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Roland Barthes e o Império dos Signos
Autor:
Rodrigo da Costa Araújo - rodricoara@uol.com.br

O texto não “comenta” as imagens. As imagens não “ilustram” o texto: cada uma foi, para mim, somente a origem de uma espécie de vacilação visual, análoga, talvez, àquela perda de sentido que o Zen chama de satori; texto e imagem, em seus entrelaçamentos, querem garantir a circulação, a troca destes significantes: o corpo, o rosto, a escrita, e neles ler o recuo dos signos.

Roland Barthes

Com esta epígrafe Roland Barthes (1915-1980) inicia o livro O Império dos signos lançado em língua portuguesa no mês passado pela Editora Martins Fontes e traduzido pela Profª. e ex-aluna dele - Leila Perrone-Moisés (USP). Neste livro, imaginado a partir de uma viagem de quinze dias ao Japão em 1970, Barthes cria um sistema de signos ao qual, a partir de um olhar semiológico, chama “Japão” e o descreve (através de lexias) considerando algumas manifestações típicas daquele país.

Audacioso e assumindo o viés transgressor, o livro caminha entre a ficção, crônica, realidade ficcionalizada ou mesmo um ensaio que debate e aventura-se, semiologicamente, para atualizar não somente a escritura, mas toda a cultura japonesa em 26 textos independentes, que lidos na ordem dada no livro assumem uma visão totalizadora. “Transformando o texto em fragmentos, ou “lexias”, como os chama, ele identifica os códigos em que se baseiam”. (CULLER, 1988, p.78)

Nesse mundo embaralhado entre texto, imagem e lexias é possível compreender o Japão como um texto de reticências e de ambigüidades. Este texto/objeto silencioso fabricado por Barthes (e também pelo leitor) reveste-se sempre de palavras, independentemente do constante trabalho de anulação do sentido, processo tipicamente semiológico. “O signo é uma fratura que jamais se abre senão sobre o rosto de outro signo” (BARTHES, 2007, p.72).  Nessa leitura, entendida muitas vezes como retórica do silêncio “sua arte consiste em fazer da linguagem, veículo de saber e de opinião geralmente rápido, um lugar de incerteza e de interrogação. Ela sugere que o mundo significa, mas sem dizer o quê” [GENETTE, 1972, p.195].

O livro descreve gestos, paisagens, situações ou acontecimentos e em vez de impor-lhes significações certas e fixas sugere ou restitui, por meio de uma técnica muito sutil de evasão semântica, o sentido trêmulo, ambíguo, indefinido que constitui a sua verdade. E é assim que Barthes desconstrói a leitura única, fixa e carregada de preconceitos e assume paradigmas que propõem a liberdade da pressão do sentido social (que é um sentido nomeado, portanto um sentido morto), a incerteza dos signos, o recuo transgressor.

O Japão, é pois, lido como “texte de plaisir”: o que o autor mesmo, aliás, parece autorizar, como uma espécie de Mitologias, um espaço social e lúdico - um sistema simbólico. Das 26 lexias, a idéia do vazio (o que se pode considerar o sema mestre do livro todo) surge, semiologicamente, em primeiro lugar num contexto lingüístico, atribuída tanto ao idioma japonês em si, como aos ideogramas em que, no sentido mais rigoroso, se concretiza. É exatamente a “diluição do sujeito” na retórica japonesa, a maneira como avança “uma leve vertigem”, o que constitui a escritura escritura é segundo Leila Perrone-Moisés [1985, p. 56] “poesia, no sentido moderno do termo: aquele discurso que acha sua justificação na própria formulação, e não na representação de algo prévio e exterior; aquela forma na qual, de repente, o que se diz passa a ser verdade; aquela visão do mundo que não vem do mundo, como reflexo, mas que se projeta sobre o mundo, transformando sua percepção; aquele discurso que não exprime um sujeito, mas o coloca em processo”.

Como em Le plaisir du texte, o Japão parece, em estado de escritura: “essa situação é exatamente aquela em que se opera certo abalo da pessoa, uma revirada das antigas leituras, uma sacudida do sentido, dilacerado, extenuado até o seu vazio insubstituível, sem que o objeto cesse jamais de ser significante, desejável. A escritura é, em suma a sua maneira, um sartori (o acontecimento do Zen) é um abalo sísmico mais ou menos forte, o sujeito: ele opera um vazio de fala” [BARTHES, 2007, p.10]. “O prazer do texto é semelhante a esse instante insustentável, impossível, puramente romanesco, que o libertino degusta ao termo de uma maquinação ousada, mandando cortar a corda que o suspende, no momento em que goza” [BARTHES, 1996, p. 12].

A partir desses “deslocamentos”, “recuos” e através de uma série de detalhes dos costumes japoneses, Barthes constrói, em lexias, o sistema que constitui o seu “Japão”. Realiza uma leitura semiológica da disposição da comida e de como ela é descentralizada na sua arrumação à mesa, sem esquecer o ato de comer como referência ao próprio alimento. O uso do hashi, nesse contexto, sugere esse mesmo respeito, pois ao contrário do Ocidente, em que utiliza garfos e facas para destruir e fatiar o alimento, os orientais utilizam, delicadamente, um par de palitos para tal gesto. Assim, também observa o cuidado e elegância dos pratos japoneses que primam pela beleza: “Inteiramente visual (pesada, arrumada, manejada pela visão e até mesmo por uma visão de pintor, de grafista), a comida diz, assim, que ela não é profunda: a substância comestível é desprovida de âmago precioso, de força oculta, de segredo vital: nenhum prato japonês é provido de um centro [...]; tudo ali é ornamento de outro ornamento” [BATHES, 2007, p. 32].

Na rubrica “centro da cidade, centro vazio” (p.43) Barthes compara as cidades centralizadas do Ocidente com os centros vazios do Oriente. Ou seja, a centro-orientação das nossas cidades que, normalmente crescem do centro para os subúrbios em contraste com as cidades japonesas que não foram constituídas dessa forma e, por isso não possuem este lugar de concentração tão bem demarcado nos grandes centros urbanos. Esse olhar atento sobre os signos, é antes de mais e não pretende ser senão, segundo CALVET (p.139) “excitação do olhar crítico”. Este mundo dos signos que Barthes nos propõe portanto olhar “como produção cultural (toda a sua abordagem decorre desta proposta) aparece talvez mais claramente como tal quando a abordamos com um outro sistema, um outro mundo de signos”.

Para Culler (1988) o livro L’empire des signes não está ligado a um objeto crítico, analítico e sim a uma vida cotidiana que através de objetos e práticas que provocariam uma “escrita eufórica”. O Japão para Barthes, “oferece o exemplo de uma civilização onde a articulação dos signos é extremamente delicada, desenvolvida, onde nada é deixado ao não-signo; mas este nível semântico, que se traduz por uma extraordinária delicadeza de tratamento do significante, não quer dizer nada: de algum modo não diz nada, não remete a qualquer significado, e sobretudo para nenhum significado último, exprimindo, assim, ao meu ver, a atopia de um mundo estritamente semântico e estritamente ateu ao mesmo tempo” [1995. p.96-97].

A atividade semiológica não é, pois, exclusiva nem mesmo essencialmente de ordem do saber. Os signos nunca são para Barthes objetos neutros de um conhecimento desinteressado, eles contrariamente, misturam-se com outros discursos para compor a leitura da cultura como um texto, cujas entrelinhas podem ser compreendidas através das marcas cotidianas para possibilitarem a semiose do contexto como um todo. O volume contém, ainda, fotografias e anotações originais do semiólogo estruturalista que percebe o mundo como linguagem e ensina ao leitor a ver como os signos que nos rodeiam (porque ler para Barthes é entrar em conotação), dissociando-os de seu significado, fazendo-nos descobrir novos horizontes de sentido e observando com novos olhos a cultura do Japão, em cujas inquietações ocorrem, a cada instante, a aventura infinitesimal do signo.

Nessa leitura de trocas e “quebras de paradigmas”, em constantes significações aos signos, Barthes nos faz acreditar que a semiocracia ocidental se baseia no imperialismo do sentido. Dessa maneira (e sedutoramente) o anônimo que se constrói sobre o vazio reveste-se nesse ensaio de uma “estratégica da forma”, permitindo talvez uma abordagem menos redutora da alteridade. Enfim, o livro caminha transgressoramente no sentido contrário de tudo que apazigua os signos, já que sua leitura inquieta qualquer leitor.

Para Barthes o Japão faz uso dos signos não para designar um sentido, mas para causar uma certa “decepção”, isto é, ao mesmo tempo propô-lo e suspendê-lo. Nessa leitura, entre o sentido posto e o sentido suspenso, o movimento transitivo da mensagem verbal se detém e se reabsorve num “puro espetáculo”. Essa dialética entre o óbvio e o obtuso seria a estratégia semiológica cadenciada pelo inesperado, para uma adesão, uma aproximação muito profunda à realidade das coisas. O paradoxo e a fuga incessante de tal desvio não escapariam ao autor de Mitologias, que lhes consagra a última página do livro: o mitólogo quer “proteger o real” contra a “evaporação” de que é ameaçado pela palavra alienadora do mito, mas ele receia ter contribuído para fazê-lo evaporar-se.

O Japão, assim, entendido como mundo trapaceado torna-se ao mesmo tempo vertiginoso e manipulável, pois o homem (e também e leitor) encontra até mesmo em seu desvario um princípio de coerência. Cada um, ao seu bel prazer, nesse jogo semiológico, deve construir um recurso para entender essa trama. Ao ler este livro segundo MALLAC (1977) o leitor terá a sensação de manusear um álbum de viagem, e “ao terminar entretanto este passeio exótico, não será ele coagido a avaliar e mesmo a enfrentar [...] a experiência do satori ( a perda de sentido preconizada pelo Zen?)”. De qualquer forma o livro, segundo o estudioso desencadeia no leitor um momento de satori. Com efeito a própria metáfora do vazio ( da anulação do centro) suscitam um choque inesperado. Ao terminar suas indagações Barthes declara: “Império dos signos?” Sim, desde que se queira dizer que esses signos são vazios, e que o ritual é sem deus” [BARTHES, 2007, p.146].

O êxtase, amoroso ou místico, na captura dos significantes que compõem retratos à deriva do Japão seria a dialética mesma entre lembranças e esquecimentos. A existência desse Japão só seria possível na fuga, no vazio da linguagem. O leitor que se conhece, e entende esse jogo, é o leitor que se procura e não se encontra e que se realiza, justamente, nessa incessante busca. Essa é a lição semiológica do livro L’empire des signes (ou “gozo” dos significantes?; Ou prazer dos significantes?; Ou mesmo O Prazer do texto?). Essa atitude simboliza bem o que poderíamos chamar de vertigem, ou melhor, o império dos significantes.

Essa leitura é, pois, para o semiólogo (o crítico) uma tentação permanente, uma vocação incessante adiada e que se realiza num tempo dilatado. Ela projeta um Japão “escrito”, isto é, um processo “do constante” ato semiótico, que transforma o sentido dos signos e devolve a linguagem a sua parte de silêncio.

Referências Bibliográficas

BARTHES, R. Roland Barthes por Roland Barthes. Lisboa. Edições 70, 1975.

_________. O Prazer do Texto. São Paulo. Perspectiva, 1996.

_________. L’empire des signes. Paris. Seuil, 2005.

_________. O Império dos Signos. Trad. Leila Perrone-Móises. São Paulo. Martins Fontes, 2007.

_________. O Grão da voz. Rio de Janeiro. Francisco Alves, 1995.

CALVET, J.L. Roland Barthes. Um olhar político sobre o signo. Lisboa. Vega. (s/d)

CULLER, J. As Idéias de Barthes. São Paulo. Cultrix, 1988.

GENETTE, G. O Reverso dos signos. In: Figuras. São Paulo. Perspectiva, 1972.

MALLAC, G. e EBERBACH, M. Barthes. São Paulo. Melhoramentos. Universidade de São Paulo, 1977.

PERRONE-MOÍSES, L. Barthes: o saber com sabor. São Paulo: Brasiliense, 1985.

FICHA TÉCNICA DO LIVRO

ISBN :  8560156410
ISBN-13:  9788560156412
Livro em português
Brochura
/ 1ª Edição - 2007 - 168 pág.

 

Revista Digital Art& - ISSN 1806-2962 - Ano VI - Número 09 - Abril de 2008 - Webmaster - Todos os Direitos Reservados

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