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Musica e Conhecimento
Autor: Jorge Luiz Schroeder [1] - schroder@unicamp.br

Resumo: Este ensaio tem como pano de fundo a situação particular da música dentro de instituições acadêmicas, ambiente onde ela passa a fazer parte das discussões sobre conhecimento humano. Mas, ao contrário de participar como proponente de uma visão de mundo, de um critério de interpretação da realidade, as atividades musicais aparecem como uma espécie de inspiração, como ilustração ou exemplo privilegiado da interação da prática com a reflexão, da liberdade expressiva e criadora, da forma de tratar dialeticamente pólos opostos, da multiplicidade de funções etc. Em outras palavras, na dimensão do conhecimento a música aparece como coadjuvante, não como protagonista. Minha intenção é levantar algumas questões que contribuam para trazer para o campo musical acadêmico as discussões (necessárias) sobre o conhecimento, do ponto de vista da complexidade e da interdisciplinaridade, embaladas na questão sobre a possibilidade ou não de uma episteme musical.

Palavras-chave: música; conhecimento; epistemologia; estudos culturais; educação musical.

Abstract: This essay has as background the particular situation of music inside academic institutions, an environment in which it starts to be a part of the discussions about human knowledge. But, in contrast to participating as a proponent of a world vision, of criteria of interpretation of reality, musical activities appear as a species of inspiration, as illustration or privileged example of the interaction of practice with reflection, of expressive and creative freedom, the way of dialectically treating opposing poles, of the multiplicity of functions etc. In other words, in the dimension of knowledge, music appears as co-participant, not as protagonist. My intention is to raise some questions that contribute in bringing to the academic musical field the (necessary) discussions about knowledge, from the viewpoint of the complexity and the interdisciplinary, surrounded by the question of the possibility or not of a musical episteme.

Key-words: Music; Knowledge; Epistemology; Cultural Studies; Music Education.

Introdução

Com este trabalho pretendo sugerir algumas questões que, a meu ver, contribuiriam para trazer para o campo musical as discussões sobre o conhecimento humano. Num argumento de dimensão mais geral, poderia ser dito que a música, já que é parte integrante da produção humana desde seus primórdios, deveria assumir sua posição como uma das áreas de pensamento e ação, a ser conservada e desenvolvida também como forma de interpretação do mundo; o que não acontece exatamente deste modo. Mas a razão principal que me impulsionou para o estudo do conhecimento e suas teorias é muito mais prosaica: o fato de ser músico e estar ligado a uma instituição acadêmica (Unicamp), o que, por força das disposições e valores sustentados pelas atividades musicais não se mostrarem coincidentes com aqueles estabelecidos pelo campo acadêmico, implica (e atualmente exige) uma tomada de posição mais ativa e efetiva com relação a esse aspecto em particular.

Não pretendo, com isso, afirmar que a música esteja fora, ou tenha ficado fora desse tipo de discussão. Muitas vezes sim. Mas quando é inserida, freqüentemente faz o papel de coadjuvante, quase nunca o de protagonista – talvez pelo fato da discussão freqüentemente ocorrer no bojo de outros campos do conhecimento que não o musical. Em outras palavras, a música entra mais como objeto de reflexão do que como modo de reflexão; situação que sinaliza questões tais como a possibilidade ou não da existência de um conhecimento especificamente musical, ou seja, de uma episteme artística e suas conseqüências diretas e indiretas no jogo de forças sociais envolvidas no estabelecimento, legitimação e valorização dos conhecimentos.

Prática x Teoria: estratégias para se sustentar na academia

A música parece assumir confortavelmente o papel de uma prática, ou técnica de ação e produção, que resulta em objetos artísticos/estéticos, tomando sua face artesanal como foco das suas atividades produtivas (tocar, compor, reger, cantar etc.) e sua face espetacular e emotiva como foco de seus modos de apropriação. Isto acumula uma grande quantidade de estudos e pesquisas voltados a aspectos particulares do saber fazer, muitas vezes em detrimento do saber sobre o fazer [2] e, mais ainda, em detrimento da investigação das conseqüências sociais, culturais e políticas desse “fazer” e “falar sobre”.

Martin Warnke [2001], em seus estudos sobre os antecedentes dos artistas modernos, nos conta que desde a renascença ocorre a divisão entre as práticas manuais e intelectuais nas artes, com desvalorização gradual da primeira em relação à segunda. Os mestres de então passavam a ser mais os idealizadores, ou mentores intelectuais, do que verdadeiramente os executores de suas obras. E assim nos damos conta de que a velha dicotomia prática versus teoria (ou corpo x intelecto, ação x reflexão e todos outros desdobramentos possíveis dessa falsa oposição) se mantém de certo modo ainda presente na atual situação da reflexão acadêmica dedicada à música. O conhecimento sobre música, transferido incólume do campo artístico para o acadêmico, pôde se concentrar então sobre o desenvolvimento de uma visão mais técnico-teórica, que se fraciona e se dilui em várias áreas correlatas e interdependentes (como, por exemplo, as práticas interpretativas e performance, musicologia e história da música, análise e teoria, ensino técnico e educação musical, processos criativos etc.).

Esta atitude, por um lado, ajuda a dimensionar uma área de conhecimentos especializada o bastante para assegurar a proteção contra eventuais “intrometidos” vindos de outras áreas que, infelizmente para os músicos, durante muito tempo (e até agora) carregam certa hegemonia sobre o discurso sobre a música (filósofos, críticos, estetas, sociólogos, antropólogos, psicólogos, psicoterapeutas etc.). Entretanto, por outro lado, essa espécie de proteção isolacionista impermeabiliza a área musical também contra possíveis interlocuções enriquecedoras com essas mesmas áreas, dificultando a difusão de uma idéia de música mais esotérica do que esotérica, em cujo desenvolvimento vários participantes em graus e funções diferenciadas poderiam contribuir com opiniões, sugestões, análises, impressões, reflexões, práticas etc.

Pensadores como o antropólogo Claude Lévi-Strauss [1997], o cineasta Eric Rohmer [1997], o sociólogo Max Weber [1995] ou os filósofos Michel Foucault [2001] e Edward Said [2003] devem ter sentido, cada um a sua maneira, essa espécie de pressão corporativa ao adentrarem no mundo musical “reservado aos músicos”. Alguns deles solucionaram esse conflito simplesmente se apropriando dos conhecimentos técnico-teóricos legitimados (como Rohmer, Lévi-Strauss, Said e Weber), o que considero forte indício de que certa ideologia teórica musical, provavelmente influenciada pelo desenvolvimento de modelos científicos, conseguiu, pelo menos em parte, o resultado que parecia buscar: ser um conhecimento somente para iniciados. Afirmo que a música conseguiu esse resultado “pelo menos em parte” porque há uma contrapartida: certo desinteresse, ou certo “ar” de negligência dos acadêmicos (e podia dizer também do público leigo em geral) em relação a esse tipo de reflexão técnica impenetrável aos não-músicos e músicos não-escolarizados [3].

Talvez ao tentar atingir o nível de complexidade normalmente associada às ciências, motivo justo quando se trata de sua entrada nas instituições científicas, a música tenha reforçado um olhar mais voltado ao seu próprio umbigo e, até mesmo por isso, suas reflexões acadêmicas conquistaram certo grau de autonomia discursiva (através do jargão técnico) e também o repúdio dos não-músicos, reforçando a situação de isolamento acadêmico.

É preciso enfatizar ainda a distinção operada entre o conhecimento técnico e o conhecimento estético dentro das artes, este último várias vezes negligenciado pelas pesquisas musicais. De um lado, como quando as ciências humanas se debruçam sobre a música, justificando o desvio das questões estéticas pela prudência (ver, por exemplo, a citação de Rohmer na nota 2 de rodapé); de outro, como pode ser encontrado na área da formação dos músicos, tomando equivocadamente a estética como uma conseqüência direta e “natural” do aprendizado técnico. Qual seria então a solução para a quebra desse isolamento acadêmico (que dificulta fortemente a situação da música dentro da academia)? Como seria possível integrar o fazer-pensar musical com o acadêmico? Como seria esse conhecimento em música (pelo menos numa versão acadêmica)? Seria possível um conhecimento musical diferente do técnico-teórico ou mesmo do estético? Como se colocaria esse conhecimento musical em relação aos outros? Em quê ele contribuiria para os novos paradigmas de investigação científica e de ações sociais, culturais e políticas? Essas são algumas das questões que me estimularam a refletir, estudar e, ao contrário de respondê-las, apresentá-las aos leitores; e também, na medida do possível, investigar seus possíveis desdobramentos. E o primeiro passo a tomar que acho importante é falar um pouco sobre esse viés técnico-teórico que mencionei durante a primeira parte do texto.

O Racionalismo na Música

Max Weber [1995], em seu trabalho citado, esboça um estudo pormenorizado sobre os processos que proporcionaram o desenvolvimento racional da música no mundo ocidental. Ali é possível tomar contato com a dimensão do esforço coletivo em sistematizar os conhecimentos, padronizar as afinações, os usos das escalas, os instrumentos, os timbres, as formas de escrita, as configurações de grupos, orquestras, corais e a função de cada membro desses grupos, proposto por músicos, compositores, luthiers, teóricos, pesquisadores, professores, filósofos, apreciadores, diletantes, mecenas e muitos mais, envolvidos direta ou indiretamente nas mais diversas formas de atividades musicais. Foi com este processo racionalista que a música (culta, erudita, escolarizada, enfim, aquela que adentrou à elite social, cultural e política) se viu envolvida durante boa parte da Renascença, Barroco e Classicismo musical. De acordo com Johannes Hessen [2003], o racionalismo se mostra como “[...] o ponto de vista epistemológico que enxerga no pensamento, na razão, a principal fonte do conhecimento humano. Segundo o racionalismo, um conhecimento só merece realmente esse nome se for necessário [necessidade lógica] e tiver validade universal” [HESSEN, 2003, p.48]. Daí talvez a necessidade dos músicos e partidários da música de amarrá-la a um parâmetro de legitimação emergente, provindo exclusivamente da lógica dedutiva e conceitual da matemática [HESSEN, 2003, p.49] que foi o racionalismo. Assim, podemos dizer que o processo de estabelecimento, conservação e transmissão do conhecimento musical técnico-teórico, tonal, sistematizado, escriturístico foi, e é ainda, obra coletiva de empréstimo epistemológico da vertente racional do conhecimento – muito embora essa coletividade possa ser limitada politicamente àqueles mais diretamente interessados nesse processo de sistematização escriturística e teórica da música, aspirantes ao grupo social dominante[4]. Mas esta não é, evidentemente, a única fonte ou modelo de conhecimento trazido para dentro das investigações musicais. Várias vertentes filosóficas (como o empirismo ou a fenomenologia) deram também sua contribuição para a aparente busca de consolidação epistemológica na reflexão sobre música[5]. Entretanto, a despeito das outras influências, o racionalismo técnico permaneceu, se não hegemônico, pelo menos como pano de fundo desses outros empréstimos, referencial dificilmente abandonado – talvez pelo receio de descaracterizar a única forma de organização do conhecimento aparentemente exclusiva da música. Vejamos um outro provável motivo.

Racionalismo Musical e Forma Escolar do Conhecimento

É possível cotejar o movimento de racionalização musical com o estabelecimento da forma escolar de organização e articulação do conhecimento. Bernard Lahire afirma, em seu estudo sobre a história e a teoria da forma escolar, que uma das mudanças importantes no estabelecimento dessa forma foi a implementação de uma “relação pedagógica”:

Não mais uma relação de pessoa a pessoa, mas uma submissão do mestre e dos alunos a regras impessoais. Num espaço fechado e totalmente ordenado para a realização, por cada um, de seus deveres, num tempo tão cuidadosamente regulado que não pode deixar nenhum espaço a um movimento imprevisto, cada um submete sua atividade aos “princípios” ou regras que a regem [VICENT, LAHIRE e THIN, 2001, p.15].

A esta mudança de fonte de obediência, do aprendizado por imitação, participação, ver fazer, que ocorria anteriormente – numa relação que nas artes corresponderia a do mestre/discípulo –, podemos fazer corresponder uma mudança de foco que ocorre no desvio da atenção dos iniciantes do saber fazer do mestre músico (como ainda hoje acontece em muitas manifestações da cultural popular musical) para o cumprimento de regras cuidadosamente organizadas. De um conhecimento contextualizado, relativizado, concentrado, oral, corporificado no mestre que faz e ensina ao fazer, passa-se a um conhecimento universal, absoluto, descentralizado, escriturístico, diluído nos manuais e nas técnicas despersonalizadas e abstratas, ao qual o professor passa a ser, além de guardião e fiscal, igualmente submisso.

Um segundo ponto enfatizado por Lahire é o fato de a forma escolar estar intimamente ligada à cultura escrita, desdobramento de uma série de mudanças estabelecidas nas formas de relações sociais e institucionais (“a constituição do Estado moderno, a progressiva autonomização de campos de práticas heterogêneas, a generalização da alfabetização e da forma escolar [...] assim como a construção de uma relação distanciada da linguagem e do mundo...”), significando o gradual fortalecimento de “modalidades específicas de uma realidade social de conjunto, caracterizada pela generalização de formas sociais escriturais” [VICENT, LAHIRE e THIN, 2001, p.18].

Não só o processo de racionalização escritural da música se adapta perfeitamente ao formato escriturístico e escolarizado, em relação ao conhecimento, como se deram ambos igualmente inseridos nesse bloco de modificações socioculturais ocorridos a partir dos séculos XVII e XVIII. Michel De Certeau [1994] enfatiza a passagem da circunstância social oral para a escriturística do seguinte modo:

[...] o jogo escriturístico, produção de um sistema, espaço de formalização, tem como “sentido” remeter à realidade de que se distinguiu em vista de mudá-la. Tem como alvo uma eficácia social. [...] As coisas que entram na página são sinais de uma “passividade” do sujeito em face de uma tradição; aquelas que saem dela são as marcas do seu poder de fabricar objetos. No final das contas, a empresa escriturística transforma ou conserva dentro de si aquilo que recebe do seu meio circunstancial e cria dentro de si os instrumentos de uma apropriação do espaço exterior [DE CERTEAU, 1994, p.226, grifos do autor].

E vai um pouco mais longe ao imbricar, nas ações do poderio escritural que se estabelece, a violação do corpo humano – tomado como um dos “papéis em branco” onde as leis deverão ser inscritas [DE CERTEAU, 1994, p.230 e ss]. Leis, papéis/corpos e instrumentos de inscrição formam o conjunto de forças que, a partir do paradigma da escritura, atuam sobre os indivíduos e sobre a constituição do conhecimento.

Uma Imagem Triangular da Música

No caso da música, algo parecido acontece com música, músico, instrumento musical, que nos permite remeter à imagem de um triângulo. A partir do estabelecimento de um conhecimento musical teórico gradualmente hegemônico, sistematizam-se as técnicas de escrita dessas novas leis tanto nas partituras (nas músicas) quanto nos corpos dos músicos e instrumentos, a partir do esforço de padronização de linguagens, técnicas de execução e criação e recursos sonoros e articulares dos instrumentos (afinação, dimensões, materiais adequados etc.).

Mas o próprio De Certeau nos alerta que esse processo não é totalmente eficiente, absoluto. A ele se contrapõe alguma resistência na forma de táticas [6] que, no campo musical, encontraríamos não apenas nos modos de realização musical alternativos (gêneros e linguagens normalmente excluídos da música “oficial” e legitimada), mas principalmente nos diversos modos de expressão/realização, sutis ou descarados, presentes entre os próprios membros participantes do universo escriturístico musical.

Analisei, em meu trabalho de doutorado [SCHROEDER, 2006], cinco exemplos de músicos que se manifestam de modo completamente distinto dentro de um mesmo gênero musical, explicitando suas respectivas táticas, ou seja, a forma particular como realizam suas obras estabilizando momentaneamente o conflito causado pela evolução das forças escriturísticas inscritas tanto nos instrumentos quanto nas músicas e neles próprios. Nos instrumentos: nas formas, dimensões, possibilidades de articulação e produção sonoras, que alguns dos músicos modificam, outros exploram; nas músicas: na exigência que fazem do desenvolvimento de certas habilidades manuais e perceptivas, nos modos específicos de compreender o que ocorre em matéria de realização musical, perceber as opções possíveis e escolher as mais adequadas a cada momento, que alguns renovam e alguns renegam; e nos músicos: nas próprias limitações corporais e cognitivas que, de certa forma, estabelecem as facilidades e dificuldades, escondem e criam opções e soluções, orientam os caminhos a serem seguidos e a compreensão de seus contextos e oportunidades, que alguns ampliam e outros se conformam.

Desse modo é possível afirmar, junto com Bourdieu [2001], que o conhecimento se dá através do corpo. O conhecimento em música necessariamente inclui o corpo. Entretanto, requer um corpo que não é só “corpo” anatomofisiologicamente falando; exige um corpo que é o próprio músico, com suas crenças, vontades, hábitos, gorduras, pele, roupas, caráter, jeito, cheiro, sentimentos, doenças, dificuldades, preguiças, relacionamentos, visões de mundo, valores, incompreensões, conflitos... Enfim, nos encontramos com a constituição não só biológica do corpo humano, mas na sua constituição sociocultural que abarca os objetos, espaços, ambientes, pessoas, animais e plantas com os quais se relaciona: o mundo que concebe e em que vive.

Outra Opção de Empréstimo Epistemológico

E assim forjamos um desvio do racionalismo musical com o empréstimo de fundamentações socioculturais, das modernas ciências sociais. Nas palavras de Bourdieu:

O mundo é compreensível, dotado imediatamente de sentido, porque o corpo, tendo a capacidade de estar presente no exterior de si mesmo, no mundo, graças a seus sentidos e a seu cérebro, e de ser impressionado e duravelmente modificado por ele, ficou longamente (desde a origem) exposto às suas regularidades. Tendo adquirido por esse motivo um sistema de disposições ajustado a tais regularidades, o corpo se acha inclinado e apto a antecipá-las praticamente em condutas que mobilizam um conhecimento pelo corpo capaz de garantir uma compreensão prática do mundo bastante diferente do ato intencional de decifração consciente que em geral transparece na idéia de compreensão [BOURDIEU, 2001, p.166, grifos do autor].

Embora Bourdieu reflita numa dimensão ampla, da condição do indivíduo dentro de seu mundo ou campo social, a condição do músico dentro de sua área de atuação é homóloga. O que mais nos interessa é a relação indissolúvel que Bourdieu propõe entre o indivíduo e o mundo pelo qual circula. Assim, a compreensão musical acontece (a música adquire sentido) apenas quando e do modo como ela está presente no âmbito da existência do indivíduo (seja ele músico ou não). Cheguei a esta conclusão muito rapidamente neste texto devido ao seu tamanho, mas muitos outros autores chegaram a conclusões parecidas através de suas pesquisas, de suas práticas, reflexões e estudos [7]. Ou seja, em conseqüência da Revolução Científica ocorrida na segunda metade do século XX, que instaura o chamado pensamento complexo, é possível quebrar a visão simplista de que a música seria uma manifestação homogênea, universal em seus preceitos básicos, que sustenta uma essência comum em todas suas manifestações (constituição, arquitetônica, significado etc.); pensamento que relegaria aos elementos superficiais e ornamentais a causa da enorme variabilidade e diversidade de estilos e formas.

Não é com a universalidade que nos deparamos ao observar com maior atenção, ou realizar, as práticas musicais. Músicos de várias correntes e tendências às vezes compreendem, às vezes não, as músicas oriundas de outras correntes e tendências – e não apenas as distantes, mas também as próximas [8]. Isto se deve provavelmente tanto à situação atual da dinâmica artística (hibridismos, fusões, inter-relações, empréstimos, radicalizações, oposições) quanto à nova visão complexa dessa dinâmica propiciada pelas novas propostas epistemológicas.

O mundo musical mostra-se, para certas formas interdisciplinares de conhecimento, como um campo de diversidades, um conglomerado de redes significantes que podem ou não se tocar. Criam fronteiras de compreensão que, ainda que móveis e porosas, condensam certos núcleos de conhecimento e atividades que se diferenciam de outros que, por sua vez, tanto podem se afastar quanto se aproximar. Instituem espaços de circulação próprios, que podem ou não se cruzar; valores, hierarquias e padrões de qualidade que podem ou não coincidir; instâncias de legitimidade, formas de consagração que podem tanto se harmonizar como conflitar; elegem seus legítimos representantes, constituem seus capitais musicais, se organizam com maior ou menor grau de autonomia à sua maneira, podendo ou não trocar informações e experiências com outras áreas correlatas ou contrapostas. Enfim: um mundo plural, resultante de uma visão plural do mundo.

Os casos de hibridismo, e mesmo de associação entre gêneros e linguagens musicais, são tão conhecidos quanto os casos de repúdio, de conflito de interesses. Desde as fusões mais nítidas como o samba-rock, ou samba-reggae, o manguebeat, o jazz fusion, o freejazz, o rock sinfônico (ou progressivo), o thecnopop, o thecnobrega, o pop vanguarda, a word music, e por aí vai, até os menos enfáticos, como é o caso da bossa nova, da música popular instrumental, do movimento dos chamados novos violeiros, ou do novo choro (e mesmo o “velho” choro) que, ou incorporam elementos “estrangeiros” aos seus núcleos de origem ou se originam no equilíbrio de misturas, mesmo que sustentem uma ligação direta e íntima com as “raízes” respectivas. Desde os embates emblemáticos, como o da música raiz com o sertanejo “de rodeio”, ou do samba tradicional (como a Velha Guarda da Portela ou o partido alto) com o pagode “romântico” ou com os novos sambas-enredo ou ainda da MPB contra a jovem guarda; até as disputas mais veladas, como a música popular instrumental com a música erudita – que veladamente disputam o monopólio da legitimidade de expressão e realização atuais da música. Essas misturas e decantações não se dão única e exclusivamente na associação de ritmos ou mesmo de instrumentos (como é o caso do pagode que executa o samba romântico com teclados eletrônicos e guitarras elétricas), mas principalmente no entrecruzamento de modelos e referências, na interpolação de enunciados significativos, na apropriação de sentidos, no estabelecimento de novos padrões de qualidade e valores.

A complexidade com que esses processos musicais se dão, mesmo aqueles que não implicam radicalizações ou criação de novos gêneros ou linguagens, obriga a mudanças nos modos de observá-los e considerá-los. Do mesmo modo como essas novas visões, quando usadas no campo da música, muitas vezes ajudam a instaurar e facilitam as dinâmicas musicais. E essas mudanças exigem da música o enfrentamento do difícil dilema: ou “abrir as fronteiras” do conhecimento técnico e dialogar com outras fontes de prática e interpretação (tanto dentro quanto fora da música) que possam contribuir para o estabelecimento do conhecimento musical em pé de igualdade com outros (evidentemente sob o risco da perda do monopólio do discurso, que, a bem da verdade, já não é dos músicos há muito tempo); ou “fechar as fronteiras”, no intuito de tentar manter e reforçar uma legitimidade musical, ainda que frágil, como conhecimento que possa atuar em bloco num campo de batalhas que não é propriamente artístico, como é o caso da academia.

Muito ainda poderia ser dito sobre o assunto. Deixo, então, para uma outra oportunidade uma discussão mais detalhada sobre a questão dos empréstimos epistemológicos que ocorrem nas pesquisas musicais, as associações com outras áreas, as conversões de capital (geralmente com perdas para os músicos) e a distinção entre as investigações com o intuito de fazer música e as investigações com o intuito de falar sobre a música.

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Notas:

[1] Pesquisador e professor do programa de pós-graduação do Instituto de Artes da Unicamp. Pesquisador do Laborarte – Laboratório de pesquisa sobre o ensino das artes, da Faculdade de Educação da Unicamp.

[2] Essas expressões foram tomados de Sacristán [1999].

[3] Faço a ressalva “escolarizados” para enfatizar que muitos músicos populares (como mestres de capoeira, de jongo, reisado, de escolas de samba, maracatu etc.) não são considerados – e o pior, não se consideram – “músicos” no sentido legitimado da palavra. Principalmente por não saberem ler partitura (os “analfabetos musicais”). Por “escolarizados”, portanto, compreendo aqueles músicos que compartilham de um conhecimento racional e técnico, o que não implica em ter passado necessariamente por uma escola de música.

[4] Termos e idéias tomados de De Certeau [1994]. Boudieu também considera os artistas como ocupantes de “uma posição dominada no campo do poder” [BOUDIEU, 1999, p.129].

[5] Na minha pesquisa de doutorado [Schroeder, 2006], estudando a corporalidade musical, identifiquei certa hegemonia da vertente anatomofisiológica, provinda das ciências biológicas (ou da vida, como denomina Casanova [2006]), para a compreensão do corpo em ações musicais (tocar, cantar).

[6] Que o autor considera o oposto das “estratégias”, no sentido das táticas serem recursos de sobrevivência no espaço do outro, nas regras estabelecidas pelo outro, ou seja, por aquele que organiza as estratégias [DE CERTEAU, 1994, p.46].

[7] Dentre muitos outros, Harnoncourt [1988], Penna [2003], Queiroz [2005], Swanwick [2003], Schroeder [2005].

[8] Ver José Ramos Tinhorão [1998, p.315-316] narrando o conflito de linguagens entre Carlos Lira (bossa nova) e Cartola e Nelson Cavaquinho [samba de morro tradicional]. Ver também o DVD Meu tempo é hoje, onde Paulinho da Viola também se considera distante da bossa nova, embora ela seja considerada samba pelos seus criadores.

 

Revista Digital Art& - ISSN 1806-2962 - Ano VI - Número 09 - Abril de 2008 - Webmaster - Todos os Direitos Reservados

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