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O Biológico e o Cultural na Música
Autora: Silvia Cordeiro Nassif Schroeder- scnassif@terra.com.br

Resumo: Este texto propõe uma discussão sobre o desenvolvimento musical. Ancorado na psicologia histórico-cultural, procura superar a clássica dicotomização entre o que é inato (ou biológico) e adquirido (ou cultural), que divide pensadores em diversas áreas do conhecimento. Partindo de uma descrição do processo de desenvolvimento psíquico segundo a perspectiva teórica assumida, vai delineando, por aproximações, alguns aspectos relativos ao desenvolvimento musical. O principal objetivo dessa discussão é possibilitar uma revisão em concepções educacionais da música, sobretudo pela necessária relativização do conceito de musicalidade.

Palavras-chave: Musicalidade; Musicalização; Desenvolvimento Musical; Educação Musical.

Abstract: This text considers a discussion about musical development. Anchored in the historical-cultural psychology, it looks to surpass the classic division between what is innate (or biological) and what is acquired (or cultural), that divides thinkers in diverse areas of knowledge. Starting from a description of the process of psychic development according to the theoretical perspective assumed, it delineates, by approaching, some relative aspects of musical development. The main objective of this discussion is to allow a revision in educational conceptions of music, especially because of the necessary relativization of the musicality concept.

Key-words: Musicality; Musicalization; Musical Development; Music Education.

Introdução

Até há bem pouco tempo, as teses inatistas para a musicalidade eram absolutamente predominantes, não apenas para o senso comum, mas também entre as pessoas ligadas diretamente ao campo musical. Acreditava-se que, ou nascia-se musical, ou de nada adiantaria qualquer esforço nesse sentido, pois as determinações genéticas sempre falariam mais alto. Em minha pesquisa de doutorado [Schroeder, 2005], analisei discursos de músicos, críticos e educadores musicais e pude constatar que esse pensamento ainda é muito forte, que a idéia de um talento inato como condição sine qua non para se conseguir alguma realização musical ainda prevalece e é, a todo o momento, reforçada pelas diversas mídias.

Entretanto, pesquisas no campo da música e da educação musical têm demonstrado que a questão é mais complexa do que parece: não apenas o que é inato ou adquirido, natural ou cultural, é muito difícil de ser constatado, pois envolve uma série de fatores, como o próprio conceito de musicalidade também precisa ser revisto e relativizado. Dada a grande diversidade de gêneros e estilos musicais existentes, as diferentes relações que cada indivíduo ou grupo de indivíduos estabelece com a música e as inúmeras situações onde a música de faz presente no cotidiano das pessoas e em diversas profissões, é muito difícil afirmar uma única musicalidade possível. E, nesse sentido, mais difícil ainda é afirmar um determinismo musical biológico. Por outro lado, o aparato biológico que o ser humano herda ao nascer não é absolutamente irrelevante para o seu desenvolvimento como um todo e, de algum modo, deve interferir também no seu desenvolvimento musical. Ficam, então, as questões: afinal o que pode ser inato e adquirido na constituição da musicalidade? É possível separar essas duas dimensões no desenvolvimento musical? Qual o papel (e os limites) da educação nesse processo?

Para tentar refletir sobre essas questões, buscarei subsídios na psicologia histórico-cultural, que tem em Lev S. Vigotski um de seus principais representantes. A compreensão dos fatores naturais e culturais no desenvolvimento psíquico, objetos de estudo nessa teoria, talvez nos ajude a entender um pouco como esses mesmos fatores se comportam especificamente em relação ao desenvolvimento musical.  

Música e desenvolvimento humano

Vigotski vê o ser humano como constituído por duas séries de funções: as naturais (biológicas, também denominadas “inferiores”, são as que temos em comum com os outros animais) e as culturais(denominadas “superiores”, são as funções especificamente humanas), as quais se fundem no curso do desenvolvimento, criando um sistema bastante complexo [PINO, 2005]. Isso ocorre, de acordo com Vigotski [1998a], devido à plasticidade do cérebro humano, que permite uma modelagem pela ação de fatores externos. Assim sendo, as principais estruturas cerebrais (justamente aquelas responsáveis pelas funções culturais) só vão ser formadas a partir da imersão do indivíduo numa determinada cultura. Portanto, dependendo do tipo de cultura, ou seja, das atividades que são praticadas ou não no meio no qual se desenvolve, o indivíduo vai formar determinadas estruturas cerebrais e, conseqüentemente, desenvolver determinadas capacidades e não outras.

Sendo a música uma criação do homem e, portanto, da ordem da cultura, e estando vinculada às funções psíquicas específicas humanas[1], já temos nessas considerações iniciais um primeiro indício que ela não pode ser reduzida a alguma capacidade biológica e, portanto, o desenvolvimento musical não pode depender exclusivamente de fatores maturacionais do organismo.  Assim como o desenvolvimento de outras funções psíquicas, a musicalidade também deve estar ligada ao tipo de atividade musical que se pratica em determinado grupo cultural. Em outras palavras, vivências musicais distintas darão origem a musicalidades diferenciadas e, ausência de práticas musicais, provavelmente resultará em indivíduos não musicais. Mas prossigamos com a teoria vigotskiana.

Enquanto as funções elementares se propagam por meio da herança genética, as superiores emergem a partir das práticas sociais [PINO, 2005]. Isso significa que precisamos da mediação de outras pessoas para que possamos nos desenvolver plenamente (ou nos “humanizarmos”). Sem o contato com outros seres humanos, segundo essa perspectiva, seria impossível a aquisição de qualquer função superior, uma vez que esse tipo de função só se desenvolve a partir da internalização da cultura via relações sociais. Essa internalização da cultura, por sua vez, também não acontece de maneira direta: não incorporamos o mundo tal qual ele se nos apresenta, mas as significações de mundo nos são dadas pelos outros. Isso quer dizer, então, que, além da mediação de outras pessoas, precisamos também da mediação de sistemas simbólicos nesse processo.

Trazendo essas reflexões para o campo da música, reforçamos a idéia de que é impossível pensar em desenvolvimento musical de modo abstrato, apartado de um contexto sócio-cultural. Se a cultura, de cuja internalização depende o desenvolvimento das funções especificamente humanas, é incorporada ao indivíduo através das práticas sociais, também a incorporação da música está totalmente vinculada às mesmas práticas. Dito de outra forma, o contato com outros indivíduos e com as produções musicais existentes é condição para que possamos desenvolver qualquer competência musical. Isso nos leva a pensar na importância da aprendizagem, principal meio de transmissão cultural, para o desenvolvimento musical. Na verdade, para Vigotski [1998b], a aprendizagem é tida como a grande ativadora do desenvolvimento, pois sem ela, ou sem a interferência da cultura mediada por outros indivíduos, o desenvolvimento ficaria restrito aos processos de maturação do organismo. No caso específico da música, isso significa que, mesmo que um indivíduo possua todos os pré-requisitos necessários para o desenvolvimento de uma musicalidade, sem algum tipo de aprendizagem não há como ativar os mecanismos biológicos exigidos para esse fim. A esse respeito, Vigotski [1998b] cita o exemplo equivalente de um filho de surdos-mudos que, se não conviver com falantes, não desenvolverá as funções ligadas à linguagem, mesmo que não tenha nenhum tipo de deficiência orgânica nessa área. Penso que o mesmo possa ser dito em relação à música[2]. Aliás, o modo como nossa sociedade está organizada cria uma situação interessante em relação à musicalidade. Como a grande maioria dos indivíduos não possui um contato intensivo com a linguagem musical erudita[3] e como é essa linguagem que é tomada como conteúdo principal na maioria das escolas de música, cria-se uma situação na qual a musicalidade (tomada equivocadamente de maneira absoluta) é, inevitavelmente, considerada atributo de poucos (aqueles que, muito provavelmente, passaram anteriormente por um processo de aprendizagem).

É importante observar que quando falamos em aprendizagem nesse contexto, não estamos nos referindo apenas à aprendizagem formal, ao ensino praticado em escolas. Os processos de aprendizagem do ser humano começam no momento em que ele nasce, muito antes de qualquer instrução formal. No caso da música, esse processo se inicia aos primeiros contatos do bebê com as cantigas de ninar e continua, por exemplo, nas brincadeiras infantis (a maioria das quais muito mais “musicalizadoras” do que qualquer aula de música). Todos os músicos profissionais por mim analisados em pesquisa citada, sem exceções, tiveram na sua infância um contato muito forte com a música – seja na família ou em outros contextos, como, por exemplo, igrejas – e esse contato esteve, via de regra, vinculado a pessoas com as quais esses músicos tinham laços afetivos significativos[4].

A questão da significação, aliás, é um ponto-chave nessa perspectiva teórica. Afirmar que o desenvolvimento psíquico da criança é um processo de natureza cultural, ou seja, que passa pela incorporação da cultura, equivale a dizer que esse desenvolvimento é o processo pelo qual a criança deverá se apropriar das significações atribuídas pelos homens às coisas, já que “a cultura é o conjunto das obras humanas e o específico dessas obras é a sua significação” [PINO, 2005, p.152, grifos do autor]. E essa apropriação das significações só é possível, conforme já dito, através de mediadores: os outros indivíduos e os sistemas simbólicos, que carregam as significações cristalizadas culturalmente. Os sistemas simbólicos são, então, ao mesmo tempo, mediadores das significações culturais e propulsores do desenvolvimento psíquico. Essa concepção, como se pode notar, é contrária a diversas perspectivas da psicologia e, principalmente, ao senso comum, pois entende que não é o desenvolvimento psíquico que possibilita a inserção do indivíduo na cultura, mas é a própria cultura que, inserida nele, possibilitará seu o desenvolvimento.

Nessa linha de raciocínio, podemos pensar que a música, como um dos sistemas semióticos importantes da cultura, é também mediadora de significações culturais, de modos criados pelo homem para entender o mundo e a si mesmo. Assim sendo, todo processo de musicalização deve passar necessariamente pela apropriação de sentidos produzidos pela música, pertençam eles a uma esfera coletiva ou individual. Não há como musicalizar sem essa apropriação significativa da música, o que equivale a dizer que não é o desenvolvimento da musicalidade que permite compreender a música, mas é o contato intensivo com sistemas musicais que vai permitir o desenvolvimento de musicalidades.

Para aprofundar essa questão, vamos tentar entender um pouco como a criança vai passando de um ser exclusivamente biológico, no nascimento, para um ser cultural. Pino [2005, p.246], baseando-se na psicologia vigotskiana, estabelece três planos nesse processo: “o orgânico, o da sensibilização ao simbólico e o da conversão das funções biológicas em funções simbólicas”. No primeiro plano, temos o bebê recém-nascido, preso aos reflexos instintivos a estímulos externos. Este seria o plano dos sinais, além do qual nenhum outro animal já passou. Logo aos primeiros meses de vida, porém, começa a emergir na criança uma sensibilidade ao mundo simbólico (sensibilidade essa herdada filogeneticamente) e as suas reações vão deixando cada vez mais de ser instintivas e passando a intencionais. Num terceiro momento, então, a criança já estará plenamente inserida no mundo simbólico e todas as suas ações e reações passarão a ser orientadas pelas significações da cultura. Numa tentativa de detectar quando seria o que denomina “momento zero cultural”, Pino [2005] resume esse processo da seguinte maneira: “A característica do tipo de organismo denominado humano é que, num dado momento [...], as várias formas de reatividade tornam-se expressivas, isto é, portadoras de significação” [p.203, grifo do autor]. Para que isso ocorra, nunca é demais lembrar, é absolutamente necessário que a criança esteja inserida num meio sócio-cultural (e os tristes exemplos de crianças que cresceram apartadas de qualquer contato humano nos confirmam essa necessidade).

Observa-se, também aqui, uma concepção de desenvolvimento que de certa forma contradiz algumas perspectivas (como a piagetiana, por exemplo) que consideram o simbólico uma aquisição tardia. De acordo com Pino [2005], o uso de símbolos é muito anterior à compreensão desse uso. Nesse sentido, as crianças pequenas, embora não sejam capazes de entender a abstração simbólica, são “usuárias” do simbólico desde os primeiros meses de vida (precisamente a partir do momento em que seus movimentos corporais começam a ser tentativas de comunicação com as outras pessoas). No caso específico da linguagem verbal, principal sistema semiótico na nossa cultura, o que a criança ouve desde o nascimento é efetivamente uma fala significativa (e não sons isolados, sem sentido), embora só vá adquirir uma competência lingüística na sintaxe após dois ou três anos de vida. Em outras palavras, é a absorção dos sentidos da fala via enunciados concretos proferidos em determinadas situações [Bakhtin, 2002] que permitirá a futura incorporação da sintaxe da língua. Concluímos, portanto, que a ação do meio sócio-cultural sobre a criança é muito forte mesmo quando ela ainda não demonstra estar absorvendo essa influência.

A partir dessa perspectiva, podemos pensar, analogicamente, em como a música se constitui no ser humano no curso de seu desenvolvimento. Inicialmente os estímulos sonoros provocam indistintamente no bebê meros reflexos instintivos. Posteriormente, dada a sua sensibilidade ao simbólico, a criança começa a perceber (embora não tenha consciência disso) que alguns sons provocam determinadas reações nas pessoas que a cercam e, provavelmente, se apropriará desses significados, que lhe são dados pelos outros, para si mesma.

Especificamente em relação a musica, talvez a primeira grande distinção que a criança faça seja entre os sons musicais e os não musicais. Ao ser capaz de fazer essa distinção, ela de certa forma mostra que percebeu que a música é um tipo particular de combinação sonora que produz determinados sentidos. Em outras palavras, o “momento zero cultural musical” talvez seja exatamente aquele em que a criança deixa de reagir à música como um sinal e passa a percebê-la como um símbolo, ou quando suas respostas sensório-motoras se convertem em respostas simbólicas. Dada a importância das outras pessoas nesse processo, vemos o quanto as primeiras relações estabelecidas com a música podem ser determinantes na constituição de uma musicalidade. Uma criança oriunda de um meio no qual alguma linguagem musical, seja ela qual for, tiver uma presença intensa e positiva, terá muito maior chance de se musicalizar (e talvez mais tarde for tomada como “talentosa”) do que outra que cresceu num meio no qual a música não é presença significativa. A musicalidade, nesse sentido, assim como as demais funções culturais, também tem origem em relações sociais, através das significações musicais que nos são dadas pelos outros.

Dizer que a constituição da musicalidade está ligada às práticas sociais musicais, contudo, não deve ser confundido com excluir fatores biológicos como determinantes nesse processo (reafirmando, por exemplo, a velha tese da tábula rasa...). Ao contrário, o que tento demonstrar aqui é a complexidade da questão e a necessidade de imbricação total de uma dimensão (biológica) na outra (cultural) para uma musicalidade satisfatória, de tal modo que, quando isso não ocorre, muitas vezes aparecem as limitações musicais. A esse respeito, Sacks [2007] traz exemplos ilustrativos de casos (reais e fictícios) nos quais, por algum motivo, as dimensões biológica e cultural caminharam paralelas, não se entrelaçaram, muitas vezes se contradisseram, ocasionando um desvio no curso esperado do desenvolvimento e limitando as possibilidades musicais. Num desses casos, Sacks [2007, p.97] conta a história de uma família na qual a mãe e duas filhas eram muito musicais, mas uma terceira filha, embora tivesse tido instrução musical, não apenas tocava sofrivelmente como era incapaz de distinguir uma boa ou má execução. Estranhamente, porém, essa filha “não-musical” era a única que tinha ouvido absoluto, além de dedos extremamente flexíveis e uma leitura impecável à primeira vista no instrumento. Podemos pensar que, nesse caso, as predisposições biológicas de nada serviram, provavelmente aconteceram na contramão de disposições culturais, já que, por alguma razão, a música não conseguiu afetar essa pessoa, cujo desenvolvimento culminou numa musicalidade inútil.

Em outro caso, desta vez tirado de um conto de Somerset Maugham, Sacks [2007, p.98] descreve a história de um pianista extremamente dedicado, sensível e apaixonado por música, mas que tinha uma deficiência auditiva que causava certa des-coordenação nas suas execuções e o impedia de se profissionalizar. Nesse caso, oposto ao outro, eram as limitações biológicas que impediam alcançar a excelência musical, já que as disposições culturais tinham sido as mais ideais possíveis.

Esses exemplos reforçam a idéia de que o desenvolvimento musical, assim como o desenvolvimento de qualquer outra função especificamente humana, é um processo bastante complexo e que envolve diversos fatores de ordens distintas. Essa complexidade, porém, não deve ser um motivo de desânimo ou abandono da questão, uma vez que, quanto mais soubermos sobre esse processo, mais poderemos fazer para potencializá-lo educacionalmente. Com base nas reflexões acima, veremos, então, em como alguns aspectos da educação musical poderiam ser repensados.

Algumas implicações educacionais

A meu ver, uma das conseqüências mais importantes dessa elucidação sobre o desenvolvimento diz respeito à constatação definitiva da importância das referências musicais, do contato intenso com universos estéticos já constituídos, como condição musicalizadora. Nesse sentido, a educação musical não pode mais se omitir em fornecer esses referenciais, com medo de que eles se tornem modelos a serem imitados e o ensino volte aos tempos reprodutivistas. Num movimento pendular necessário às renovações educacionais, o ensino de música deixou um reprodutivismo vazio para cair nas metodologias escolanovistas nas quais nenhuma referência era permitida. Entretanto, a substituição da imitação de modelos prontos pelas explorações livres do som acabou resultando num ensino também incipiente do ponto de vista da constituição de uma musicalidade. Ao conceder uma autonomia ao material musical e explorar o som como mero estímulo psico-fisiológico, esse ensino não conseguiu sair do nível do “sinal” e permitir uma efetiva apropriação “simbólica” da música. Em minha experiência como professora de música, tenho percebido que alunos que passaram por um processo de iniciação musical nesses moldes não demonstram necessariamente maior intimidade com a linguagem musical ao ingressar nas aulas de instrumento do que outros que nunca tiveram uma aula de música antes. Por outro lado, as vivências musicais não formais anteriores fazem muita diferença. Em outras palavras, crianças que vivenciam a música de modo significativo, seja onde for, têm muito maiores chances desenvolver uma musicalidade do que aquelas que freqüentam aulas de música nas quais essa preocupação com a questão simbólica está ausente.

Não apenas a abordagem metodológica (com todos os pressupostos epistemológicos que ela, consciente ou inconscientemente carrega) é importante, como também o respeito aos momentos ideais ou não para se introduzir uma aprendizagem mais sistematizada (como a leitura ou o ensino de elementos da gramática musical, por exemplo). Qualquer processo de alfabetização musical só é possível quando a criança efetivamente atingiu o nível simbólico-musical. Até então, toda tentativa nesse sentido será fadada ao fracasso, pois nenhuma criança é capaz de apreender o que não faz sentido para ela, ou, dito de outra forma, o que não tem nenhuma relação com as suas experiências anteriores. Como vimos, essa passagem ao simbólico não é apenas uma questão de maturidade orgânica e tem muita relação com o contexto sócio-cultural, de tal modo que não há como estabelecer uma idade fixa para que isso ocorra. Assim sendo, a educação não pode se colocar à espera de um determinado momento ideal para agir, mas, ao contrário, deve tomar como sua função primeira trabalhar nessa direção, preocupando-se e interferindo nas relações de sentido que a criança vai construindo em relação à música.

Saber que a música se constitui através das práticas sociais traz como conseqüência também uma outra visão do papel do professor, o qual precisa realmente assumir o seu papel de mediador, de alguém que conhece não apenas uma técnica, mas todo um universo de significados musicais coletivamente partilhados. Além disso, o professor é também alguém que tem uma relação pessoal com a música, a qual fatalmente vai influenciar diretamente nas relações musicais que seus alunos construirão. Esse ponto é particularmente importante, pois, tanto para o pensamento tradicional quanto para as vanguardas, o professor sempre foi tido como um mero balizador no ensino, como alguém que “muito fazia se não atrapalhasse”, já que a musicalidade era tomada como inata e o ensino como o lugar onde essa competência seria despertada (ou não, no caso dos alunos não talentosos). Entender como se processa o desenvolvimento musical, nesse sentido, de certa forma traz um papel ativo e intervencionista ao professor, não mais um detector e encaminhador de talentos, mas alguém que efetivamente pode interferir positivamente no desenvolvimento musical. Isso não significa, obviamente, que o professor tenha a missão sobre-humana de produzir “gênios”, os quais evidentemente existem em qualquer área e nos quais as predisposições biológicas geralmente são determinantes. O que tento enfatizar aqui é a necessidade de que a educação acredite na possibilidade de que qualquer pessoa, em condições favoráveis, possa desenvolver algum tipo de musicalidade e, conseqüentemente, exercer algum papel musical na sociedade em que vive, seja como produtora ou fruidora.

Considerações Finais

Retomando as questões iniciais, penso podermos afirmar que, dada a profunda imbricação entre fatores de ordem biológica e de ordem cultural no desenvolvimento humano, é muito difícil separar essas duas dimensões na constituição de uma musicalidade. E essa constatação nos leva a pensar no papel ativo da educação nesse processo, uma vez que ela é um dos principais meios através dos quais a criança se apropria da cultura e, fazendo isso, desenvolve suas funções psíquicas superiores, entre as quais as ligadas à música. Além disso, o entendimento de que o desenvolvimento musical está ligado às práticas sociais e que não existe uma única forma de musicalidade possível, talvez nos deixe mais abertos não apenas a aceitar, mas principalmente a tirar proveito educacional dessa pluralidade de relações possíveis que podem ser estabelecidas com a música.

Referências Bibliográficas

BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec/Annablume, 2002. 196p.

ILARI, B.S. Desenvolvimento cognitivo-musical no primeiro ano de vida. In: ILARI, B.S. (org.). Em busca da mente musical: ensaios sobre os processos cognitivos em música – da percepção à produção. Curitiba: Editora da UFPR, 2006. PP.271-302.

LEVITIN, D. Em busca da mente musical. In: ILARI, B.S. (org.). Em busca da mente musical: ensaios sobre os processos cognitivos em música – da percepção à produção. Curitiba: Ed. da UFPR, 2006. PP.23-44.

PINO, A. As marcas do humano: Às origens da constituição cultural da criança na perspectiva de Lev S. Vigotski. São Paulo: Cortez, 2005. 303p.

SACKS, O. Alucinações musicais: relatos sobre a música e o cérebro. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. 360p.

SCHROEDER, S.C.N. Reflexões sobre o conceito de musicalidade: em busca de novas perspectivas teóricas para a educação musical. Campinas: [s.n.], 2005. 209p.

VIGOTSKI, L.S. A formação social da mente. 6.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998a. 191p.

VIGOTSKI, L.S. Aprendizagem e desenvolvimento intelectual na idade escolar. In: VIGOTSKI, L.S. et al. Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem. São Paulo: Editora Ícone/Edusp, 1998b. PP.103-117.

Notas:

[1] Embora alguns animais, como os pássaros, também produzam sons que qualificamos como “musicais”, trata-se puramente de reflexos instintivos ligados a funções de sobrevivência e procriação. A “musicalidade” instintiva desses animais, portanto, não tem nada a ver com a musicalidade intencional do ser humano.

[2] Teses semelhantes existem até mesmo em relação ao ouvido absoluto, até há bem pouco tempo considerado uma atributo exclusivamente genético. Levitin [2006], por exemplo, defende a importância do ambiente na constituição do ouvido absoluto e cita diversas pesquisas que vêm demonstrando que muitas pessoas não treinadas musicalmente possuem uma acentuada sensibilidade para as alturas (embora não disponham de vocabulário para dizer o que ouvem), de tal modo que se pode levantar a hipótese de que, se o treinamento musical fosse intenso para todos desde a primeira infância, provavelmente o número de pessoas com audição absoluta fosse surpreendentemente elevado. De acordo com essa teoria, é a falta de uso que de certo modo atrofia uma capacidade potencialmente existente talvez na maioria das pessoas (senão em todas...).

[3] Estou considerando “linguagem musical erudita” a música de concerto de tradição européia.

[4] Sobre a questão da afetividade na relação de bebês com a música, Ilari [2006] mostra dados interessantes que revelam que, mesmo alterações orgânicas estão ligadas ao modo como a música é apresentada à criança. Assim, por exemplo, a diminuição do nível de cortisol, hormônio associado ao estresse, no sangue só acontece nos primeiros meses de vida quando a mãe ou o pai cantam para a criança e não quando esta ouve uma gravação. De acordo com pesquisas, o mesmo efeito calmante poderá ser conseguido com gravações apenas após 12 meses de vida da criança. Esses dados para mim confirmam a importância da mediação humana na constituição das funções musicais, mesmo as mais aparentemente fisiológicas. Após esses 12 primeiros meses, além da questão maturacional, talvez a criança também já tenha conseguido internalizar as significações mediadas pelos outros e seja capaz de reconhecê-las em outros contextos, mesmo na ausência de outras pessoas.

 

Revista Digital Art& - ISSN 1806-2962 - Ano VI - Número 09 - Abril de 2008 - Webmaster - Todos os Direitos Reservados

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