadêmicas, em que procurei discursar sobre as principais experiências estéticas cotidianas e por elas vividas e recordadas, entrelaçando-as com a arte contemporânea.

A Memória na Arte Contemporânea

A questão da memória e das histórias de vida também vem sendo amplamente trabalhada dentro das poéticas visuais, ou seja, no campo das artes. Muitos artistas lançam mão de sua intimidade, de suas histórias e biografias, como referência estética ou conceitual para suas produções na tentativa de resgatar e compreender, muitas vezes, suas identidades ou trajetórias.

O que as acadêmicas compreendiam por arte contemporânea? Seria possível trabalhar a arte atual através das memórias de infância de cada uma? Que contribuições isso traria para sua formação? Nesse viés, a arte contemporânea e o termo contemporâneo são usualmente pensados “para a arte que ainda não originou opiniões assentadas” [THISTLEWOOD, 2005, P.115] provocando desconforto sobre suas possíveis tendências e manifestações, já que praticamente tudo é possível.

No decurso de nossos encontros, percebi que a maioria das acadêmicas não possuía nenhum conhecimento sobre arte contemporânea e o que sabiam com relação à arte se resumia em identificar alguns artistas e obras de períodos bem específicos da História da Arte. Pensando nisso, introduzi algumas abordagens da arte atual e comecei com temas que todas pudessem se identificar, ou seja, as suas histórias e memórias. Sabemos que trabalhar arte contemporânea no contexto escolar ainda é um desafio, geralmente por falta de conhecimento, acesso às produções ou receio dos professores:

Pelo que pudemos observar, a seleção das obras e dos artistas a serem trabalhadas em sala de aula geralmente recai sobe os mestres do Renascimento, e , de um salto, pula para o final do século XIX quando são reiniciados os estudos com o movimento do Impressionismo, as vanguardas históricas e a Semana de 22. Já a arte contemporânea, raramente marca presença no currículo escolar [FERREIRA, 2001, P.183].

Assim, sempre procurei levar muitas imagens de trabalhos dos artistas relacionados às propostas e aos diálogos das aulas. Esses trabalhos, em sua maioria, eram caracterizados por sua contemporaneidade devido à abordagem, aos materiais e as linguagens utilizadas por artistas em geral, “em substituição ao óleo, ao bronze e a outros materiais artísticos tradicionais, usam-se lama, areia, plástico, papelão, néon, banha, cera, tule, palha, sementes, fogo, água [...] como meio de expressão artística” [OP.CIT., 2001, P.183]. E também quando um objeto qualquer se encontra inserido em um espaço legitimador, como museus e galerias, confere a ele o caráter de obra de arte [CAUQUELIN, 2005]. É compreensível que até certo ponto as produções contemporâneas em arte nos afetem de alguma forma, nos deixem inquietos, inseguros, seja como público ou como professores:

A inquietude provoca, e é provocada, pela ação investigativa, pelo mergulho na experiência, que se torna vital na arte contemporânea. Nos meandros da formação de educadores, poderiam os artistas contemporâneos mover o pensamento pedagógico para arriscá-lo-se, o mover-se, ao atravessar-se pelos fluxos da própria experiência com os aprendizes? [MARTINS, 2006, P.233].

Penso que essa é uma das maiores contribuições da arte atual, pois enquanto educadores, ela nos perturba e nos instiga a descobrir outras experiências, outras formas de pensar e discutir a arte na sala de aula, e essa foi uma das minhas preocupações na formação das pedagogas em questão.

Seguindo as reflexões a partir das memórias sobre cheiros, gostos, sabores e cores da infância, propus o enlace das temáticas apresentadas em aula com algumas produções recentes, pois segundo Canton [2001, P.43] “a memória, física e psíquica, garantia maior e nossa condição humana, torna-se também uma das principais molduras da criação artística contemporânea”. Dessa forma, as estudantes tomaram conhecimento de artistas que pesquisam objetos pessoais e familiares, materiais alternativos e do cotidiano, que se interessam pelo cheiro, pelo toque, pelo gosto, por colecionar e se apropriar de objetos antigos e brinquedos nas aulas de artes. Ou seja, em cada aula, em cada tema relacionado à infância, era tecida com artistas que se utilizava de tal abordagem:

poderíamos da mesma forma, surpeendermo-nos com o fato de que esta discussão contemporânea não tenha evocado, justo, os aspectos mais contemporâneos das pesquisas plásticas atuais, e em especial do trabalho sobre estes materiais, menos palpáveis que recentemente, porém onipresentes nas obras dos jovens artistas, tais como o tempo, o movimento, o espaço, a memória, o vestígio,as sínteses por computadores, etc. [JIMENEZ, 2003, P.61]

Com referência à arte contemporânea, o que mais estranhou as acadêmicas foram os materiais e recursos inusitados utilizados pelos artistas que o conteúdo ou proposta investigada pelo mesmo. Neste trabalho, menciono alguns dos artistas apresentados para as turmas: Christian Bolstanski [2000], Nina Moraes [2004], Rosângela Rennó [1999], Sandra Cinto [2004], Farnese de Andrade [1983] e Lia Menna Barreto [2000] dentre outros mais.

Portanto, a memória como referência, conceito ou matéria da arte é pensada nesta pesquisa principalmente pela possibilidade em se discutir e refletir sobre a efemeridade e a importância de nossas vivências, de nossas histórias, de nossas relações afetivas, sociais, de nossa passagem pelo mundo, assim como pela fugacidade e singularidade da mesma. Sustentados por esses e outros trabalhos contemporâneos relato a seguir, como foi o processo desenvolvido com as acadêmicas.

Horizontes a Descortinar: revisitando os processos de criação das pedagogas

Ao depararmos com a produção contemporânea, que em muitas situações se apropria de elementos, objetos e temas tão próximos ou presentes de nosso cotidiano, é ir de encontro ao conceito comumente construído pelas pessoas em geral sobre arte: algo de difícil produção, um tanto distante da realidade, no máximo a representação idealizada da realidade, a imagem do artista como gênio, excêntrico, anti-social, etc.

Aunque los artistas estaban catalogados como excéntricos, el concepto más antiguo de la creatividad como talento rayano en la locura fue entonces cuestionado por la idea nueva de que los artistas eran en realidad personas mentalmente sanas obligadas a viven en un mundo de locura [EFLAND, FREEDMAN & STUHR, 2003, PP.43-44].

Discursos que apresentam, em alguns casos, uma educação em arte fragmentada ou inexistente, como pude constatar nos relatos dessas acadêmicas quanto as suas vivências e experiências com a arte durante a infância no contexto escolar. Deste modo, iniciei uma sensibilização com as turmas no sentido de que pudessem rever seus julgamentos apressados sobre as obras contemporâneas e procurar entender como esses trabalhos se configuram da forma apresentada: efêmeras, com materiais perecíveis ou extremamente próximos da vida cotidiana [lembrar das apropriações de Duchamp e Joseph Kosuth, por exemplo]. Para isso, lemos textos, imagens e vivenciamos na prática algumas linguagens atuais, tais como instalações, intervenções, fotografia e objeto-arte, linguagem na qual me deterei no presente artigo.

Para trabalhar com as turmas o entendimento de objeto-arte [caracterizado por ser híbrido, conter mais de uma linguagem], levei imagens e conceitos, porém não ficou compreensível para a maioria “a limitação desse processo de transfiguração do objeto está em que ele se funda menos nas qualidades formais do objeto que na sua significação, nas suas relações de uso e hábito cotidianos” [GULLAR, 1960, P.16]. Segundo elas, a linguagem tornou-se entendível após a realização de um trabalho prático nas aulas.

Portanto, retomei uma dinâmica que havia desenvolvido em nosso primeiro dia de aula, quando levei uma caixinha contendo palavras que deveriam se referir às memórias e histórias de cada uma delas. Costumo utilizar essa dinâmica como forma de conhecer aspectos singulares das vidas dos alunos e também participo do momento que considero muito enriquecedor para nos apresentarmos. Cada acadêmica sorteou da caixa uma palavra, que deveria suscitar relatos de momentos ou histórias da infância relacionada com o significado da mesma. Estas faziam referência a uma história, um medo, uma tristeza, uma alegria, uma pessoa, uma comida, um cheiro, um lugar, um brinquedo, sonhos, etc. Assim, uma aluna escreveu sobre a impressão que teve desta dinâmica,

Percebemos que as aulas trariam o ‘algo a mais’, um acréscimo daquilo esperado, quando já na primeira aula, com o propósito de conhecer a turma, a professora realizou uma estratégia bastante interessante. Esta ‘dinâmica’ constava de uma caixinha onde dela eram retirados papeizinhos contendo palavras como possibilidades, sonho, tristeza, lugar, brinquedo, história, entre outras. Passando a caixa de mão em mão, cada aluna deveria expressar o que a palavra escolhida representava, o que pensava a respeito ou ao que ela nos remetia [HEL][2].

Após o sorteio, as alunas deveriam escrever uma história que fizesse relação a algo do seu passado, e posteriormente, essas memórias foram compartilhadas entre o grupo que se identificou com muitas situações comentadas e também vividas na infância e este foi um momento importante. Depois que apresentei algumas imagens de obras e artistas, a sugestão era a de trabalharmos com a Caixa das Lembranças, construídas no decorrer dos encontros e a partir de um enfoque, como por exemplo: na primeira semana, elas trouxeram um cheiro da infância para a sala de aula, na outra uma cor, na seguinte um gosto, e assim por diante.

Tínhamos duas horas e meia por semana para nos reunirmos na aula e dar prosseguimento ao trabalho. Muitas caixinhas foram construídas cada qual do seu modo, forma e conteúdo: algumas totalmente fechadas com as memórias em seu interior e sem acesso, caixas com comidas da infância, com brinquedos e cores, outras que remetiam ao espaço da rua, ao espaço do quarto, da casa familiar, aos cheiros de plantas, da terra, de perfumes e essências, dentre muitos outros.

Nesse percurso refletimos em grupo o que vem a ser processo de criação em arte, pois o mesmo demanda tempo, organização do pensamento, pesquisa de materiais, continuidade, avanços e retrocessos. Uma das concepções de criação significa tudo o que produzimos e criamos [e o entendimento de criação não se restringe apenas ao campo das artes] quando formamos algo novo e assim, trabalhamos com a capacidade de fazer relações, compreender, ordenar, significar [DE MASI, 2003]. Criar envolve estruturar um pensamento, uma imagem mental e comunicá-la através de imagens concretas, reais ou através de pensamentos e de idéias,

El cérebro no se limita a ser un órgano capaz de conservar o reproducir nuestras pasadas experiencias, es también un órgano combinador, creador, capaz de reelaborar y crear con elementos de experiencias pasadas nuevas normas y planteamientos [VYGOTSKY, 1982, P.09].

Segundo o mesmo autor, o “acúmulo” de experiências e conhecimentos que construímos ao longo de nossas trajetórias, contribui significativamente no processo de criação, já que possuímos mais informações e referências quando formamos algo novo ou diferenciado. Nesse sentido, procurei apresentar às acadêmicas um paralelo entre o processo de criação em arte com o processo de formação e construção das subjetividades do professor.

Mas como foi o processo de vivenciar as memórias de infância na arte?A seguir, transcrevo uma passagem de um texto elaborado por uma aluna sobre suas percepções do trabalho realizado nas aulas de Artes Visuais:

De todas as atividades vivenciadas nas aulas de Artes, a que mais me marcou foi a que denominei “A Caixa da Memória”. Marcou-me por ter despertado mais emoções e, talvez por isso, tenha causado mais inquietações e reflexões. Por meio desta atividade recordei muitos momentos da minha infância. [...] Ao relembrar de minha infância estou, indiretamente, resgatando e observando valores e conceitos instituídos na sociedade na qual cresci. Estou percebendo imaginários e representações presentes naquela época e, assim, posso entender melhor minhas representações e escolhas hoje. Este exercício de (re)lembrar minha infância: as brincadeiras, os brinquedos, os cheiros, as cores, os sabores,tudo isso, foi para mim um momento muito rico. O processo de construção deste espaço me fez viajar pelo passado. Reviver emoções. Através dele pude, além de me (re)conhecer, fazer uma comparação entre o primeiro semestre da minha formação acadêmica e um dos semestres finais (o sexto). A “Caixa da Memória” também me faz refletir sobre a importância de conhecer o(a) aluno(a) que está presente em minha sala de aula. Onde ele vive? O que ele faz? O que ele gosta de fazer?Qual sua representação de mundo, de escola, de família, de brincar? Conhecer a criança que estamos trabalhando é fundamental para saber como poderemos mediar sua aprendizagem [IVE].

Fig.01 – Caixinha de IVE

Neste depoimento observo a relevância conferida por IVE sobre o trabalho realizado em aula, e sobre algumas passagens de suas memórias e que possibilidades pedagógicas pensou no contexto escolar. A memória constitui-se numa oportunidade para reconhecer valores, compreender os significados que conferimos em nossos contextos, na forma como somos e nos constituímos enquanto educadores, ou seja, “metodologias se criam a partir de paixões e reflexões, concepções que vão se alicerçando no fazer e pensar o feito, o não feito e o possível de ser feito. Não existe caminho, existem múltiplos percursos que se tornam singulares” [RICHTER, 2003, p.10]. Na caixa criada e adornada com serragem por IVE, trouxe imagens das vivências no campo, das brincadeiras como as “cinco-marias”, bolinhas de gude, bonecos de barro além de fotografias de quando criança.

Foram diversificadas as soluções usadas e resgatadas pelas acadêmicas na confecção do trabalho, a fim de que pudessem experimentar diferentes momentos, materiais, linguagens e histórias na elaboração de um trabalho artístico, propiciando ao professor a construção de imagens, a formação do olhar diante de objetos simples e a aproximação com a linguagem visual, que neste caso, envolveram diferentes sentidos e significados,

O desenho perdido, a brincadeira esquecida, o movimento contido, as cantigas silenciadas. Sensibilidade travada, olhar embotado no mundo de certezas. Assim o ser da poesia esconde-se no adulto-educador. Reprimido, comprimido, banido da sua vida pessoal e profissional. Como nos tempos e espaços de formação, poderá ser tocado o universo em que se esconde o ser da poesia dos educadores? [OSTETTO, 2006, PP.29].

É primordial que o professor vivencie materiais e linguagens artísticas e assim tenha conhecimento de suas histórias e especificidades, formando um olhar crítico e questionador sobre aquilo que será trabalhado em sala de aula, de se permitir experimentar para que possa, num segundo momento, saber como conduzir e trabalhar com as crianças também. Seguindo com os depoimentos e trabalhos das acadêmicas da Pedagogia, podemos acompanhar as reflexões de HEL sobre o que produziu:

Ao longo da disciplina o resgate da nossa memória perpassou por todos nossos encontros. As brincadeiras que mais gostávamos, as lembranças mais efêmeras assim como as mais profundas, os cheiros que nos remetem à lembrança da nossa infância. Colocaram a disposição da arte. A caixinha de lembranças, confeccionada nos últimos encontros, registra a culminância do resgate de nossa memória, com a história da arte estudada. Para tanto, utilizando-nos de diferentes linguagens da arte, para que tivéssemos sucesso, trilhou-se ao longo do caminho, estratégias singulares a esta realização. E a caixa das lembranças, em que parada do caminho estamos? tentei constituir do barro, minhas bonecas, fiéis companheiras daquele tempos: as Barbies. Ocupando-se de outras linguagens, desta vez nossas lembranças deveriam ser retratadas no tecido. Para tal, criatividade a postos, agulha e tecido na mão. Busquei retratar uma outra paixão, alguns personagens dos livros de histórias. E os cheiros da infância, teriam espaço nas aulas de arte? Claro que sim! Cada colega deveria buscar o cheiro que melhor representasse sua infância e automaticamente veio em minha mente o cheirinho do leito com Nescau, inconfundível na mamadeira trazida pela mãe! [HEL].

Fig.02 – Caixinha de HEL

Dos trabalhos realizados pelas acadêmicas, poderia se fazer uma sutil relação entre aqueles desenvolvidos Nina Moraes e Bina Monteiro, cuja temática pautada nas memórias de infância e na memória social, respectivamente, são evidenciadas em objetos e pinturas-colagens, na tentativa de “conservá-la” ou presentificá-la nestas produções.

Fig.03. Bina Monteiro. Bela artista, 2006.

Fig.04. Nina Moraes. Infância, 1990.

Na poética da artista Nina Moraes, costuma se apropriar de compotas, vidros e potes, objetos banais de nosso cotidiano que são utilizados para reter pequenos objetos de nossas memórias. O vidro tem o caráter de transparecer seu interior, mas que faz com que o conteúdo contido neste se torne intocável e muitas vezes, “os recipientes como suporte da obra da artista são abstraídos da simples função de guarda de coisas e se tornam o lugar de um acervo pessoal de memórias e sonhos nem sempre tangíveis” [FREIRE, 2008]. Em seu interior, pequenos objetos das mais diferentes texturas, cores e natureza, são cuidadosamente retidos em compotas, conferindo a impressão de conservar lembranças que possam ser “saboreadas” pelo olhar.

Enquanto que no trabalho de Bia Medeiros, agrega elementos e objetos que se referem às memórias pessoais da artista, mas também as coletivas, quando traz referências da cultura regional do Rio Grande do Sul, Hinos, imagens religiosas, personagens literários e reais, [GOMES, 2005].

A experiência aqui relatada, embora em pequenos recortes, foi uma tentativa de trabalhar a arte contemporânea imbuída de significados e sentidos conferidos e construídos por estas acadêmicas articuladas às suas memórias. Penso que se constituiu num instigante desafio o encontro e o trabalho com aspectos e referências da arte atual, mas que outras formas e proposições podem ser criadas e pensadas pelo professor em sua prática pedagógica, trazendo referenciais da arte em consonância com as biografias dos próprios alunos.

No final do trabalho, as turmas decidiram realizar uma exposição coletiva no hall do Centro de Educação, compartilhando e divulgando o trabalho criado por elas.

Algumas Considerações           

Procuro retomar aqui as questões que motivaram o desenvolvimento deste trabalho, refletindo sobre a memória e a arte na formação inicial das pedagogas: que relações podem ser feitas entre arte e memória? Como as acadêmicas visualizaram a arte contemporânea e o trabalho com suas memórias? Que possibilidades educativas podem ser pensadas a partir das vivências com arte e memória no contexto escolar?

Enquanto educadora, as relações que faço são sobre o universo cheio de possibilidades e significados que foram construídas e apresentadas às acadêmicas, quando tiveram a oportunidade de expor suas subjetividades e a liberdade em comunicar pensamentos e memórias singulares sobre suas vidas, entrecruzadas com o grupo. No campo da arte, muitos outros discursos e temáticas são bem-vindos no ensino de arte e isso implica na formação e postura dos professores sobre o que gostaria de investigar na sala de aula, na medida em que os alunos também possam trazer sinais e referências do que conhecem e querem saber sobre arte.

As acadêmicas visualizaram a arte contemporânea com algumas dificuldades e dúvidas sobre a legitimidade da mesma como arte e sua apresentação para a educação infantil e séries iniciais. Questionaram se as crianças “entenderiam” as abordagens da arte atual e como fariam para mostrar e discutir trabalhos contemporâneos. Na verdade, revelaram as inseguranças iniciais acerca do tema, já que não estavam familiarizadas com tais produções, refletindo nas dúvidas sobre futuros trabalhos com as crianças, mesmo sabendo da capacidade das mesmas em interagir e fazer as suas próprias leituras sobre as obras atuais.

Quanto às possibilidades educativas da memória ao se discutir a arte contemporânea, as acadêmicas puderam fomentar imagens mentais de suas histórias, além de estimular a imaginação e a pesquisa sobre as lembranças olfativas, gustativas, auditivas, espaciais, sinestésicas, visuais. Possibilitou, ainda, navegar por caminhos permeados de subjetividades, de carga afetiva e emocional, buscando reconstruir as caixinhas de forma singular e poética contendo suas lembranças, sem descuidar dos conteúdos e questionamentos acerca da arte e seu ensino. Além disso, houve o diálogo e a reflexão entre o que elas produziram confrontadas e articuladas aos trabalhos dos artistas e linguagens apresentados, mas a experiência pode ser desenvolvida de outras formas, com outros enfoques e objetivos.

Assim sendo, as principais proposições fomentadas por esta pesquisa foram a de contribuir na formação inicial das pedagogas no sentido de oportunizar a interação de histórias e memórias de infância, suas dúvidas e receios quanto à arte e de como trabalhá-la na educação infantil, levando-se em consideração o valor e a importância da mesma na escola.

Compreender o objetivo e a função da arte para a vida das acadêmicas, ou melhor, dessas professoras em formação, permitiu que outros sentidos e concepções sobre arte fossem apresentados no intuito de torná-la cada vez mais presente e reconhecida como área do conhecimento humano, ao contrário da concepção que enfoca o ensino de arte como mera execução de técnicas e instrumentos sem propósitos educativos. Foi compreendido, também, que novos olhares sobre a arte podem e devem ser trilhados se enquanto profissional da educação, além de permitir a aventura da descoberta, dos processos percorridos pelo professor na sua forma de trabalhar.

Nesse percurso, o professor deveria permitir-se a experiência da procura e do encontro, da curiosidade e da vivência com arte. Gostaria que essa breve experiência aqui relatada contribuísse para repensarmos sobre as resistências ou dificuldades inicialmente enfrentadas na prática educativa, mas também das possibilidades de realização, acontecimentos e ações encontradas nesse processo. Posso afirmar que diante desses e outros depoimentos revelados pelas acadêmicas, a arte foi pensada e trabalhada de forma séria e significativa pelas mesmas, contribuindo na formação de um olhar mais sensível, aberto e crítico enquanto pessoas e profissionais, incluindo a mim, que tive a oportunidade de compartilhar e aprender com elas.

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VIGOSKII, L.S. La imaginacion y el arte em la infancia - Ensayo psicológico. Madrid: Akal, 1982.

Notas:

[1] Professora Substituta da Disciplina de Metodologia do Ensino de Artes Visuais para os Cursos da Pedagogia, Educação Especial e Licenciatura em Artes Visuais da Universidade Federal de Santa Maria/UFSM. Bacharel e Licenciada em Artes Visuais, Mestre em Educação - Linha Educação e Artes/2008.

[2] Os nomes utilizados no presente texto são fictícios, mas correspondem aos depoimentos e reflexões deixados pelas alunas sobre a disciplina trabalhada no semestre e em especial, sobre o trabalho com suas memórias.

 

Revista Digital Art& - ISSN 1806-2962 - Ano VI - Número 09 - Abril de 2008 - Webmaster - Todos os Direitos Reservados

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